Luiz Virgílio P. Penteado Manente, Antonio Marzagão Barbuto Neto*
São inegáveis os benefícios trazidos à população brasileira com a promulgação de dois instrumentos legais diretamente relacionados à proteção e defesa do consumidor: o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95). Os dois diplomas normativos facilitaram, e muito, o acesso do chamado “destinatário final de produtos e serviços” à prestação jurisdicional, potencializando o acesso ao Poder Judiciário a toda população brasileira.
Um dos aspectos mais interessantes relativos ao procedimento especial disciplinado pela Lei 9.099/95 diz respeito à necessidade do comparecimento pessoal das partes em litígio às audiências previstas em referida lei. Trata-se de regra que se contrapõe aos princípios gerais do procedimento ordinário regido pelo Código de Processo Civil (CPC), em que se dispensa a presença física das partes perante o Juízo, excetuando-se a hipótese do depoimento pessoal prestado em audiência de instrução.
No procedimento especial da Lei 9.099/95, a ausência das partes a qualquer uma das audiências traz sérias conseqüências aos litigantes, sendo que, para o autor, implica a extinção do feito (artigo 51, inciso I) e para o réu, a decretação dos efeitos da revelia (artigo 20). A necessidade de comparecimento pessoal das partes aos atos processuais prevista na Lei 9.099/95 fez com que referida lei inovasse quanto à representação das pessoas jurídicas em Juízo.
Nos termos do artigo 12, inciso VI, do CPC, as pessoas jurídicas são representadas em Juízo “por quem os respectivos estatutos designarem, ou, não os designando, por seus diretores”. A Lei 9.099/95, entretanto, abrandou a exigência contida no artigo 12, inciso VI, do CPC, permitindo que, em sede de Juizados Especiais Cíveis, a pessoa jurídica seja representada por um “preposto credenciado” (artigo 9o, § 4o, da Lei 9.099/95).
Ocorre, todavia, que muitos Juizados Especiais Cíveis têm, infelizmente, exigido que este “preposto credenciado” do artigo 9o, § 4o, da Lei 9.099/95, seja um empregado da pessoa jurídica à qual representa, ou seja, que esta pessoa seja uma prestadora de “serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”, nos termos do artigo 3o da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Essa exigência tem acarretado inúmeras decretações de revelia, especialmente aos réus de ações que versam sobre relações de consumo, geralmente fornecedores de produtos e serviços que atuam em todo território nacional. Isso porque, não raro, os grandes fornecedores de produtos e serviços designam como seus prepostos, pessoas que não guardam qualquer relação de emprego para com estas sociedades. Esta prática se verifica, com maior freqüência, nas audiências realizadas em comarcas distantes da sede das sociedades rés de referidas ações.
A exigência no sentido de que apenas o “preposto empregado” possa representar a pessoa jurídica nos Juizados Especiais Cíveis, merece, no entanto, total repúdio por todos aqueles que defendem a correta aplicação da Lei 9.099/95.
Inicialmente, cumpre ressaltar que a exigência de que o preposto seja empregado da pessoa jurídica não encontra qualquer respaldo na Lei 9.099/95 que, repita-se, apenas exige que esta pessoa esteja devidamente credenciada, bastando, para tanto, apresentar a respectiva carta de preposição fornecida pela sociedade representada.
Ademais, a própria CLT, de onde a representação de pessoas jurídicas por prepostos tem suas origens, não exige que a pessoa jurídica mantenha com o preposto que a representa em Juízo uma relação de emprego(1). Nesse sentido, exigir que o preposto seja empregado da pessoa jurídica contraria o princípio constitucional da legalidade, uma vez que não há qualquer diploma legal que legitime tal exigência.
Ressalte-se, ademais, que a Lei 9.099/95 tem como princípios informadores a simplicidade e informalidade (artigo 2º). Um dos corolários de referidos princípios encontra-se justamente no artigo 18, inciso II, de referida lei, que autoriza que a citação da pessoa jurídica seja efetuada na pessoa do “encarregado da recepção”.
Ora, se a própria Lei 9.099/95 permite que a citação, ato processual de fundamental importância, uma vez que inaugura a relação jurídico-processual, seja efetivada em pessoa que, muitas vezes, não guarda qualquer relação de emprego para com a pessoa jurídica a ser citada, não se pode admitir que esta mesma lei impeça que uma pessoa jurídica indique um não empregado para representá-la em Juízo.
