Autora: Simone Anacleto (*)
Como já ressaltei em artigos anteriores, encontram-se em tramitação alguns projetos de lei que pretendem modificar o sistema de cobrança de créditos tributários existente (dentre outros, PL 2.412/07, PL 5.080/09, PL 3.337/15 e PLC 181/15). Tais projetos, contudo, partem de uma premissa equivocada, que é a de que a cobrança da Dívida Ativa, como hoje é feita, revela-se ineficiente.
Em apertada síntese, pode-se dizer que os equívocos dessa premissa residem, primeiro, no fato de que simplesmente não há dinheiro ou patrimônio para pagar o montante total inscrito; segundo, na incompreensão do papel da Dívida Ativa no sistema de cobrança, como um todo.
Assim, a baixa arrecadação oriunda da Dívida Ativa, em si, não significa a ineficiência de todo o nosso sistema. Seja como for, essa foi a premissa adotada, por exemplo, na Exposição de Motivos Interministerial 186/2008 – MF/AGU, que acompanhou o Projeto de Lei 5.080/09:
2. Atualmente, a execução fiscal no Brasil é um processo judicial que está regulado na Lei nº 6.830, de 1980. Nos termos desta Lei, todo processo, desde o seu início, com a citação do contribuinte, até a sua conclusão, com a arrematação dos bens e a satisfação do crédito, é judicial, ou seja, conduzido por um Juiz. Tal sistemática, pela alta dose de formalidade de que se reveste o processo judicial, apresenta-se como um sistema altamente moroso, caro e de baixa eficiência.
3. Dados obtidos junto aos Tribunais de Justiça informam que menos de 20% dos novos processos de execução fiscal distribuídos em cada ano tem a correspondente conclusão nos processos judiciais em curso, o que produz um crescimento geométrico do estoque. Em decorrência desta realidade, a proporção de execuções fiscais em relação aos demais processos judiciais acaba se tornando cada vez maior.
4. Note-se que o número de execuções fiscais equivale a mais de 50% dos processos judiciais em curso no âmbito do Poder Judiciário. No caso da Justiça Federal, esta proporção é de 36,8%, e retrata o crescimento vegetativo equivalente ao da Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
5. Consoante o relatório “Justiça em Números”, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2005, a taxa média de encerramento de controvérsias em relação com novas execuções fiscais ajuizadas é inferior a 50% e aponta um crescimento de 15% do estoque de ações em tramitação na 1ª instância da Justiça Federal. O valor final aponta para uma taxa de congestionamento médio de 80% nos julgamentos em 1ª instância (…)
Como se pode ver do texto acima, à premissa da ineficiência do sistema de cobrança, face à baixa arrecadação da Dívida Ativa, alia-se o argumento do excesso de execuções fiscais em andamento.
Com efeito, é inegável que tem havido um constante crescimento vegetativo do número de execuções fiscais em relação às outras espécies de ações em tramitação perante o Poder Judiciário. Esse dado não pode ser desconsiderado, entretanto também deve ser devidamente interpretado, como se passa a fazer a seguir.
Deve-se recordar que, na Justiça Federal, tramitam basicamente as causas de interesse da União, suas autarquias e fundações, bem como de empresas públicas federais (tais como a Caixa Econômica Federal ou a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos)[1]. Não há, em princípio, na Justiça Federal, a tramitação de lides entre cidadãos comuns. Nesse contexto, não deveria causar estranheza que pouco mais de um terço do total de demandas seja composto de execuções fiscais.
Quanto aos órgãos judiciais nos Estados, números equivalentes a mais de 50% do total referem-se às execuções fiscais tanto de Estados-membros, quanto de municípios e suas autarquias e fundações. Ainda assim, parece ser um número expressivo. No entanto, também aqui, os números podem significar o oposto do que aparentemente, à primeira vista, indicam.
Ocorre que já há estudos que apontam que empresas, por exemplo, preferem apostar em formas de solução de litígios alternativas ao Judiciário, tais como arbitragem ou negociação direta[2]. Não poderia ser essa uma causa de seu número reduzido em relação ao montante das execuções fiscais? Na verdade, o fato de existirem muito mais execuções fiscais do que ações judiciais entre empresas, por exemplo, não significa necessariamente que a Lei de Execuções Fiscais seja ruim, visto que o que parece estar ocorrendo é que, simplesmente, para a solução de questões comerciais, as empresas preferem valer-se de outros meios que não o Judiciário.
A propósito, raciocínios que costumam comparar a eficiência das cobranças na área privada em relação às cobranças pela via da execução fiscal também partem de premissas falsas. São realidades bastante distintas que não podem ser equiparadas de forma tão simplória.
A primeira distinção que se deve levar em consideração é que, no setor privado, o empresário simplesmente nem contrata com quem já se revelou um mau pagador. É o que, em economia, se costuma chamar de prevenir-se contra a seleção adversa[3].
