(posse irregular de arma de fogo de uso permitido)
Instado a me manifestar em inquérito policial iniciado por auto de prisão em flagrante, em que o indiciado foi preso em virtude de possuir, no interior de sua residência, duas armas de fogo, uma registrada em nome de terceiro e a outra sem registro no DFAE, órgão até então detentor da atribuição para tal registro sob a égide da legislação anterior, cheguei à conclusão de que ainda não pode ser aplicado o art. 12 do Estatuto do Desarmamento, pelas razões que exponho neste modesto artigo.
Em suma, o fato era o seguinte: os policiais responsáveis pela prisão estiveram na residência do indiciado a partir de denúncias anônimas, que noticiavam possuir o mesmo as ditas armas de fogo e, após ser a entrada deles franqueada pelo próprio indiciado, lograram localizar e apreender as armas, dando-lhe voz de prisão em flagrante.
Ouvido em sede policial, o indiciado confessou que, de fato, possuía as armas, as quais teria adquirido, uma, de um caminhoneiro, outra, de uma pessoa de quem hoje não mais se recorda, sem se atentar para as formalidades inerentes ao registro e à transferência de propriedade das armas.
Em consulta ao DFAE, foi obtida a informação, certificada nos autos, dando conta de que uma das armas possuía registro naquele órgão, porém em nome de terceiro (provavelmente o caminhoneiro referido pelo indiciado), sendo certo que a outra arma não era registrada.
Esta a breve síntese dos fatos.
Em primeiro lugar, é conveniente destacar que as armas estavam no interior da residência do indiciado, afastando-se, portanto, o crime previsto no art. 14 do Estatuto do Desarmamento, sob quaisquer de suas condutas alternativamente previstas.
Como se tratam de armas de fogo de uso permitido e suas apreensões se deram dentro da residência do indiciado, o único tipo penal aplicável à conduta do indiciado seria o do art. 12 da referida Lei, como ventilado pela autoridade policial.
Sucede que há uma questão de suma importância a ser considerada e que passou, data venia, despercebida à autoridade policial: é que, nada obstante o Estatuto do Desarmamento ter entrado em vigor na data de sua publicação, consoante estabelecido por seu art. 37, sem qualquer ressalva, publicação esta que ocorreu no dia 23 de dezembro de 2003, os arts. 30 e 32, do mesmo Estatuto, já vigentes e a seguir transcritos para ilustrar, assinalam prazo para que o possuidor de armas de fogo sem registro providenciem sua regularização junto à Polícia Federal, “sob pena de responsabilidade penal”, responsabilidade esta a ser exigida, por óbvio, apenas após o decurso deste prazo, que é de 180 (cento e oitenta dias), contados inicialmente a partir da publicação da referida Lei (portanto, a se expirar, inicialmente, em junho do corrente ano). Assinalam, ainda, prazo idêntico para que tais possuidores, se desejarem, promovam a entrega dessas armas à Polícia Federal, alvitrando-se para a possibilidade de serem até indenizados, por presumida boa-fé:
Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.
Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.[1]
Recentemente, a Medida Provisória n.º 174, de 18 de março de 2004, visando a corrigir distorção gerada pelo fato de se aproximar a expiração daqueles prazos e ainda não ter sido editado, pelo Poder Executivo, o Regulamento previsto na Lei (art. 23 do Estatuto), modificou o termo inicial de tais prazos, que, doravante, só começarão a correr da data em que for publicado o Decreto regulamentador:
Art. 1º. O termo inicial dos prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003, passa a fluir a partir da data de publicação do decreto que os regulamentar.[2]
Como se vê, os prazos em questão ainda não se encerraram – aliás, nos moldes da Medida Provisória em comento, sequer começaram a fluir[3] – e, portanto, considerar incidente, apesar de já vigente, o tipo do art. 12 da Lei de regência, seria consagrar o absurdo, porque estaria a punir criminalmente o possuidor de arma de fogo sem registro, que a mantém em sua casa, ainda dentro do prazo de que ele dispõe para fazer a entrega da mesma à Polícia Federal, passível até de indenização ou, a seu critério, promover a regularização do registro da mesma arma, cuja origem lícita poderia ser comprovada “pelos meios de prova em direito admitidos”.
A lei não pode levar a conclusões díspares. Daí, enquanto ainda adormecidos e fluentes os prazos outorgados pelos arts. 30 e 32, a única interpretação possível é a de que atípicas as condutas descritas no art. 12 da referida Lei, posto que ainda não podem incidir, neutralizadas que estão pela fluência de tais prazos.
Se, inicialmente, este crime poderia começar a incidir somente a partir de junho deste ano, agora, com a Medida Provisória n.º 174, sequer se sabe quando poderá começar a surtir seus efeitos, posto que isto dependerá da adoção do Decreto regulamentador e, a partir de então, haver-se-á de contar 180 (cento e oitenta) dias, findos os quais, só então, poder-se-á ter por incidente o tipo penal sub examinem.
