Estrutura colossal do Judiciário burocratiza o Brasil

Autor: José Jácomo Gimenes (*)

 

O Brasil é um país muito burocrático. Conforme última versão de pesquisa feita pelo Banco Mundial, o Brasil ocupa a calamitosa posição de 123º, de um total de 190 países, no ranking de burocracias para abrir e fechar uma empresa, obter licenças de operação, construção, pagar tributos e outras formalidades[i]. É desnecessário falar o quanto o excesso de burocracia prejudica os processos decisórios, a produtividade do país, expansão econômica, geração de empregos e ganhos sociais. Neste espaço disfuncional, vicejam oligopólios, intermediários, despachantes, parasitismo e corrupção, aumentando o famigerado “custo Brasil”.

O problema da burocracia, quando em foco o Judiciário, não é muito diferente. Somos uma república federativa composta por Estados-membros com mínimo poder para legislar, resultando uma esmagadora predominância da legislação federal. Esta centralidade (e igualdade) normativa fez surgir a necessidade de tribunais superiores, com jurisdição sobre todo o território nacional, para uniformizar a aplicação da legislação federal dos tribunais regionais. O resultado é um Judiciário colossal, disposto em quatro instâncias de julgamento: primeira, composta por milhares de juízos locais (estaduais, federais, trabalhistas, eleitorais e militares); segunda, composta por 98 tribunais regionais (27 tribunais estaduais, 5 federais, 24 trabalhistas, 27 eleitorais, 12 militares federais e 3 militares estaduais); terceira (especial), composta por 4 tribunais nacionais superiores; e a Suprema Corte.

Nos Juizados Especiais, estaduais e federais, instituídos depois da Constituição de 1988 para desburocratizar o julgamentos de pequenas causas, funcionando paralelamente à justiça comum, paradoxalmente, o aparato também é muito complexo e exagerado, com destaque para o federal, composto de juizados locais, com possível recurso processual para turmas estaduais, depois turmas regionais, turma nacional, Superior Tribunal de Justiça e Supremo. Uma organização criada para abreviar os julgamentos de pequenas causas e crimes de menor potencial lesivo, mas com possibilidade, mesmo que remota, de seis instâncias de julgamentos. É quase surreal, considerando os propósitos da instituição.

A estrutura do Judiciário é complexa e alongada verticalmente. Dezenas de recursos processuais intermediários, permitindo mais de um julgamento em cada instância colegiada, incrementa a burocratização. A extensão normativa da Constituição Federal, regulando quase todos os aspectos da vida nacional, combinada com a inusitada competência da Suprema Corte, como corte constitucional, corte recursal e corte instrutória para crimes de réus privilegiados, propicia quase um caos jurídico, com indefensável demora para conclusão dos casos subjetivos e lentidão destruidora (até 20 anos) para formação de jurisprudência firme, permitindo reveses e viradas surpreendentes, gerando insegurança jurídica e espaços apropriados para crescimento de farta burocracia funcional e desvios impróprios.

Este aparelho descomunal, com gastos de manutenção bem acima da média dos países civilizados[ii], acossado pelas demandas decorrentes do fenômeno da urbanização, novos direitos e conscientizações trazidos pela Constituição de 1988, mais os benefícios e facilidades da informação instantânea oferecida pela internet, resultou num Judiciário que balança com 100 milhões de processos. A Suprema Corte, que deveria julgar somente questões constitucionais fundamentais, objetivas e com relevância nacional, tem um estoque de incríveis 61 mil processos para julgamento, talvez muito mais que a soma das cortes supremas de todos os países civilizados.