Já o ente tributante não pode escolher tributar apenas os bons contribuintes, pela singela razão de que, uma vez ocorrido o fato gerador, seja para o bom, seja para o mau contribuinte, surge a obrigação tributária.
Destarte, é de se pressupor que o rol de devedores de uma loja de venda de eletrodomésticos ou de um banco seja um rol mais qualificado (no sentido de composto por pessoas, na média, mais idôneas) do que o rol inscrito em Dívida Ativa (onde constarão todos os cidadãos, independentemente de seu histórico precedente de bons pagadores, ou não).
Ademais disso, no momento da cobrança, propriamente dito, conforme a situação do devedor, a loja ou o banco, pode conceder os descontos que bem entender – afinal, o crédito é privado, de sua titularidade e ninguém tem nada a ver com isso.
Já no caso dos entes públicos, inexiste a possibilidade de se concederem descontos conforme a situação pessoal de cada devedor apreciada subjetivamente pelo administrador público, pela singela razão de que isso depende de uma lei que estabeleça critérios claros, mas principalmente isonômicos, sob pena de inconstitucionalidade. Portanto, a cobrança tributária reveste-se, efetivamente, de uma maior rigidez em função de um valor maior, que é a preservação da isonomia entre todos os contribuintes, visto que, para nenhum deles, é fácil ou agradável pagar tributos. Os que pagam em dia certamente fazem diversos sacrifícios para assim proceder. Não é razoável que quem não os fez a tempo e modo seja depois beneficiado com favores concedidos aleatoriamente, sem um critério geral estabelecido por uma lei.
Em síntese, é absolutamente natural e inclusive uma decorrência do nosso Estado Democrático de Direito que a cobrança dos créditos tributários seja feita no âmbito do Poder Judiciário e revestida de certas formalidades, além de relativa rigidez, visto que tem de se dar nos limites da lei e esta tem de observar a isonomia entre todos os contribuintes.
Retornando-se à Exposição de Motivos ao PL 5.080/09, observa-se que, ao longo de todo o seu texto, argumenta-se que a execução fiscal atualmente existente é morosa, cara, formalista e pouco eficiente. Como já explicado, a morosidade e a aparente pouca eficiência decorrem, em grande parte das vezes, da absoluta inexistência de patrimônio para a quitação dos débitos tributários.
Já o formalismo está relacionado à necessidade de que todos os cidadãos sejam submetidos às mesmas regras, com o mesmo direito à ampla defesa e ao contraditório, pela prevalência do valor maior, que é a isonomia – tais direitos e valores são cláusulas pétreas insculpidas na Constituição Federal e por ela garantidas em seu art. 5º, “caput” e incisos LIV e LV.
Quanto ao custo de uma execução fiscal, não há dúvidas de que é relativamente alto. Contudo, como já disse alhures, ninguém em sã consciência proporia a libertação de todos os presos apenas porque o custo do sistema prisional é alto. Em todas as partes, em qualquer tempo, há um custo alto em punir e/ou fazer cumprir a lei. Esse é o preço que se paga por se querer viver numa sociedade civilizada[4].
Em resumo, também estão equivocadas todas as afirmações que concluem, tomando como base simplesmente o elevado número de execuções fiscais em relação ao total de ações em tramitação perante o Poder Judiciário, que o atual modelo do processo de execução fiscal está falido.
Na realidade, como antes ressaltado, num contexto de ausência de patrimônio penhorável por parte da maioria dos devedores, é natural que as execuções fiscais sejam paralisadas e não cheguem a um “término”, senão pela prescrição das dívidas.
Por outro lado, considerando a evolução do sistema jurídico brasileiro como um todo, inclusive com a consolidação da lei de arbitragem, também parece compreensível que o total de execuções em andamento em relação ao total de outros tipos de ação tenha aumentado. Isso se deve não só ao aumento gradual e esperado do número de execuções num contexto fático de impossibilidade de pagamento por boa parte dos devedores, como também pela redução de outros tipos de litígios, que acabam solucionados mediante o recurso a formas alternativas de composição de conflitos.
Claro que se pode cogitar de melhorar ainda mais o sistema, inclusive com a redução do número de execuções ajuizadas. Mas, certamente, isso não decorrerá da adoção da execução fiscal administrativa.
É que, com algumas variações, os vários projetos de lei que se destinam a disciplinar a execução fiscal administrativa ou, mesmo, a penhora administrativa limitam-se a reproduzir os procedimentos já previstos na Lei 6.830/80 e apenas transferem a sua formalização do âmbito do Poder Judiciário para o do Poder Executivo, mais especificamente as Procuradorias Públicas.
Em geral, não há a supressão de procedimentos, nem mesmo sua simplificação. Repita-se, haveria apenas o deslocamento de procedimentos praticados perante alguns órgãos estatais para outros, mas não a supressão deles.
