Por Fábio Henrique Fernandez de Campos
A Lei 12.403/2011, recentemente publicada, trouxe novamente à baila, em nosso sistema processual penal, dentre outras inovações e “rediscussões” trazidas na matéria relacionada a “prisões, medidas cautelares e liberdade provisória”, o assunto atinente à causa de exclusão de ilicitude quando do recebimento do auto de prisão em flagrante, pelo magistrado (artigo 31, parágrafo único).
Já sabemos que, após a vigência do diploma legal em comento, ao receber o Auto de Prisão em Flagrante elaborado pela Autoridade Policial, deverá, de plano, o magistrado manifestar-se em três caminhos: ou relaxa a prisão em flagrante (ora denominada de pré-processual), ou concede liberdade provisória (com ou sem aplicação do leque de nove possíveis medidas cautelares diversas da prisão, previstas no artigo 319 do CPP), ou manifesta-se pela conversão do flagrante em prisão preventiva, caso entenda ser medida necessária e adequada ante fundamentos fáticos e jurídicos analisados.
Pois bem, mas e diante de um fato flagrante em que, extreme de dúvidas, fez-se visível a ocorrência de excludente de ilicitude? Deve a Autoridade Policial, mesmo assim, lavrar auto de prisão em flagrante, prendendo uma pessoa sem indícios de crime, para somente depois o juiz se manifestar sobre liberdade provisória? A doutrina diverge no assunto que, ora, torna-se ponto primeiro de nosso estudo.
O novo parágrafo único do artigo 310 do Código de Processo Penal assim explana:
Art.310.
(…)
Parágrafo Único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do artigo 23 do Decreto-Lei nº2848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação (NR).
A norma acima (exceto pela atualização da remissão ao artigo 23 do Código Penal) já era prevista no Código Processual Penal antes da Lei 12.403/2011. Mas agora não há mais a aceitação “automatizada” da lei que prevê que o preso em flagrante assim o permaneça durante todo o decorrer processual por “força” da própria prisão em flagrante, apenas por regrar a lei que o crime seja “insuscetível de liberdade provisória” então, a suposta utilidade processual de obrigatoriamente se prender em flagrante uma pessoa que agiu sob excludente de ilicitude, se é que existia, tornou-se ainda mais vazia.
Assim, diante de um fato notório de causa de exclusão de antijuridicidade, indaga-se: prende-se em flagrante? Submete-se essa pessoa, mesmo com todos indícios de inocência, a amargas horas numa cadeia pública em condições degradantes, até que um magistrado, horas após, profira a decisão e acione um oficial de Justiça para notificar da expedição de um “alvará de soltura” àquele cidadão que sequer praticou crime?
Parece-me não ser essa a melhor opção que coaduna com a lei e, sobretudo, com a presunção de inocência constitucional. Por que não o delegado de Polícia, em análise dos fatos, deixar de realizar a prisão em flagrante, adotando cautela de instaurar inquérito policial, com posterior remessa do feito ao titular da ação penal? Que prejuízo há nisso à persecução penal estatal?
Pois bem, como anteriormente dito, a doutrina diverge no assunto. Vejamos, primeiramente, o pensamento explanado por Guilherme de Souza Nucci, sobre o tema:
(..) “confirmado o fato, a autoridade policial deve lavrar, sempre, o auto de prisão em flagrante tão-logo tome conhecimento da detenção ocorrida, realizando apenas o juízo de tipicidade, sem adentrar as demais excludentes do crime”¹ (Nucci, Guilherme de Souza- Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: RT 2008, p.61.)
Para o autor citado, o delegado de Polícia somente tem atribuição para fazer um “juízo de tipicidade” dos fatos, sem adentrar nas demais excludentes.