Da mesma maneira, se uma pessoa jurídica pode indicar um terceiro não empregado para seus negócios gerais, responsabilizando-se pelos atos deste agente (novo Código Civil, artigo 43), não há que se negar este mesmo direito para que esta indique terceiros não empregados para representá-la nos Juizados Especiais Cíveis. Perfeitamente aplicável, neste caso, o brocardo jurídico “aquele que pode o mais, pode o menos”.
Conclui-se, portanto, que além de ilegal, a obrigatoriedade de presença de “preposto empregado” às audiência realizadas nos Juizados Especiais Cíveis contrapõe-se aos próprios princípios desta lei, quais sejam, o da simplicidade e informalidade.
Ressalte-se, ademais, que as ações envolvendo as chamadas relações de consumo são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.78/90), que, em seu artigo 101, inciso I, permite que referidas ações sejam propostas no domicílio do autor/consumidor. Percebe-se, portanto, que a exigência de comparecimento de um “preposto empregado” na ações envolvendo relações de consumo implicaria elevados custos aos réus de referidas ações, o que acabaria por praticamente inviabilizar a defesa destas pessoas jurídicas perante os Juizados Especiais Cíveis.
Isso porque, ao se admitir a regra de que o preposto deva ser empregado, os fornecedores de produtos e serviços com atuação nacional seriam obrigados despachar seus empregados para as mais remotas comarcas do Brasil, arcando com os vultosos custos de transporte, alimentação e estadia, a fim de que estes “prepostos empregados”, pudessem representá-los em causas que, muitas vezes, envolveriam apenas alguns poucos reais.
Trata-se de exigência absolutamente descabida, ainda mais nos dias de hoje, em que inúmeros fornecedores de produtos e serviços realizam suas atividades comerciais em quase todo território, sem que, para tanto, mantenham representações comerciais nas localidades onde atuam. É o caso, por exemplo, das prestadoras de serviço de acesso à internet que prestam seu serviço em todo território nacional através da rede de telecomunicação que, portanto, dispensa a presença física de empregados destas sociedades nas localidades onde estão seus clientes.
Note-se, outrossim, que ao se decretar a revelia de uma pessoa jurídica pelo simples fato de que o preposto devidamente credenciado não possui relação de emprego para com referida sociedade, estar-se-á impedindo, de maneira absolutamente arbitrária e ilegal, que as partes cheguem a uma composição amigável acerca da demanda.
Tal ocorre, pois a prática forense em ações nos Juizados Especiais Cíveis revela que o preposto credenciado, geralmente apresenta-se nas audiências munido de proposta de acordo proveniente da própria sociedade ré, proposta esta que sequer chegará a ser apresentada ao autor, diante da decretação da revelia por um magistrado que entenda que o preposto deva ser empregado da ré.
Dessa maneira, a exigência de que o preposto seja empregado da pessoa jurídica simplesmente menospreza outro princípio basilar previsto no artigo 2o da Lei 9.099/95, qual seja, o de que o processo por ela disciplinado buscará, “sempre que possível, a conciliação ou a transação”.
Por fim, ressalte-se que a exigência de que apenas o “preposto empregado” possa representar as pessoas jurídicas em Juízo deve ser veementemente rechaçada, sob pena de se inviabilizar a defesa dos fornecedores de produtos e serviços perante os Juizados Especiais Cíveis.
Nota de rodapé
1- Confissão ficta. Preposto. O preposto não tem que ostentar necessariamente a qualidade de empregado, até porque a lei não o exige expressamente (CLT, art. 843, §1o ). A exigência legal é tão-somente de que tenha conhecimento dos fatos. Por isso, o empregador pode credenciar qualquer pessoa, inclusive autônoma (contador), como preposta, pois exclusivamente dele o risco de ser havido como confesso caso essa pessoa declare desconhecer os fatos relevantes e controvertidos da causa. Recurso conhecido e não provido. (Tribunal Superior do Trabalho, 1a Turma, RR 207.117/95.3-18a R., julgado em 02/04/1997, Red. Design. Min. João Oreste Dalazen, DJU 18/08/1997, p. 35.892). Ressalte-se, entretanto, que esta questão é muito controvertida, havendo decisões em sentido contrário, proferidas pelo próprio TST.
Luiz Virgílio P. Penteado Manente é sócio na área contenciosa de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.
Antonio Marzagão Barbuto Neto é advogado na área contenciosa de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.