Bem verdade que, no sistema previsto no PL5.080/09, por exemplo, não seriam ajuizadas execuções em relação àqueles devedores cujos bens não fossem localizados, mas os atos de busca de tais bens teriam de ser empreendidos integralmente pela Administração como já são hoje, apenas que sem o aval prévio do Poder Judiciário.
Ao que se pode depreender, o nível de formalismo permaneceria rigorosamente o mesmo, visto que, como acima já esclarecido, a Constituição Federal exige a estrita observância do devido processo legal e do respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa mesmo na esfera administrativa. Assim, seria necessário intimar o cidadão-contribuinte de cada ato administrativo praticado. O que hoje é feito judicialmente apenas seria feito administrativamente.
Não haveria, destarte, diminuição do formalismo. E, sendo assim, também os custos seriam mais ou menos os que hoje existem, apenas transferidos do Poder Judiciário para o Executivo.
Quanto à morosidade da cobrança e à suposta baixa eficiência, tampouco haveria alteração em relação ao quadro que hoje se afigura. Repita-se: a baixa arrecadação em relação ao total do estoque da Dívida Ativa não significa a ineficiência do modelo adotado. Essa baixa arrecadação, antes, deve ser explicada, em grande parte, pela inexistência de patrimônio penhorável por uma significativa parcela dos devedores. Ou seja, neste ponto, o problema é fático – e, não, jurídico, em nada sendo resolvido por uma alteração no processo de cobrança.
O único aspecto que sofreria uma grande transformação seria o atinente ao grande número de execuções fiscais em tramitação perante o Poder Judiciário. Com efeito, com a adoção da execução fiscal administrativa, haveria progressiva diminuição das execuções fiscais hoje em curso.
Mas, mesmo neste aspecto, o benefício para o sistema jurídico, como um todo, seria nulo ou até reverso. Ocorre que é preciso considerar que a Constituição Federal do Brasil consagra no art. 5º, XXXV, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que também é direito fundamental dos cidadãos brasileiros e cláusula pétrea.
Assim, o que se pode imaginar é que, a cada ato extrajudicial praticado pela Fazenda Pública, como uma penhora de bens, o contribuinte que se julgar afrontado de alguma forma, poderá ingressar com alguma ação judicial (v.g., anulatória ou mandado de segurança) para discutir aquele ato. Ao invés de se ter as discussões referentes a uma execução concentradas num único processo e seus apensos ou recursos, como se tem hoje, pode-se chegar a uma situação com inúmeros processos e recursos tramitando paralelamente.
Ou seja, muito embora não haja propriamente inconstitucionalidade na proposição da execução fiscal administrativa, o problema de paralisação da execução fiscal por não terem sido encontrados os devedores ou seus bens, apenas iria mudar de lugar – do Judiciário para o Executivo.
Hoje, há atos de impulso processual que podem ser praticados de ofício pelo Poder Judiciário. Destarte, o impulso, nas execuções fiscais, se dá tanto pelos advogados públicos, como também pelo próprio Judiciário. No modelo da execução fiscal administrativa, tudo dependeria das procuradorias públicas.
Considerando que, de forma geral, pelo Brasil afora, as procuradorias públicas, seja em nível federal, estadual ou municipal, estão bem menos estruturadas que o Poder Judiciário, o que se pode presumir é que a relevantíssima função de cobrança dos créditos públicos líquidos, certos e vencidos ver-se-ia, isto sim, ainda mais dificultada do que é hoje.
E provavelmente sem benefício para ninguém – nem para a sociedade, nem para as procuradorias públicas, nem para o próprio Poder Judiciário, que, ao invés de execuções fiscais, poderia passar a receber ações anulatórias ou mandados de segurança contra atos de penhora praticados extrajudicialmente.
Concluindo, não se vê como adequada para solucionar qualquer dos problemas apontados no atual modelo de cobrança das dívidas públicas (pela execução fiscal, tal como disposta na Lei 6.830/80), a adoção da execução fiscal administrativa.
[1] Constituição Federal: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes (…)”
[2] Nesse sentido, os dados fornecidos no estudo de Selma Lemes, disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-abr-10/selma-lemes-numeros-mostram-maior-aceitacao-arbitragem-brasil
[3] REBELLO, Alexsandro. Seleção adversa e suas aplicações. Disponível em:http://www.administradores.com.br/artigos/economia-e-financas/selecao-adversa-e-suas-aplicacoes/26733/
[4] Aqui a ideia foi inspirada pela célebre frase do jurista norte-americano Oliver Holmes: “Impostos são o preço que nós pagamos por uma sociedade civilizada”
Autora: Simone Anacleto é procuradora da Fazenda Nacional e professora de Direito Tributário.