Excessos da regulação paulistana sobre aplicativos de transporte

Autor: Floriano de Azevedo Marques Neto (*)

 

A recém editada Resolução 16/2017 do Comitê Municipal de Uso do Viário (CMUV) de São Paulo, pretende regular a atividade de transporte individual privado de passageiros por meio das Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs), disciplinando o cadastramento de motoristas junto a plataformas que intermediam a relação entre motoristas e passageiros cadastrados (UBER, Cabify e 99Taxi).

A Resolução segue na linha do Decreto 56.981/2016. Na verdade, aprofunda distorções e exageros da regulação municipal. Pela norma, o exercício dessa atividade privada depende do cumprimento de requisitos pelos motoristas e pelas próprias OTTCs, como o cadastramento do próprio motorista e do veículo (sob várias condicionantes) utilizado perante o Departamento de Transporte Público. Num exemplo de arroubo regulatório, chega-se a definir o traje que motoristas devem vestir.

O transporte individual privado de passageiros é atividade econômica privada, explorada sob o pálio da livre iniciativa (conforme artigo 170, CF). Sua exploração está sujeita a regime de direito privado, conforme prevê a Política Nacional de Mobilidade Urbana, instituída pela Lei Federal 12.587/2012, e seus artigos 4º, X, 3º, § 2º, I, b, II, b, III, b. Não se trata de serviço público ou atividade reservada ao Estado.

Admitamos que alguma regulação sobre esta atividade seja necessária. O transporte individual privado de passageiros liga-se com o tema da mobilidade urbana, especialmente nas metrópoles. As novas tecnologias permitem a intermediação instantânea e simples entre motoristas e potenciais usuários. Se a atividade depende de bens públicos – vias – e aumenta a taxa de ocupação de bens móveis existentes, as tecnologias racionalizam viagens e aumentam a mobilidade.

A Lei 12.587/2012 previu uma série de competências regulatórias sobre trânsito e mobilidade urbana. Contudo esta lei não autorizou o município a regular livremente essa atividade. Tampouco lhe permite impor ônus irrestritos aos motoristas e às empresas que intermediam viagens.

Há limites regulatórios claros que estão desrespeitados: (i) a competência federativa, restritas aos assuntos de interesse local e de ordenação do viário urbano (artigo 30, incisos I e VIII, CF); (ii) a forma de regulação, sendo que restrições da atividade econômica devem estar fundamentadas em lei (artigo 5º, II, e 170, parágrafo único, CF); e (iii) o conteúdo da regulação, que deve ser a necessária, adequada e proporcional aos fins pretendidos. A regulação não pode derrogar a livre iniciativa e a concorrência (artigo 170, CF). Não pode o município regular o que quiser, da forma que quiser e o quanto quiser.

A Resolução CMUV 16/2017 é exemplo de má regulação: desborda os limites materiais, é inapropriada para o que pretende, viola os limites constitucionais e a competência municipal. Afinal, como enquadrar nos lindes do interesse local dizer como um motorista, em uma atividade econômica, deve se trajar? Ou como sustentar que o caráter local pode se traduzir na “restrição da atividade ao local do emplacamento”.

A pretexto de regular o uso intensivo do viário urbano, a Resolução adentra intensamente na própria atividade econômica privada, extrapolando as competências municipais, impondo aos motoristas ônus desnecessários ou sem relação com os fins da regulação, e de forma (norma de terceiro grau) e intensidade absolutamente indevidas.

A Resolução exige que o veículo seja registrado e emplacado no Município de São Paulo (artigo 7º, III). Uma vez que o registro do veículo demanda a comprovação de residência no respectivo local (artigo 120, Código de Trânsito Brasileiro), a consequência dessa exigência é uma só: restringir o exercício da atividade de transporte individual privado de passageiros apenas aos motoristas que residam no Município de São Paulo, ou que tenham acesso a veículo pertencente a alguém que resida no Município. Não é preciso ser jurista para perceber o grau de inconstitucionalidade.

A exigência de emplacamento no município de São Paulo como condição para o exercício de atividade privada de transporte individual de passageiros limita a livre iniciativa e o direito de propriedade dos motoristas. Pela Resolução, a atividade fica reservada a moradores de São Paulo. Com cinco séculos de atraso, o município quer reeditar o regime das cartas de comércio dos burgos medievais. Um claro tratamento discriminatório, sem qualquer relação com o interesse local ou com atenção aos objetivos para os quais a lei autoriza alguma regulação.

Motoristas paulistanos conduzem com mais segurança que os demais condutores da grande São Paulo? Automóveis emplacados na capital são só por isso mais confortáveis ou de qualidade superior?

Tal reserva restringe o número de motoristas aptos a exercer a atividade, baseada em critério discriminatório e sem qualquer relação com os objetivos legais. Exclui milhares de pessoas de utiliza plataformas tecnológicas para gerar renda a partir de seus próprios veículos.