Nem se diga em buscar suporte à tipificação da conduta do indiciado no antigo crime do art. 10 da Lei nº 9.437/97, porquanto o fato aqui perscrutado se deu após ter sido esta Lei expressamente revogada pelo Estatuto do Desarmamento (vide art. 36 da Lei nº 10.826/03), tendo ocorrido, assim, abolitio criminis, a despertar a aplicação dos efeitos disciplinados no art. 2o do Código Penal.[4]
Pelo fio do exposto, é inexorável a conclusão de que a conduta atribuída ao indiciado ainda não constitui infração penal, o que só passará a constituir quando terminarem os prazos para a regularização das situações das armas de fogo sem registro. É também forçoso concluir que não dá para ser aproveitada a conduta anteriormente descrita, porquanto a Lei nº 9.437/97 foi expressamente revogada pelo Estatuto, cuja vigência foi imediata, o que não significa poder conferir eficácia ao seu art. 12, como aqui sustentado. Ainda que de forma pouco clara, o Estatuto fez uma nova anistia aos portadores de arma de fogo de uso permitido sem registro, como, aliás, já o havia feito a revogada Lei n.º 9.437/97, então em seu art. 5o.
Tal situação não é de gerar qualquer perplexidade, bastando nos recordarmos que, antes da revogada Lei nº 9.437/97, o porte de arma de fogo era singelamente punido pela Lei das Contravenções Penais, cujo art. 19 só incriminava a conduta de quem a portava “fora de casa ou dependência desta”, deixando à míngua de qualquer sanção a conduta de quem simplesmente possuía arma de fogo, ainda que sem registro, mas dentro de sua casa.
Portanto, a lacuna hoje existente, deixada ao menos enquanto não expirarem os prazos dos arts. 30 e 32 do Estatuto, apenas nos remete a uma situação que era a regra antes de 1997, motivo pelo qual não há de causar nenhuma estranheza.
Na cauda de tais considerações, no caso sub exanimen, é forçoso reconhecer:
1. A prisão do indiciado constituiu-se em constrangimento ilegal. Não fosse o caso de ter ele pago fiança, como certificado nos autos, haveria de ser relaxada. Todavia, o dinheiro que pagou à guisa de fiança, porque indevida, há de lhe ser restituído, como emana da inteligência do art. 336 do Código de Processo Penal, até porque, do contrário, consagrar-se-ia o enriquecimento ilícito do Erário, vez que auferiria tal valor exigido a partir de uma conduta, até então, lícita, como já explicitado;
2. As armas apreendidas devem ser restituídas ao indiciado, porque lhe tomadas a partir de uma conduta lícita, eis que, como aqui defendido, sua simples posse dentro de casa, até que expirem os prazos já colacionados, ainda não está sujeita a nenhum tipo penal definido no Estatuto do Desarmamento. Deve, contudo, ser o indiciado advertido de que deverá adotar as providências que lhe manda a Lei de regência junto à Polícia Federal, sob pena de, a partir do término dos prazos de que dispõe para tanto, incidir no crime do art. 12 do Estatuto, estando ele, doravante, sujeito à prisão em flagrante, caso ainda se conserve na posse dessas armas sem regularizar os registros das mesmas junto à Polícia Federal.
Oportuno, também, ressalvar que, nada obstante os argumentos aqui defendidos, nem de longe se pode ter como configuradoras de abuso de autoridade as condutas da autoridade policial e dos milicianos que apreenderam a arma e prenderam o indiciado em flagrante, porque evidente a ausência de dolo neste mister, o que decorre até mesmo das nuances e sutilezas jurídicas que apenas à alta indagação que aqui se propôs fazer era possível chegar.
Em conseqüência de tudo o que foi aqui articulado, há de ser promovido o arquivamento dos inquéritos policiais eventualmentes instaurados.
Marcelo Lessa Bastos
Promotor de Justiça
Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito de Campos
[1] Brasil, Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), com os grifos nossos.
[2] Brasil, Medida Provisória n.º 174/04, de 18 de março de 2004, publicada no Diário Oficial da União em 19 de março de 2004.
[3] Talvez se possa dizer que sofreram uma causa interruptiva, seguida imediatamente de uma causa suspensiva anômala, sine die, que fará com que voltem os prazos a correr por inteiro, quando for o Decreto publicado, o que não se sabe quando ocorrerá. Extravagâncias do Legislador!
[4] A abolitio criminis no caso em questão é uma exigência, antes de tudo, do princípio constitucional da isonomia, posto que, a se agir de modo diferente, premiar-se-iam os que se conservaram na posse ilícita das armas de fogo, não tendo promovido o registro quando dos prazos alvitrados na antiga Lei n.º 9.437/97 e, só agora, foram descobertos, em detrimento dos que foram presos quando da vigência do art. 10 daquela Lei, sob a elementar de possuir arma de fogo sem registro e em desacordo com as determinações legair e regulamentares, criando uma distinção onde, por uma questão de razoabilidade, não pode haver.