Em seu mais recente desabafo, o ministro Luis Roberto Barroso, na Retrospectiva de 2016, reconhece que o Supremo tem alguns problemas crônicos, destacando o alto custo e a lentidão. Após criticar o excesso de decisões monocráticas, a imensa maioria decorrente do volume de processos, um assustador estoque de 61.816 de casos pendentes de decisões, aponta que “a sociedade vem exibindo compreensível intolerância em relação à demora de julgamento das causas criminais”, concluindo que “A aceitação de que o Tribunal tem uma capacidade máxima de julgamento será uma decisão corajosa e libertadora, acabando com o tropicalismo equívoco de se admitirem muito mais processos do que a capacidade de julgar com eficiência e presteza” e que  “todos terminarão por concordar com a obviedade de que o acesso à Justiça e o devido processo legal se realizam, em regra, em dois graus de jurisdição.”[iii]

A pregação do ministro Barroso, apoiada por outros ministros e prestigiados juristas, é confirmada pela experiência histórica mundial. O Portal Europeu da Justiça mostra que nas antigas democracias do velho continente (Portugal, França, Itália, Bélgica, Suécia e Áustria) o padrão é, no máximo, de três instâncias de julgamentos para os processos subjetivos, ficando para a corte constitucional somente o controle concentrado da constitucionalidade de normas. O Brasil, com tantas ineficiências acumuladas, que tanto necessita de conclusões jurídicas urgentes, paradoxalmente, adota um sistema de quatro instâncias, repetitivo, inseguro, impróprio para as urgências da modernidade e injusto com os cidadãos pela demora.

Distorção estrutural, especialmente na instância final e diretiva, como o excesso de competência do Supremo, é patologia grave. Propaga-se por todo sistema judicial, influenciando na produtividade das instâncias inferiores, dependentes de jurisprudência constitucional. Por ser problema nacional, deve ser debatido sem paixões, interesses particulares e enfrentado com elevado espírito público. Parece induvidoso que o Poder Judiciário, além das reformas infraconstitucionais, necessita de urgente reforma estrutural, constitucional, centrada na diminuição da competência do Supremo e tribunais superiores, para questões objetivas de interesse nacional e redução de instâncias para os processos subjetivos (inclusive para reduzir o absurdo número de presos provisórios aguardando decisão até do Supremo).

Paralelo a esta monumental estrutura judicial repetitiva, acomodada em quatro estágios, funcionam outras estruturas acompanhantes: Ministério Público, Procuradorias Públicas, federais, estaduais e municipais, Advocacia Privada e assessorias, assim engrossando o custo operacional da lenta maquinaria. É um erro histórico da elite política-jurídica dirigente continuar mantendo esta formatação custosa, exagerada e disfuncional, em um país pobre, com tantas carências e urgências. Parece um despautério de propósitos: a casa da justiça causando também muita injustiça, por distorção estrutural, lentidão e ineficiência.

Não há qualquer possibilidade de retrocesso. O devido processo legal substantivo, um dos fundamentos da democracia e base do regime republicano, é completamente atendido com dois julgamentos: o primeiro por juízo monocrático local, onde as partes são ouvidas e provas são produzidas, tudo sobre o crivo do contraditório e recursos pontuais; o segundo por tribunal, juízo colegiado, equalizado por votos autônomos, onde a sentença e provas são reanalisadas, revistas, sobre o crivo do contraditório e o caso julgado novamente, muitas vezes em dois juízos (turma e seção). Este modelo atende plenamente os princípios acolhidos pelos países democráticos e regras internacionais sobre julgamentos judiciais. Os tribunais superiores e a Suprema Corte devem ficar voltados para decidir questões nacionais objetivas e constitucionais, ficando livres dos casos subjetivos, grande parte buscando procrastinação e prescrição.

É bem certo que esta mudança estrutural necessita de protagonismo do Supremo e forte apoio da academia jurídica nacional. Poderá inicialmente reduzir campo de trabalho, zonas de confortos, mas é caminho incontornável para crescimento qualitativo e prosperidade do Brasil. O histórico estado de insuficiência do Judiciário, sufocado de processos, pede um grito de mudança dos operadores do direito, um destacado movimento dos juristas, no sentido de reforma da cúpula do Judiciário, transferindo poderes e redefinindo o Supremo exclusivamente como verdadeira e eficaz corte constitucional, permitindo que os processos subjetivos sejam concluídos no máximo em segunda instância, para o bem do povo brasileiro. O Supremo precisa liderar essa mudança estrutural.

 

 

 

 

Autor: José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor universitário.


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