Estatuto do Desarmamento – uma questão de competência

I – Introdução

A lei em comento dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, definindo figuras típicas e estabelecendo tratamento processual diferenciado àqueles a que forem imputadas (indiciados e acusados) as condutas criminalizadas em seus artigos.

Trata-se, ao lado do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto do Idoso, de mais uma legislação especial que confirma a inserção do Brasil no movimento pampenalista, sintoma de inflação legislativa, que propaga respostas na esfera penal aos graves problemas sociais enfrentados em nosso país de modernidade tardia.

Com o Estatuto do Desarmamento (ED) segue-se a diretriz estabelecida no 9.º Congresso da Onu, em 1995, na cidade de Cairo, que indica a necessidade de intensificar o controle das armas de fogo.[1] Todavia, a opção brasileira foi transformar em matéria penal uma questão que poderia ser resolvida tão-somente na esfera administrativa.

Em regra, as diversas normas que emanam do chamado “Estatuto do Desarmamento” estão inseridas em uma linha de política criminal que vislumbra na difusão de armas clandestinas e na falta de habilitação daqueles que fazem uso dessas armas, causas da explosão da violência. Em apertada síntese, poder-se-ia afirmar que a Lei n.º 10.826/03 pretende ser um fator de manutenção da paz pública. Em verdadeiro exercício de futurologia, o legislador brasileiro se antecipa aos crimes (homicídio, roubo, etc.) que viriam a ser praticados com as armas mencionadas na nova lei e impõe uma resposta penal antes mesmo da lesão ao bem jurídico, em outras palavras, pune os prováveis agentes desses futuros desvios sociais.

Todavia, embora o discurso declarado, ou seja, os motivos expostos para a elaboração e a aplicação dessa legislação especial indiquem que o ED se propõe ao combate da violência, paradoxalmente, a própria legislação aumenta a violência (institucional) ínsita ao sistema penal, com a criminalização[2] de novas condutas, o aumento de penas e o tratamento processual diferenciado (e, por vezes, desproporcional) às pessoas a que forem imputadas os crimes nele previstos. Como alerta Vera Andrade, afirmar “que o direito penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (e não empírica) destas”.[3]

Mais uma vez, dá-se uma resposta simbólica aos anseios da população, em grande parte construídos pelos meios de comunicação de massa, por repressão e combate à criminalidade. A nova legislação aparece, portanto, embebecida pela ideologia da defesa social, o que importa na assunção de uma visão maniqueísta da complexidade social. Mais uma vez, a construção da criminalidade encontrou campo fértil na legislação brasileira e, cada vez mais, substitui a ausência de políticas públicas de inserção social.

Todavia, neste trabalho, buscar-se-á tão-somente enfrentar a questão da competência para o julgamento dos crimes previstos no parágrafo único do artigo 16 da Lei n.º 10.826/2003.

O Estatuto trouxe para a União a tarefa de registrar e controlar as armas de fogo no Brasil e, com isto, acendeu a discussão quanto à competência para o processo e julgamento dos crimes nele definidos. Seriam, doravante, crimes contra interesses ou serviços da União, de modo a atrair a competência da Justiça Federal, na forma do art. 109, IV, da Constituição Federal?

Diante das várias impropriedades da nova legislação, tal matéria tem sido subestimada no debate recentemente inaugurado. Espera-se, com este texto, contribuir para ampliar o campo das discussões.

II- Bem jurídico: a influência sobre a competência

Hoje, poucos são aqueles que insistem em não atribuir importância à apreciação do bem jurídico que justifica (e racionaliza) a existência da norma penal incriminadora. O princípio da necessária lesividade da conduta a um bem jurídico impõe-se em um direito penal democrático.

Outrossim, a importância e a compreensão do bem jurídico não se limita ao plano do direto penal material. A identificação do bem jurídico funciona, ainda, na definição da competência para apreciação e julgamento da causa penal, influindo, decisivamente, na concretização da garantia constitucional do juiz natural.

Com a entrada em vigor do novo estatuto, surgiram vozes ora reconhecendo a competência da justiça estadual para os processos nos quais fossem imputados os crimes tipificados no ED[4], ora defendendo a competência da justiça federal para tais delitos, em razão do SINARM ser um serviço da União[5].

Sugere-se, nesta oportunidade, uma terceira solução à questão da competência para o julgamento dos crimes definidos no ED.

