Por Flaviane Ribeiro de Araújo
A execução proposta em face da Fazenda Pública[1] segue regramento específico na medida em que os bens públicos, vinculados à finalidade pública, são inalienáveis e impenhoráveis, inexistindo, nesse aspecto, medidas expropriatórias para a satisfação do crédito, pago sob regime de precatório ou de requisição de pequeno valor, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal.[2]
Diversa não é a orientação do Supremo Tribunal Federal, que firmou entendimento no sentido de que “o processo de execução por quantia certa contra a Fazenda Pública rege-se, nos termos do que prescreve a própria Constituição, por normas especiais que se estendem a todas as pessoas jurídicas de direito público interno”, tornando-se imprescindível a extração do precatório.[3] A matéria está pacificada.
Em âmbito infraconstitucional, orienta-se a execução de quantia certa contra pessoa jurídica de direito público pelos preceitos legais fixados nos artigos 730 e 731, do Código de Processo Civil (CPC), que faculta à Fazenda Pública, após citação, opor embargos.
A oposição de embargos à execução pela Fazenda Pública não se sujeita à penhora, depósito ou caução, eis que as garantias que cercam o crédito devido pelo ente público são de tal envergadura que prescindem de atos assecuratórios da eficácia de provimento futuro.[4] É certo, ainda, que a expedição de precatório depende do trânsito em julgado da decisão proferida em sede de embargos de devedor, à míngua de qualquer discussão acerca do débito exequendo.
A Lei 12.017, de 12 de agosto de 2009, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2010, também prevê a exigência do trânsito em julgado, estabelecendo em seu artigo 26 que “a Lei Orçamentária de 2010 somente incluirá dotações para o pagamento de precatórios cujos processos contenham certidão de trânsito em julgado da decisão exequenda e pelo menos um dos seguintes documentos: I – certidão de trânsito em julgado dos embargos à execução; e II – certidão de que não tenham sido opostos embargos ou qualquer impugnação aos respectivos cálculos”, dispositivo, igualmente, presente na Lei de Diretrizes Orçamentárias para os exercícios financeiros de 2007, 2008 e 2009.
Assim, julgados improcedentes os embargos à execução fiscal, por decisão transitada em julgado, deverá o juiz requerer a expedição do respectivo precatório, por intermédio do presidente do tribunal competente, que requisitará às autoridades administrativas a inclusão, no orçamento da entidade de direito público executada, do valor do crédito constante do precatório apresentado até 1º de julho, para pagamento até o final do exercício financeiro subsequente, respeitada a ordem de precedência cronológica.[5]
Esse é o pano de fundo que oxigena a temática ora analisada, ou seja, os créditos, de natureza tributária, consubstanciados em precatório teriam o condão de obstar a expedição de Certidão Negativa de Débito (CND) ou Certidão Positiva com Efeito de Negativa (CPD-EN)?
Entende-se que não seria o caso de se expedir a certidão negativa entabulada no artigo 205 do CTN, isto é, certificado do qual conste inexistir débito tributário em nome da interessada. Isso porque, na questão em apreço, a extinção do crédito tributário realizar-se-ia apenas com o efetivo pagamento mediante prévio depósito feito à disposição da presidência do tribunal.[6]
Cogita-se, todavia, de possibilidade de outorga de certidão positiva com eficácia de negativa, contemplada no artigo 206 do CTN, idônea a demonstrar a regularidade da situação fiscal da entidade pública requerente, irradiando os mesmos efeitos jurídicos emanados da certidão negativa.
O Código Tributário Nacional, ao tratar da certidão positiva de débitos com efeito de negativa, em seu artigo 206, estabelece as hipóteses de emissão, limitadas à existência de (i) créditos tributários não vencidos; (ii) créditos tributários em execução fiscal, garantida pela penhora; e (iii) créditos tributários com a exigibilidade suspensa.
Depreende-se, do teor dos referidos artigos 205 e 206 do CTN, que a mens legis é garantir que a certidão não abonará o sujeito passivo inadimplente quando da prática de determinados atos em que se exija a comprovação de regularidade perante o fisco, voltando-se a oferecer declaração na qual as circunstâncias espelhadas no artigo 156 (causas de extinção do crédito) e artigo 151 (causas de suspensão da exigibilidade do crédito), ambos do CTN, fiquem explicitadas. Ainda, no que toca ao citado artigo 206, autoriza-se a emissão da CPD-EN no caso de créditos não vencidos ou quando o débito esteja devidamente garantido nos autos de execução fiscal.
Nada obstante, considerando a excepcionalidade da execução movida contra a Fazenda Pública, eis que inexpropriáveis seus bens, precedentes do Superior Tribunal de Justiça decidiram que a execução embargada pela entidade pública devedora ou a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, por força de decisão proferida em outra ação, independentemente da prestação de garantia, autoriza a confecção e disponibilização de CPD-EN.[7]
Na questão ora em estudo, não se vislumbra causa suspensiva de exigibilidade de crédito tributário, nos moldes previstos no artigo 151 do CTN, eis que, diversamente, a situação em exame estaria a evidenciar hipótese de persecução judicial de cobrança de crédito tributário inscrito em dívida ativa da União, em desfavor de pessoa jurídica de direito público distinta daquela, culminando, quando do trânsito em julgado de decisão de improcedência proferida em sede de embargos à execução, na expedição de precatório.
