Falhas no sistema da Receita Federal e o cerceamento do direito de defesa

Autores: Rogerio Zanetta e Celso Ferreira da Cruz (*)

 

Conforme dispõe o artigo 2º, parágrafo1º, da Instrução Normativa 1.412/2013, todas as pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado são obrigadas a acessar o sistema eCAC para fazer o protocolo de peças e documentos nos processos administrativos digitais que tramitam perante a Receita Federal.

No entanto, ao acessar o sistema eCAC para cumprimento de prazos processuais, os contribuintes podem se deparar com a sua indisponibilidade técnica, fato este que os impede, ainda que momentaneamente, de praticar tal ato. Nessa situação, não se pode admitir o cerceamento do seu direito de defesa.

A Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo federal, traz no artigo 2º os princípios básicos que devem ser observados, entre os quais podem ser citados: (i) a adequação de meios e fins e a vedação à imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público (inciso VI); (ii) a adoção de formas simples e suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados (inciso IX); e (iii) a garantia dos direitos à comunicação (inciso X). Vejamos:

“Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

I – atuação conforme a lei e o Direito;

II – atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;

III – objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades;

IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;

V – divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição;

VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;

VII – indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;

VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;

IX – adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;

XI – proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei;

XII – impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados;

XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.

A própria Receita Federal, em sua página eletrônica, informa que o sistema eletrônico deve atuar de modo a evitar a desburocratização de procedimentos para o contribuinte, objetivando a aproximação do órgão por meio da internet com toda a sociedade, conforme se verifica da nota publicada pela Assessoria de Comunicação reproduzida abaixo:

“A eliminação do papel traz a possibilidade de se adotar procedimentos muito mais eficientes e eficazes para a execução dos atos processuais, com redução significativa nos custos administrativos, aumento da produtividade mediante a redução e a eliminação de atividades acessórias, desburocratização de procedimentos para o contribuinte, redução do tempo no trâmite processual, valorização do servidor pela facilidade no manuseio do processo, além de se trabalhar em um ambiente limpo e agradável, sem as pilhas de processos empoeirados, e com maior aproximação do órgão com toda a sociedade por meio da comunicação bilateral via internet, com garantia do sigilo fiscal. (…)

A disponibilização deste novo serviço no Portal e-CAC, para auto-atendimento do contribuinte, reforça o compromisso da RFB com os princípios constitucionais da administração pública tais como transparência, publicidade e rastreabilidade do ato público, eficiência na otimização de recursos financeiros e desburocratização”1.

Note-se que o objetivo do sistema eletrônico é justamente facilitar o acesso dos contribuintes aos processos e diminuir a burocracia para o envio ou recebimento de documentos e arquivos digitais.

Com isso, é possível concluir que as medidas criadas pela administração que dificultem o acesso aos contribuintes se encontram em desacordo com o intuito da criação da plataforma digital.

Quando houver a inoperância do sistema eletrônico dos órgãos públicos, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 13.105/2015, determina em seus artigos 223 e 224 que o vencimento do prazo processual será prorrogado para o primeiro dia útil seguinte (parágrafo 1º do artigo 224 do CPC). Nesse sentido, vale transcrever os artigos 223 e 224 do CPC:

“Art. 223. Decorrido o prazo, extingue-se o direito de praticar ou de emendar o ato processual, independentemente de declaração judicial, ficando assegurado, porém, à parte provar que não o realizou por justa causa.

§ 1º Considera-se justa causa o evento alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário.

§ 2º Verificada a justa causa, o juiz permitirá à parte a prática do ato no prazo que lhe assinar.

Art. 224. Salvo disposição em contrário, os prazos serão contados excluindo o dia do começo e incluindo o dia do vencimento.

§ 1º Os dias do começo e do vencimento do prazo serão protraídos para o primeiro dia útil seguinte, se coincidirem com dia em que o expediente forense for encerrado antes ou iniciado depois da hora normal ou houver indisponibilidade da comunicação eletrônica”.

Como se vê, o Código de Processo Civil, o qual deve ser aplicado subsidiariamente aos processos administrativos2, estabelece que o prazo processual deve ser prorrogado na hipótese de indisponibilidade do sistema eletrônico que impeça a comunicação do contribuinte com a Receita Federal e a consequente transmissão do protocolo por meio eletrônico.

Cumpre destacar ainda a edição do Decreto 8.539/2015, que dispõe sobre o uso do meio eletrônico para a realização do processo administrativo no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, o qual, em seu artigo 7º, parágrafo 2º, determina que, se o sistema informatizado de gestão de processo administrativo eletrônico do órgão ou entidade se tornar indisponível por motivo técnico, o prazo fica automaticamente prorrogado até as 23h59 do primeiro dia útil seguinte ao da resolução do problema. Veja-se o teor deste dispositivo legal:

“Art. 7º Os atos processuais em meio eletrônico consideram-se realizados no dia e na hora do recebimento pelo sistema informatizado de gestão de processo administrativo eletrônico do órgão ou da entidade, o qual deverá fornecer recibo eletrônico de protocolo que os identifique.

§ 1º Quando o ato processual tiver que ser praticado em determinado prazo, por meio eletrônico, serão considerados tempestivos os efetivados, salvo disposição em contrário, até as vinte e três horas e cinquenta e nove minutos do último dia do prazo, no horário oficial de Brasília.

§ 2º Na hipótese prevista no § 1º, se o sistema informatizado de gestão de processo administrativo eletrônico do órgão ou entidade se tornar indisponível por motivo técnico, o prazo fica automaticamente prorrogado até as vinte e três horas e cinquenta e nove minutos do primeiro dia útil seguinte ao da resolução do problema”.

