Exame de ordem, sim; execução em ordem, não

O exame de ordem é objeto de controvérsia: de um lado, os que defendem a sua extinção; de outro, os que advogam a sua subsistência. Julgo prudente afastar-se deste dilema reducionista, porque ambas as posições não se justificam à luz da razão. Questionar a constitucionalidade do exame de ordem é a estratégia mais eficaz para enfraquecer o movimento que o contesta. De igual forma, insistir na moldura que o formata é o caminho mais curto para a sua deslegitimação.

Creio ser possível uma via alternativa que combine o respeito à Constituição Federal e o cumprimento da finalidade do exame de ordem. Elejo como pano de fundo para essa discussão um fato relevante que norteia toda a problemática: É absolutamente desproporcional a relação existente entre a excessiva importância que a OAB confere ao exame de ordem (instrumento que, em tese, visa a elevar o nível técnico dos advogados, combatendo o bacharel imperito) e o escasso número de processos administrativos que abarrota os arquivos da OAB.

Explico: quase 98% dos processos administrativos contra advogados foram gerados a partir de denúncias por má conduta disciplinar de natureza ética e não por imperícia, vício perseguido pelo exame de ordem. Lembre-se: neste ponto, o exame de ordem não detecta quem, de fato, denigre a advocacia, afinal caráter não se mede por gabaritos. Mas como se discute o exame de ordem, vamos ao diagnóstico e depois à terapêutica:

a) Em regra, as provas são mal elaboradas. A técnica é deficiente porque privilegia a “decoreba” em detrimento da inteligência argumentativa.

b) O grau de dificuldade supera o patamar das provas de concurso para as carreiras de Estado. A continuar o ritmo de crescente dificuldade nas provas, mais fácil será o ingresso no Instituto Rio Branco.

c) Na primeira fase da prova, proíbe-se a consulta aos códigos. A legislação brasileira contém mais de 7.500 artigos e as questões, não raro, resvalam para detalhes microscópicos de dispositivos legais, surpreendendo com “pegadinhas” sádicas os examinandos de boa-fé. Este método é despropositado, pois não avalia o bom advogado que, na prática profissional, sempre recorre à consulta e à pesquisa, aprimorando a argumentação jurídica para fundamentar com boa técnica o pleito que deduz.

d) O exame de ordem exige do bacharel profundo conhecimento de todas as disciplinas jurídicas. Ocorre que este modelo de advogado (uma espécie de Rui Barbosa globalizado) não existe no mercado de trabalho nesta era de especialização. Arrisco afirmar: não há advogado, mesmo famoso e renomado, que seja aprovado no exame de ordem em Mato Grosso do Sul. Ele “gabarita” a matéria de sua especialidade, mas terá de ler iídiche para decifrar as questões que fogem de sua área de concentração. Ou algum tributarista renomado deste estado sabe nos dizer o que significa o princípio da “continuidade normativa típica”? A propósito, esta questão realmente foi indagada dos candidatos, porém restou anulada, o que confirma a tese de que as provas são mal elaboradas.

e) Na segunda fase do exame de ordem, as correções são arbitrárias, porque desprovidas de critérios e fundamentos. A caneta vermelha reina soberana. Ela e o vazio da fundamentação. Os candidatos recebem a prova rabiscada de tinta vermelha, porém ignoram a razão, o motivo, o grau, o alcance e o conteúdo de seus supostos erros. O direito de saber a razão do seu erro é elementar, até porque se o objetivo da instituição é elevar o nível dos que ingressam na advocacia, o mínimo que deveria proporcionar ao candidato é a informação sobre o erro para que não mais o reitere, aperfeiçoando-se como bacharel e futuro advogado.

f) O leitor pode rebater-me dizendo: “Ora, se a correção é arbitrária e não há sequer fundamentação, então por quê o bacharel, inconformado, não recorre e provoca reexame da prova por uma comissão da OAB ?” A resposta é categórica: baixou-se de forma draconiana uma resolução segundo a qual não se conhece do recurso que tenha por base o critério de correção, apenas o recurso que questione as perguntas da prova.

Conclusão: na prática, não há recurso. Não se discute a necessidade do exame de ordem, aliás a maioria esmagadora dos bacharéis reconhece e louva o propósito essencial de uma exame de suficiência. Entretanto, o atual formato das provas não traduz o propósito de selecionar, antes aparenta franco interesse de restringir o mercado profissional (no plano psicanalítico, não estaria embutido aí algum medo inconsciente de competição?) aos novos diplomados.

É possível e desejável que se proceda a um exame de ordem compatível com o propósito que o inspirou. O que não se pode tolerar é que sob o pretexto de impedir o acesso dos imperitos, tolha-se o acesso dos que possuem razoável conhecimento das disciplinas jurídicas. Presto o meu testemunho de que neste latifundiário índice de reprovação, não se encontram apenas os ineptos (estes devem ser reprovados mesmo), mas bacharéis dotados de boa cultura jurídica e suficiente conhecimento das disciplinas lecionadas nas faculdades de Direito.

Não são ainda “Juristas”, mas muitos poderão vir a sê-lo se a OAB fizer uma auto-crítica e reconhecer que o seu comportamento restritivo está atingindo pessoas perfeitamente aptas ao exercício profissional. A propósito, uma reflexão: quase 90% dos integrantes do corpo diretivo da OAB de MS são professores universitários nas faculdades de Direito de MS. Para fazer o exame de ordem, o candidato deve ser diplomado. Se está diplomado, é porque foi aprovado pelos professores das faculdades.

Se muitos dos professores integram a OAB de MS, de duas uma: ou os candidatos sofrem de uma amnésia coletiva na hora da prova e esquecem todo o conteúdo ministrado por seus professores que, aliás têm assento na OAB ou os professores, repito, muitos dos quais integram o corpo diretivo da OAB estadual, têm participação direta na reprovação de seus pupilos, ensinando-lhes aquém do suficiente. Não creio na amnésia coletiva, e, pasmem, não creio também que os professores ensinem mal. Insisto: o problema central está no excesso injustificável de rigor nas provas que não consegue detectar apenas o imperito, levando de roldão uma gama considerável de candidatos portadores de suficiente e razoável conhecimento jurídico.

Enquanto não se unifica nacionalmente o exame de ordem, urge modificar a estratégia de seleção. As provas devem perseguir a finalidade da suficiência, abandonando a pretensão quixotesca e irreal de se atingir, por via oblíqua, um grau superlativo de excelência enciclopédica de um advogado espectral. Ele poderá até existir no momento do exame, mas depois de aprovado ele voltará a ser especialista se for dotado de instinto de sobrevivência. As provas devem ser corrigidas e fundamentadas. Os recursos devem ser admitidos, conhecidos e analisados.

Não há porque temer o ingresso de novos advogados em um país carente de direitos e repleto de injustiças. Nilo Batista, um expoente da profissão e militante da cidadania, acertou: “Não existem no Brasil advogados demais para o trabalho da Justiça. O que existe é realmente uma injustiça demais á espera do trabalho dos advogados.”

Exame de ordem, sim; execução em ordem, não!

Fábio Trad é advogado e professor-mestre em Direito.

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