Autor: José Jácomo Gimenes (*)
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Esta singela oração, posta na Constituição de 1988, inciso LXII do artigo 5º, mesmo com tão pouco tempo de existência, já tem uma história fantástica, digna de estudos, debates e comentários edificantes.
Começou permitindo a fundação do chamado princípio da inocência e fortalecimento das teses garantistas; mudou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2009 (e legislação ordinária posterior), determinando a prisão condenatória somente após o trânsito em julgado da sentença, até quatro instâncias de julgamento, dezenas de recursos e muitos anos de processos; e, certamente, também evitou que acusados absolvidos (excluídos os casos de arquivamento por prescrição) pelos tribunais superiores não cumprissem pena indevida a partir do julgamento na segunda instância, como era anteriormente.
Por outro lado, com o alargamento do espaço recursal, aumentou consideravelmente o número de recursos com objetivo de postergar a aplicação da pena; por consequência, ampliou assustadoramente o número de presos provisórios; permitiu que poderosos, condenados em crimes graves, permanecessem por décadas aguardando o fim do processo, por conta de recursos infindáveis; aumentou enormemente o número de penas não aplicadas em razão da prescrição pela demora do processo e pelo passar da idade do acusado; colocou o Brasil na condição de campeão de bondade no requisito de recursos protelatórios; fortaleceu o sentimento de ineficiência judicial e injustiça; e, por fim, foi novamente interpretada pelo Supremo, que concluiu pela possibilidade do aprisionamento após julgamento na segunda instância, mesmo sem trânsito em julgado da condenação.
O fato de o Supremo Tribunal ter definido duas interpretações diferentes em tão pouco tempo, por si, é indicativo da razoabilidade das duas soluções adotadas: prisão após trânsito em julgado e, agora, prisão após o julgamento em segunda instância. Passado o choque inicial da novidade, parece oportuno deixar de lado o acalorado debate sobre as injustiças possíveis com as duas soluções e buscar resposta no próprio texto constitucional, fundamento de todo Direito, fonte primeira para interpretações e soluções constitucionalmente justas.
A regra constitucional em questão não tem conexão literal com prisão, tanto que já permitiu duas interpretações do Supremo. Não haveria dúvidas se estivesse escrito “ninguém será preso até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. Talvez, uma assertiva tão direta, com consequências imediatamente expostas, teria dificuldades de aprovação na Constituinte. Como acontece em situações de falta de consenso, optou-se por um quase truísmo, uma tautologia: o processo é feito para estabelecer a culpa do acusado e pode ser revisto em três instâncias posteriores, então, por óbvio, necessário que termine completamente (trânsito em julgado) para a culpa ficar estabelecida e haver culpado definitivo.
É a única regra no capítulo constitucional de proteção aos direitos individuais que menciona culpa (culpado). A restrição à liberdade de ir e vir é tratada na Constituição como prisão, em vários incisos (LIV, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI e LXVII) do artigo 5º. A Constituição constrói e restringe o direito estatal de cercear a liberdade com base no termo prisão. A Constituição delimita completamente os fundamentos e requisitos da prisão sem qualquer menção de culpa.
No fundamental inciso LIV do artigo 5º a Constituição exige o devido processo legal para privar a liberdade dos cidadãos. O devido processo legal é concluído na primeira instância e revisado na segunda instância. No inciso LXI a Constituição autoriza a prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, requisito atendido e confirmado com o julgamento na segunda instância.
O instituto da prisão está construído e incisivamente delimitado na Constituição (devido processo legal e ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente), sem qualquer exigência de culpa ou de trânsito em julgado final. A exigência de culpa e trânsito em julgado para prisão é uma ilação, a partir de uma regra com redação desconectada do instituto que se pretende influir. Se o consenso dominante fosse impedir prisão antes do trânsito em julgado, a Constituição, onde tanto se fez uso do termo prisão, não seria grafada, nesse ponto, com palavra e conceito diferente (culpa — culpado).
O próprio nome dado à regra em questão, princípio da inocência, que muito alimenta a polêmica, contém uma impropriedade. A regra constitucional não tem a palavra “inocente”. Ocorre um salto de não culpado para inocente. Mais apropriado, então, seria o nome “princípio da não-culpabilidade”. Parece pouco, mas não é. Choca ouvir que um inocente está preso. Diferente se for dito que está preso um condenado em dois julgamentos, mais ainda não culpado (definitivamente), ante a possibilidade de recurso.
Com esse desacordo, conceitual e lógico, parece não ser razoável submeter toda a clara regulação do instituto da prisão por uma ilação ancorada em regra que trata de outra categoria (culpa), substituindo o termo prisão (ou preso) por culpa (ou culpado), causando um grave tumulto no sistema judicial, injustiça social e caricatural descompasso com o direito penal aplicado nas democracias avançadas (EUA, Reino Unido, Canadá, Espanha, Portugal, Argentina e outras), onde a prisão pode começar até mesmo na primeira instância.
Muito se tem falado em prejuízo irreparável para os aprisionados e posteriormente absolvidos nos tribunais superiores. A própria Constituição, reconhecendo expressamente a possibilidade de erros judiciais (certamente incluídas eventuais falhas sistêmicas) e prisões além do tempo, apresenta solução, novamente no contexto do instituto da prisão, determinando o pagamento de indenização (artigo 5º LXXV), a solução possível e eleita pela Constituição.
Têm aparecido soluções intermediárias, tentando salvar o princípio da inocência e manter a prisão após o trânsito julgado, indicando como solução a diminuição ou mais interrupções nos prazos de prescrição da pena. A tese carrega o erro e a injustiça de protelar, da mesma forma, a aplicação da pena para décadas, quando a sociedade já esqueceu do crime, as vítimas e parentes já se frustraram, a injustiça ficou patente e um dos objetivos da pena, resposta eficiente, já foi perdido.
O direito de defesa do acusado é tão amplo no direito penal que vai além do trânsito em julgado da sentença condenatória, pois permite revisões criminais e habeas corpus a qualquer tempo, indicativo de que o sistema penal não tem segurança jurídica absoluta e definitividade de culpa, quando para favorecer o acusado, resultando a necessidade de soluções intermediárias, inclusive prisão, sob pena do direito não ter qualquer efetividade.
A Constituição não diz que o acusado poderá ser preso após o julgamento da segunda instância, mas também não diz que somente pode ser preso após o trânsito em julgado definitivo. Parece permitido concluir que o sentido e finalidade da regra em questão (inciso LXII, art 5º CF), apenas vai ao encontro do famoso “rol dos culpados”, classificação final para efeito de registro histórico.
Com todos esses motivos, somados ao fato de que os julgamentos das provas e culpabilidade são feitos na primeira e segunda instâncias, um dos argumentos adotado pelo voto condutor do novo precedente, restando ao STJ e Supremo apenas conformações gerais de ordem normativa e técnica, é razoável defender com boa-fé a histórica decisão da Suprema Corte, que buscou o salutar meio termo, permitindo a prisão do acusado já condenado em duas instâncias, que tem apenas remotíssima possibilidade de mudar o veredicto quanto ao mérito.
Autor: José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor universitário.