Não é esse o pensamento explanado pelo Pprofessor Silvio Maciel em seu Prisões e Medidas Cautelares, livro coordenado por Luiz Flávio Gomes e Ivan Luís Marques, com colaboração, também, dos renomados doutrinadores Alice Bianchini e Rogério Sanches Cunha, obra em que se comenta o parágrafo único do artigo 310 do CPP, nos seguintes termos:
(…) “O dispositivo fere até mesmo o senso comum. Tomemos alguns exemplos: Um atirador de elite, após suas negociações frustradas, mata o infrator que mantinha o refém sob a mira do revólver; o marido entra em luta corporal com o assaltante e consegue matá-lo quando o infrator prepara-se para executar a esposa; policiais, ante a recusa do morador, arrombam a porta (art.245 §2 do CPP) e prendem um perigosíssimo procurado, em cumprimento de mandado de prisão; o boxeador, dentro das regras do jogo, fere o adversário. A seguir a lógica do CPP, nessas hipóteses o Delegado de Polícia (que para parte da doutrina deve fazer apenas um juízo de tipicidade do fato), deve autuar em flagrante o atirador de elite (que agiu no estrito cumprimento do dever legal), o marido (que agiu em legítima defesa da esposa), os policiais (que agiram no estrito cumprimento do dever legal) e o boxeador (que agiu no exercício regular de direito). E somente depois o juiz é quem deve conceder a liberdade provisória ao preso, com compromisso de ele comparecer a todos os atos do processo, sob pena de revogação da liberdade”.² (Gomes, Luiz Flávio. Et all. Prisões e Medidas Cautelares. Comentários à Lei 12403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: RT 2011. Pg.137.)
E, adiante, continuam abordando de forma exaustiva, mas não menos esclarecedora, o assunto:
(…)“A verdade é que o Delegado de Polícia – autoridade com poder discricionário de decisões processuais- analisa se houve crime ou não quando decidir pela lavratura do Auto de Prisão. E ele não analisa apenas a tipicidade, mas também a ilicitude do fato. Se o fato não viola a lei, mas ao contrário, é permitida por ela (art. 23 do CP) não há crime e, portanto, não há situação de flagrante. Não pode haver situação de flagrante de um crime que não existe (considerando-se os elementos de informação existentes no momento da decisão da autoridade policial). O Delegado de Polícia analisa o fato por inteiro. A divisão analítica do crime em fato típico, ilicitude e culpabilidade existe apenas por questões didáticas. Ao Delegado de Polícia cabe decidir se houve crime ou não. E o artigo 23, I a III, em letras garrafais, diz que não há crime em situações de excludentes de ilicitude”.³ (Gomes, Luiz Flávio, et all. Op.cit. pg.138.)
Passemos a analisar essa questão mais a fundo e, para isso, iremos pelo caminho do conceito analítico de crime.
Conceito analítico de crime
Para se concluir pela existência de uma infração penal, faz-se necessário que um agente tenha praticado um fato típico, antijurídico e culpável. Assim pensa a maioria doutrinária (a par de minorias notáveis como Damásio de Jesus, Mirabete e Delmanto, quais entendem ser o crime apenas o fato típico e antijurídico).
Adotando-se esse posicionamento majoritário, podemos citar as lições Welzel, comentado por Rogério Greco em seu Curso de Direito Penal- Parte Geral, que assim explana:
“a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são três elementos que convertem uma ação em um delito. A culpabilidade- a responsabilidade pessoal por um fato antijurídico- pressupõe a antijuridicidade do fato, do mesmo modo que a antijuridicidade, por sua vez, tem de estar concretizada em tipos legais. A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupõe o anterior”.¹ (Apud Greco, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral. São Paulo: Impetus 2007. 9º edição. Pg.315.)
Logo, para se falar em antijuridicidade, temos que analisar o fato típico em si e em seguida, o todo, apresentado inicialmente em fatos à autoridade policial. Vejamos como essa mesma questão se explica ainda mais se analisarmos o tema sob a ótica dos conceitos da Tipicidade Conglobante.
Pela tipicidade conglobante, um tipo penal como o artigo 121 do CP, que normatiza de forma proibitiva a conduta “matar alguém”, somente pode abranger um tipo incriminador chamado “homicídio” quando alguém mate sem que esteja amparado por alguma causa de justificação, ou seja, que a conduta de matar seja de fato antinormativa.
