Excessos da PF não se comparam aos mandados absurdos

por Arnaldo Malheiros Filho

Não é de hoje que os advogados nos queixamos das dificuldades sofridas no exercício da profissão, para proporcionar aos cidadãos que nos constituem o respeito a seus direitos e o acesso eficaz à prestação jurisdicional. Da prepotência de autoridades à mera incompreensão da opinião pública, nossa estrada é coberta de espinhos.

Em 1973, em pleno negror dos anos de chumbo, recebi minha carteira de advogado das mãos de Cid Vieira de Souza e dele ouvi: “Vivemos num regime de força e a Ordem dos Advogados não tem força. Salvo a força moral, que estará sempre à disposição deles”. Não imaginávamos que o Brasil iria viver tempos piores.

É que hoje, com intensidade nunca vista nos tristes momentos da ditadura militar, escritórios de advogados são invadidos por absurda e ilegal ordem judicial. Sim, juízes que ignoram a importância do papel da advocacia para a sociedade — que o povo brasileiro proclamou em sua Constituição — levianamente assinam mandados “ao portador”, em branco, determinando à Polícia Federal que apreenda tudo o que bem entender, todos os computadores, todos os arquivos, todos os papéis, “correspondência aberta ou fechada” (sic), enfim, que inviabilize a continuidade do exercício profissional, que escancare a intimidade desses advogados (de um deles se violou o testamento cerrado que guardava no cofre, à cata de “provas” contra um de seus clientes), que exponha as entranhas de seus constituintes, minando seu direito de defesa.

A onda chega em crescendo, como se vem dando a reação da classe. O presidente da OAB paulista, Luiz Flávio Borges D’Urso, vem agindo com firmeza e correção, seja ao se recusar a indicar quem acompanhe essas diligências e cooneste o deslavado arbítrio, seja levando a posição da Ordem ao ministro da Justiça e ao Judiciário, seja conclamando à união de todos na defesa do bom Direito.

A Polícia Federal tem cometido excessos, todos o sabem, apelando à pirotecnia (até com explosivos para arrebentar o portão da casa de um homem que pensou estar sendo assaltado!), convocando TVs selecionadas para documentar espetáculos circenses realçados por metralhadoras e algemas usadas contra pessoas que nunca demonstraram periculosidade física.

Tais excessos, porém, são um nada se comparados à monstruosidade dos mandados que a polícia tem o dever de cumprir.

Da indignação e da dor causadas pelas feridas expostas tendem a surgir exageros. Diz-se até mesmo que essa história de cumprir ordens era a defesa dos nazistas em Nuremberg, uma vez que ordens inconstitucionais não podem ser cumpridas.

Ora, se dermos à polícia o controle da constitucionalidade das decisões judiciais, chafurdaremos ainda mais na anarquia e, muitíssimo em breve, haveremos de nos arrepender: diante do alvará de soltura, dirá o beleguim que libertar um criminoso é inconstitucional…

Por isso não comungo das críticas de alguns dos meus pares ao ministro Márcio Thomaz Bastos, cuja pasta abriga a Polícia Federal. Mais do que líder da classe, Márcio é um grande advogado, alguém cuja vida foi percorrer esse caminho de pedras entre o arbítrio e a incompreensão na aventura da advocacia. Sempre foi e continuará a ser advogado, ainda quando sujeito às limitações inerentes ao cargo. Para a classe é muito melhor ter um aliado nesse posto do que pessoas sem nenhuma noção do que seja nosso métier.

E Márcio Thomaz Bastos é um interlocutor seguro neste momento de crise, dentro daquilo que, no Executivo, é possível fazer.

Mas, na minha opinião, é no Judiciário que se instalou o tumor e é por lá que deve ser extirpado.

A justiça é uma das tarefas inerentes à existência do Estado. E a ela – diz nossa Constituição – o advogado é indispensável e, por isso, inviolável. Inviolável a quê? Quem poderia querer violar o advogado, a não ser uma investigação criminal? A vingança, a perseguição, a retaliação?

Ora, contra o abuso de poder e o desvio de finalidade são imunes os médicos, os alfaiates e todos os que vivem num Estado de Direito. A inviolabilidade do advogado foi inserida na Lei Fundamental para proteger seus clientes dos abusos perpetrados na investigação criminal.

Além de afrontar esse preceito fundamental, as sucessivas decisões judiciais que combatemos agridem também as garantias de privacidade, inviolabilidade da correspondência e comunicação de dados, de ampla defesa e ao devido processo legal.

Está formado o quadro para que a Ordem dos Advogados, por seu Conselho Federal, intente a argüição de descumprimento fundamental perante a Suprema Corte, independentemente do que esse conselho pense sobre a existência desse remédio processual, pois ele existe e nos socorre.

Façamos, os advogados, o que sabemos: advogar, requerer em Juízo. Conclamemos o Supremo Tribunal Federal a dar um basta a esse abuso a que a advocacia está submetida, por sucessivas e atrabiliárias decisões judiciais.

Batamos às portas do Supremo, pedindo que declare como haverão de ser cumpridos os preceitos fundamentais que estão sendo corriqueiramente violados por gente sem formação que os capacite a entendê-los.

Não queremos privilégio, mas queremos a garantia de que a informação – registrada em qualquer tipo de suporte físico (papel, disco rígido, disquete, etc.) – em poder de um advogado é sempre sigilosa.

A Alta Corte não nos há de faltar, pois assim fazendo estará dando vida à Constituição e assegurando o direito de qualquer cidadão de ter advogado em quem possa confiar.

Revista Consultor Jurídico

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