Constata-se, para tanto, que o simples fato de ser a União o ente controlador das armas, por si só, não é o bastante para fixar a competência da Justiça Federal. Ora, é a União, também, quem controla e fiscaliza a comercialização de produtos alimentícios e remédios, através da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e nem por isso se diz que os crimes de adulteração e falsificação de alimentos e remédios (arts. 272 e 273 do Código Penal) são de competência da Justiça Federal. É a União, através da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), quem controla e fiscaliza a distribuição de energia elétrica e, igualmente, nem por isso se diz que os crimes de furto de energia elétrica (art. 155, § 3º, do Código Penal) são de competência da Justiça Federal. É a União quem disciplina as normas do Direito do Trabalho (art. 22, I, da Constituição Federal) e, nem por isto, todos os crimes contra a Organização do Trabalho (arts. 197/207 do Código Penal) são de competência da Justiça Federal.

Em suma, para a definição da competência federal, não basta o simples fato de ser a União o ente regulador da atividade ou serviço.

De igual sorte, como, em princípio, o bem jurídico protegido nos crimes previstos no ED é a incolumidade pública, também em princípio, a competência cai na regra geral e, portanto, é da alçada da Justiça Estadual.

Merece, todavia, destaque o crime previsto no art. 16, parágrafo único, I, do Estatuto (“suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato”). Uma pergunta inicial se impõe: qual seria o bem jurídico protegido por esta norma? Seria, como nas demais, a incolumidade pública? Afirma-se que não, pois, convenhamos, para o cidadão tanto faz se vier a ser alvejado com uma arma com numeração íntegra ou raspada. Ela será lesiva do mesmo jeito! Aqui o objetivo da conduta de suprimir a numeração é iludir o agente fiscalizador, de modo a manter a arma na clandestinidade. Neste ponto, aponta-se como o bem jurídico a ser protegido a fé pública e, para ser exato, a fé pública da União. Assim, no crime em comento a competência é da Justiça Federal, porquanto a conduta prevista nesta norma viola interesse e serviço da União, posto que o único bem jurídico atingido é exatamente a higidez, a eficácia dos cadastros de armas operados pela União.

Situação semelhante se tem no crime previsto no art. 16, parágrafo único, IV (“portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado”). Aqui se trata de crime pluriofensivo, cujos bens jurídicos tutelados são tanto a incolumidade pública, atingida pelo porte da arma, quanto, também, a fé pública da União, posto que esta arma está com numeração adulterada, portanto na clandestinidade. Assim, diante dessa cumulação de bens jurídicos violados, sobressai o interesse da União na solução do caso penal, de modo a também atrair a competência da Justiça Federal.

III- Conclusão

Em regra, a competência para o processo e julgamento dos crimes definidos no Estatuto do Desarmamento é da Justiça Estadual; por exceção e ante as razões aqui defendidas, os crimes do art. 16, parágrafo único, I e IV, são de competência da Justiça Federal e, por conseguinte, sendo de atribuição do Ministério Publico Federal o oferecimento de denúncia, pouco importando se a Comarca onde se deu o locus delicti é ou não sede de Vara Federal, posto que o Estatuto não optou pela delegação prevista no art. 109, § 3º e 4º da Constituição Federal. Também por via de conseqüência, a atribuição para os atos de polícia judiciária, incluindo a autuação em flagrante, é da Polícia Federal neste caso destacado, por força do art. 144, § 1º, IV, da Constituição Federal.

Marcelo Lessa Bastos – Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Direito pela FDC e professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos

Rubens R. R. Casara, Juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Ciências Penais pela UCAM/ICC e professor de Teoria Geral do Processo da Faculdade de Direito de Campos

[1] Cf. JESUS, Danásio E. de. Lei dos Juizados Especiais Criminais anotada, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 17.

[2] Não se pode esquecer que o fenômeno “crime” não é um dado ontológico, mas uma construção social (e, diga-se, seletiva).

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 293.

[4] Nesse sentido é a posição defendida por Luiz Flávio Gomes, manifestada em recente seminário na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

[5] O festejado desembargador e professor Eduardo Mayr foi, salvo engano, o primeiro a desenvolver essa sedutora tese, que tem contado com a adesão da Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Cf. HC .º 890/04, j. em 30 de março de 2004).

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