Contudo, ao que parece, o escopo da norma incursa no artigo 206 do CTN restaria atendido em face de legítimo processamento de precatório, regime prestigiado pelo próprio texto constitucional, e, dada a presunção de solvabilidade de pagamento, não seria passível de inviabilizar eventual pleito de CPD-EN. Assim, procedendo-se em plena conformidade com a sistemática preconizada pela ordem constitucional vigente, não se poderia atribuir à Fazenda Pública devedora eventual pecha de inadimplência, tampouco lhe impor medidas restritivas quanto à obtenção de certidão de regularidade fiscal.
A propósito, em julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, asseverou o juiz federal Leandro Paulsen “mais que a penhora, a expedição de precatório, para o cumprimento de obrigação por parte de autarquia, pode ser considerada também como garantia que permite expedir-se, em seu favor, certidão positiva com efeitos de negativa”.[8]
Nesse contexto, a expedição de precatório reveste-se, per se, de caráter garantidor do crédito tributário[9], substancializada por ordem judicial de pagamento. A assertiva torna-se ainda mais contundente diante de nova modalidade de sequestro de verbas públicas na hipótese de não alocação orçamentária de quantum suficiente à satisfação dos valores constantes de precatório. É o que se depreende da norma incursa no § 6° do artigo 100 da Constituição Federal, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional 62, de 9 de dezembro de 2009.
Logo, como se observa, a inscrição de precatório, com a respectiva inclusão na dotação orçamentária da entidade pública executada da verba necessária à quitação do débito, com vistas ao pagamento até o final do exercício seguinte ao da apresentação, é circunstância que qualifica os interesses que a certidão positiva com efeito de negativa visa tutelar. Assim, a entidade pública devedora deteria direito de socorrer-se de tal documento, de forma a conduzir suas atividades estatais típicas.
Conclusivamente, a expedição de precatório – regime próprio de pagamento dos débitos das fazendas públicas federal, distrital, estaduais, e municipais – com a devida inclusão, no orçamento da entidade pública executada, de verba suficiente à satisfação do débito correlato, apresentado até 1º de julho, para pagamento até final do exercício seguinte, é idônea a ensejar a emissão de certidão positiva de débito com efeito de negativa. Isto é, bem entendido, como percepção pessoal, que não reflete, necessariamente, opinião da administração fiscal.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 8ª ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Dialética, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil. Comentado artigo por artigo. 3ª tir. São Paulo: 2008.
PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
Superior Tribunal de Justiça, REsp 601.313/RS, Relator Ministro CASTRO MEIRA, 2ª Turma, Data de julgamento: 03/08/2004, DJ 20/09/2004.
Superior Tribunal de Justiça, REsp 1.123.306/SP, Relator Ministro LUIZ FUX, 1ª Seção, Data do julgamento: 09/12/2009, DJ 01/02/2010.
Supremo Tribunal Federal, RE 181.599/SP, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, 1ª Turma, Data de julgamento: 25/04/1995, DJ 15/09/95.
TRF 4ª Região, Apelação em Mandado de Segurança n. 2005.71.00.003224-6/RS, Relator Juiz Federal LEANDRO PAULSEN, Data do julgamento: 27/02/2007, D.E. 19/03/2007.
TRF 4ª Região, Apelação em Mandado de Segurança n. 2005.72.06.000431-2/SC, Relator Desembargador Federal JOEL ILAN PACIORNIK, DJU 14/11/2006.
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[1] Expressão que designa as pessoas jurídicas de direito público, abrangendo, pois, a União, estados, Distrito Federal, municípios e respectivas autarquias e fundações públicas.
[2] Cf. MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil. Comentado artigo por artigo. 3ª tir. São Paulo: 2008, p. 689.
[3] Supremo Tribunal Federal, RE 181.599/SP, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, 1ª Turma, Data de julgamento: 25/04/1995, DJ 15/09/95.
[4] Cf. Superior Tribunal de Justiça, REsp 601.313/RS, Relator Ministro CASTRO MEIRA, 2ª Turma, Data de julgamento: 03/08/2004, DJ 20/09/2004.
[5] Cf. art. 100, § 5º, da CR/88, com a redação determinada pela Emenda Constitucional n. 62, de 9/12/2009. Trata-se de regramento geral, não se olvidando, todavia, dos regimes especiais criados pelo Poder Constituinte Originário e Derivado, a exemplo do que dispõem os arts. 33, 78 e 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, os últimos acrescentados, respectivamente, pela EC n. 30, de 13/09/2000, e EC n. 62, de 2009, em que pese a propositura da ADI 2356/DF, Rel. Ministro NERI DA SILVEIRA, em que se argui a inconstitucionalidade do art. 2º da EC n. 30, de 2000, que introduziu o art. 78 e §§ no ADCT da Constituição Federal de 1988 (cf. Informativo 574), bem como da ADI 4357/DF, Rel. Ministro CARLOS AYRES BRITTO, em que se questiona a constitucionalidade da EC n. 62, de 2009.
[6] Cf. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 8ª ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Dialética, 2010, p. 277.
[7] Cf. Superior Tribunal de Justiça, REsp 1.123.306/SP, Relator Ministro LUIZ FUX, 1ª Seção, Data do julgamento: 09/12/2009, DJ 01/02/2010.
[8] TRF 4ª Região, Apelação em Mandado de Segurança n. 2005.71.00.003224-6/RS, Relator Juiz Federal LEANDRO PAULSEN, Data do julgamento: 27/02/2007, D.E. 19/03/2007.
[9] Cf. TRF 4ª Região, Apelação em Mandado de Segurança n. 2005.72.06.000431-2/SC, Relator Desembargador Federal JOEL ILAN PACIORNIK, DJU 14/11/2006.
Flaviane Ribeiro de Araújo é procuradora da Fazenda Nacional lotada na Coordenação-Geral de Assuntos Tributários da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional em Brasília.