Ou bem a restrição tem fins arrecadatórios (forçar emplacamentos na capital e elevar receitas tributárias) ou visa a impor limitação indevida. Em uma ou outra hipótese, a restrição é ilegal e causa dano aos potenciais usuários do serviço. A regulação não pode ter fins arrecadatórios, não fosse pelo desvio de finalidade, seria pelos princípios da ordem tributária (artigo 150, II e V, CF). Este desbordamento viola mesmo o cerne da Ordem Econômica fundada no trabalho e na livre iniciativa (artigo 1º, IV, e artigo 170, da Constituição Federal). Afronta a livre locomoção no território nacional, direito individual fundamental entre nós (artigo 5º, XV, CF). A restrição seria totalmente imprestável, não fosse servir como bom exemplo de má regulação a ser explorado em sala de aula.

A idade veicular máxima de 5 anos para cadastro dos veículos igualmente se mostra inócua e inconstitucional. Segurança veicular não é relação direta da idade veicular mínima: há veículos com mais de 5 anos que podem, sim, oferecer integral segurança para os passageiros. Inexiste qualquer fundamento técnico ou legal para vincular a segurança veicular ao limite máximo de idade do veículo. O CTB (artigo 103) disciplina condições de segurança veicular e não prevê novidade entre tais requisitos. Inovando, a normativa municipal fere a competência federal reservada (artigo 22, XI, CF). Temos então restrição indevida e inconstitucional à propriedade privada, limitando o aproveitamento econômico de um bem sem qualquer embasamento com igual afronta à livre iniciativa.

Há, ainda, extensão das penalidades para os motoristas cadastrados (artigo 14 e 15, Resolução). Pelo Decreto nº 56.981/2016. credenciamento perante a Prefeitura é da empresa OTTCs, não do motorista. Este efetua cadastro junto a quantas empresas de tecnologia lhe for conveniente, numa relação contratual regida pelo direito privado. Descabe à Resolução estender a aplicação de penalidades aos motoristas.

Não fosse o bastante, a Resolução estabelece trajes obrigatórios e outros vedados para motoristas (artigo 11, I e II): camisa social ou camisa polo, sapato social ou, no mínimo, sapato esporte fino; camiseta e calça esportiva, e sapato que não seja “fino”, são expressamente vedados. O conteúdo dessas disposições não se destaca apenas pelo ridículo das estipulações. Tamanho detalhamento traz apreensão: a qual título o Município se arrola no papel de codificador de etiqueta, determinando qual roupa é adequada e qual não é? Mas o mais grave é o caráter discriminatório: a motorista mulher, como deverá se vestir? Com camisa polo e sapato social? Ou um scarpin será tido por sapato “fino”?

O absurdo ressalta a completa ausência de conexão entre a exigência de trajes obrigatórios e as finalidades visadas pela regulação. O único momento em que o Código de Trânsito Brasileiro exigiu traje, o fez expressamente indicando sua relação com o quesito de segurança (proibiu a direção de veículo com o uso de “calçado que não se firme nos pés ou que comprometa a utilização dos pedais”). Exigências de trajes, desde que não discriminatórias, até poderiam ser feitas no âmbito da relação contratual. Mas, em hipótese alguma, poderia o poder público municipal dizer (especificando em detalhes) como os motoristas devem se vestir no exercício de uma atividade privada.

As previsões trazidas pela Lei 12.587/2012 quanto ao transporte individual de passageiros não permitem a amplitude e intensidade dos ônus que foram impostos aos motoristas e às OTTCs pela regulamentação do Município de São Paulo. A Resolução CMUV 16/2017, portanto, desborda grosseiramente os limites de forma, competência e conteúdo, que devem ser observados pelo poder municipal na regulação da atividade.

A regulação estatal deve se assemelhar aos antibióticos: é necessária, mas ministrada sem critério ou em exagero faz mal à saúde jurídica e econômica. O poder público municipal tem limites de forma, abrangência e intensidade para interferir na ordem econômica e regular uma atividade privada. Limites que a Resolução desconsidera.

Desvirtuar a atividade econômica, a pretexto do exercício da competência regulatória municipal, distorce os fins que devem ser perseguidos pelo poder público, no manejo de seus instrumentos regulatórios. Afronta a livre iniciativa e a livre concorrência, valores caros à ordem econômica constitucional. Mostra ou sanha arrecadatória ou um certo ludismo regulatório, matando a inovação tecnológica em prejuízo do cidadão. A depender da Prefeitura Municipal de São Paulo, ainda estaríamos no tempo das liteiras.

 

 

 

 

Autor: Floriano de Azevedo Marques Neto  é advogado e sócio do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.


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