Logo, a conduta típica somente pode ser assim considerada como aquela conduta legitimamente contrária ao ordenamento jurídico, contrária, pois, à norma penal. Um homicídio praticado em legítima defesa não pode ser considerado conduta antinormativa. Então, não há que falarmos em crime, não se havendo materialmente sequer um fato dotado de tipicidade penal.
Um exemplo clássico de aplicação da tipicidade conglobante é o do policial que arromba a porta de uma residência, cumprindo mandado de busca e apreensão, após resistência do morador. Ele agiu sob o amparo da Lei. Deveria ser ele considerado autor de um fato típico? Importantes nomes da doutrina entendem que sim.
Desta forma, adequando-se ao pensamento de que o delegado de Polícia exerce mero juízo de tipicidade (a exemplo do renomado Guilherme de Souza Nucci, acima citado), a autoridade policial deveria, ante o caso de um atirador de elite que eliminou o infrator antes que a vítima fosse executada, lavrar auto de prisão em flagrante por “conduta típica” em suposto crime de homicídio e, posteriormente (e somente posteriormente) encaminhá-lo ao magistrado para que, somente ele, delibere sobre a excludente de ilicitude e eventual liberdade provisória do suposto “criminoso” que sobretudo agira em conformidade com a lei.
Lógico que seria esse um absurdo sem precedentes na prática, já que mesmo o senso comum gritantemente ensina não haver como proibir o que o próprio Direito ordena ou mesmo fomenta.
Da mesma forma, se o marido mata o assaltante que, invadindo sua residência, se preparava para executar a esposa, não pode aquele ser constrangido a figurar como sujeito passivo de um auto de prisão em flagrante, permanecendo horas a fio sob o constrangimento do cárcere, mesmo sem qualquer indício de ter praticado um delito. Do contrário, teríamos que afirmar que a lei penal permite uma conduta, mas que a lei processual penal determina que ante essa mesma conduta se submeta o autor à prisão, seja ela “pré” ou “pós” processual.
Delegado de Polícia é cargo de decisões processuais, tal como consta na renomada doutrina acima referida. Justamente por isso é que se trata de cargo ocupado exclusivamente por bacharéis em Direito, em acirrados concursos públicos.
Assim sendo, em se falando de caso onde não haja dúvidas sobre existência de causa de exclusão de antijuridicidade, nada havendo que se falar em crime, não deve o delegado de Polícia lavrar o auto de prisão em flagrante.
Caso haja fatos novos que divirjam dos elementos até então colhidos, indicando possível existência de crime, nenhum prejuízo há que num inquérito policial instaurado por portaria se dê seguimento às investigações. Se for o caso, aplica-se em vista do novo fato, a representação pela prisão preventiva ou outra medida cautelar.
Parece claro que, no estatuto vigente, é natural que da investigação possa se chegar a um crime e não que da prisão se parta para constatação da inexistência dele. Submeter alguém que flagrantemente agiu em excludente de ilicitude, a uma prisão em flagrante, fazendo-se amargar, horas que sejam, recolhido ao cárcere, esperando uma decisão judicial que, da mesma forma provisória, venha a confirmar o que já era óbvio aos olhos da autoridade policial, é desvirtuar a aplicação do sistema processual penal vigente e, por que não dizer, “correr na contramão da história”.
Por todo o exposto, ante fato cristalino da existência de excludente de ilicitude, deve o delegado de Polícia preservar a colheita da materialidade e adiante apurar os fatos em inquérito policial instaurado por portaria. Havendo fatos novos que divirjam dos elementos apurados inicialmente, apontando para não existência da causa excludente de ilicitude, nada obsta que se represente à autoridade judiciária pela prisão preventiva ou demais medidas cautelares, caso seja necessária e adequada a medida excepcional, aos olhos da autoridade que representou ou requereu e do juízo que eventualmente a deferiu.