EUA faz política imperialista aos direitos autorais

por Túlio Lima Vianna

A Suprema Corte dos Estados Unidos criou importante e perigoso precedente para a criminalização da comercialização dos programas ponto-a-ponto.

Um software “peer-to-peer” permite qualquer pessoa compartilhar arquivos na Internet que podem ser acessados por outros usuários do mesmo programa. Através deles foram criadas imensas redes de troca de arquivos de músicas, vídeos, textos e outros softwares. Ainda que a maioria destes arquivos esteja protegida por direitos autorais e, portanto, ilegalmente compartilhada, uma parcela significativa de usuários utiliza as redes “peer-to-peer” para divulgarem seus próprios trabalhos artísticos e intelectuais.

Até então os tribunais dos Estados Unidos aplicavam aos casos envolvendo programas “peer-to-peer” o precedente Sony v. Betamax de 1984, que fundamentava a legalidade da venda do videocassete e, por extensão, de qualquer dispositivo capaz de fraudar direitos autorais. Este entendimento permitia uma certa tranqüilidade aos desenvolvedores de programas ponto-a-ponto, sempre pressionados pelas indústrias dos EUA de música e vídeo.

A decisão do caso Metro-Goldwyn-Mayer Studios Inc. v. Grokster, Ltd. afastou, porém, a aplicação do antigo precedente aos programas ponto-a-ponto, sob o argumento de que, enquanto o videocassete é usado primordialmente para se gravar um programa para assisti-lo posteriormente, os softwares “peer-to-peer” são usados principalmente para fraudar direitos autorais. Com este entendimento, a Suprema Corte tornou possível a responsabilização das empresas desenvolvedoras destes softwares pelas infrações de direitos autorais de seus usuários.

A decisão é uma verdadeira aberração jurídica e só pode ser explicada pela política imperialista e antidemocrática dos Estados Jurídicos de proteção aos direitos autorais.

Os direitos autorais têm como fundamento jurídico a necessidade de incentivo aos autores que, em tese, se sentiriam estimulados a produzirem novas invenções se fossem remunerados por suas descobertas. Paradoxalmente, a Suprema Corte dos EUA inverteu o raciocínio: protegeu os direitos autorais para que novos softwares “peer-to-peer” não fossem desenvolvidos. Cerceou a criatividade intelectual em prol da tutela dos direitos autorais.

É evidente que por trás desta decisão não se encontra a necessidade de estímulo à criatividade artística e ao desenvolvimento tecnológico. As redes “peer-to-peer” possibilitaram uma diversidade de acesso à produção cultural nunca antes imaginada. Por meio delas, qualquer pessoa conectada à Internet pode ter acesso a músicas árabes, filmes iranianos, literatura africana, dentre uma inesgotável fonte de recursos culturais jamais acessíveis pelos meios tradicionais. Difícil imaginar um maior estímulo à criatividade intelectual.

A decisão, porém, analisa os direitos autorais sob uma ótica “ianquecêntrica”, pela qual somente as criações culturais produzidas ao norte do México e ao sul do Canadá possuem valor intelectual a ser estimulado e tutelado. Neste sentido as redes “peer-to-peer” representam uma ameaça à indústria cultural, pois rompem a hegemonia da distribuição do conhecimento humano concentrada até então nos grandes meios de comunicação.

Esta forma de tutela de direitos autorais não tem por objetivo incentivar a criatividade e o desenvolvimento cultural e tecnológico, mas garantir os monopólios de distribuição das indústrias culturais estadunidenses.

Não bastasse esta política imperialista de tutela dos direitos autorais, esta decisão da Suprema Corte fundamenta-se em uma premissa jurídica de caráter nitidamente antidemocrático: a responsabilidade objetiva.

Por meio da responsabilidade objetiva pune-se indiscriminadamente o responsável por um resultado danoso sem se levar em conta sua intenção ou mesmo sua culpa. Afasta-se assim da discussão a boa-fé do desenvolvedor do software. Não se debate se o programa foi criado para fins lícitos ou ilícitos, mas tão-somente se algum usuário o utilizou para violar direitos autorais. Pune-se pelo efeito, não pela causa.

A prevalecer tal entendimento da Suprema Corte, seria desejável que, por analogia, os mesmos juízes também decidissem que as empresas de armas estadunidenses possam responder pelas vítimas das armas por elas fabricadas. Irrelevante se foram fabricadas e vendidas para fins de defesa ou de policiamento, pois o que interessa é tão-somente o resultado: a morte.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, porém, parece valorar mais os direitos autorais do que a própria vida. Talvez porque seja a vida de sua indústria cultural que esteja em jogo.

Revista Consultor Jurídico

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