Embora o artigo 22, parágrafo 2º, do Decreto 8.539/2015 estabeleça que os órgãos que já se utilizam do sistema eletrônico têm o período de três anos para se adaptar a tais normas, é importante enfatizar que tal dispositivo tem aplicação imediata e apenas reflete que o prazo deve ser prorrogado independentemente de diligências pessoais por parte dos contribuintes aos órgãos administrativos sob pena de caracterizar-se o cerceamento do seu direito de defesa.

A necessidade de ser prorrogado o prazo processual quando houver inaptidão do sistema eletrônico vem sendo tratada pela doutrina pátria, conforme se depreende das lições a seguir:

“A propósito, como enfatiza Carlos Henrique Abrão: ‘a petição eletrônica não está adstrita ao horário de funcionamento do Poder Judiciário, mas sim a sua via de acesso de comunicação e ao encaminhamento do documento’.

Por sua vez, se houver problemas no sistema do Poder Judiciário no dia do final do prazo, este fica automaticamente prorrogado para o primeiro dia útil seguinte à resolução do problema (LIPJ, art. 10, § 2º). Neste caso, caberá ao advogado acompanhar o dia da regularização do sistema, pois se regularizado e não protocolar ocorrerá a perda do prazo, por uma causa originária que, diga-se, não foi sua. O dispositivo em questão revela o caso em que se informatiza o Poder Judiciário e, na ocorrência de problemas, o ônus fica para o advogado (TEIXEIRA, Tarcísio. Curso de direito e processo eletrônico: doutrina, jurisprudência e prática – 3. ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2015. Pgs. 497 e 498.)”.

“A lei processual estabelece que os prazos serão computados, salvo disposição em contrário, excluindo o dia do começo e incluindo o do vencimento (art. 224, caput, do CPC/2015). Por exemplo, se a intimação para qualquer ato processual ocorreu em uma sexta-feira, o dies a quo fluirá a partir de segunda-feira ou, se este dia for feriado, a partir de terça-feira, e assim por diante. Se no último dia do prazo o expediente forense for encerrado antes ou iniciado depois da hora normal, ou houver indisponibilidade da comunicação eletrônica, o dies ad quem prorrogar-se-á para o primeiro dia útil seguinte. É isso que estabelece o art. 224, § 1o, do CPC/2015 (NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. Prática de direito processual civil – Para Graduação e Exame da OAB – 7. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. Pg. 27.)”.

É, no mínimo, insensato exigir que os contribuintes, uma vez surpreendidos com a indisponibilidade do eCAC, tenham que atender a determinações cada vez mais complexas da Receita Federal para cumprimento de seus protocolos, as quais atualmente envolvem a utilização do Sistema de Validação e Autenticação de Arquivos Digitais (SVA), tal como determina o artigo 2º da referida Instrução Normativa 1.412/2013, que também estabelece uma extensa lista de exigências formais para realização em meio físico.

Aliás, a Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, em razão dos sucessivos erros verificados no sistema eletrônico, elaborou o Ofício 966/GAB/2016 destacando a impossibilidade de serem criadas medidas pela administração que tenham por objetivo dificultar o acesso do contribuinte à Receita Federal. A esse respeito, vale trazer o seguinte trecho do ofício mencionado:

“Além disso, a existência de indisponibilidade deve ipso facto autorizar o protocolo físico nas unidades de atendimento presencial, sem quaisquer exigências adicionais, ao contrário do que se tem notícia.

Por isso, a OAB-RJ solicita que RFB oriente suas unidades de atendimento a cumprirem rigorosamente a IN 1608/2016, efetuando o protocolo físico em caso de indisponibilidade do sistema eletrônico, sem exigir, por exemplo, prévio agendamento mediante senha, o protocolo apenas nos últimos dias de prazo ou mesmo o protocolo até o último dia do prazo no horário de funcionamento da unidade da RFB. Nessa última hipótese, em caso de indisponibilidade do sistema no último dia do prazo, após o horário de funcionamento da unidade da RFB, entende-se que deve ser possível a recepção do documento no dia útil seguinte na unidade da RFB”.

É interessante mencionar que as normas de informatização do processo judicial (artigo 10 da Lei 11.419/2006); da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo (artigo 82 da Lei 13.457/2009); e da Agência Nacional de Transportes Terrestres (artigo 75 da Resolução 5.083/2016) também já contêm previsão específica no sentido de que, no caso de indisponibilidade no sistema eletrônico no âmbito desses órgãos, o prazo processual fica automaticamente prorrogado até as 23h59 minutos do primeiro dia útil seguinte ao da resolução do problema. Confiram-se, a esse respeito, os seguintes dispositivos:

Não é por outro motivo que, no âmbito federal, existem julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reconhecendo a necessidade de ser prorrogado o prazo para interposição do recurso quando se caracterizar motivo justo que impeça o contribuinte de realizar o protocolo da peça processual. Nesse sentido:

“INTEMPESTIVIDADE. PRAZO RECURSAL. AFASTAMENTO. JUSTA CAUSA. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 67 DA LEI Nº 9.784/99 COMBINADO COM O ARTIGO 223 DO NOVO CPC.

A ocorrência de justa causa, assim entendido o evento alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário, é nos termos da Lei nº 9.784/99 e do novo CPC, causa de suspensão do prazo para apresentação de recurso (Processo Administrativo nº 12448.731520/2014-00. Acórdão nº 2201003.403. 2ª Câmara da 1ª Turma Ordinária da 2ª Seção de Julgamento. Sessão de 20/01/2017)”.

Por fim, o contribuinte que se vê surpreendido com a indisponibilidade do sistema eletrônico da Receita Federal, a fim de demonstrar tal fato, poderá se utilizar de quaisquer meios de prova por medida de cautela, tais como a elaboração de ata notarial, a reprodução da tela do erro obtida quando do sistema eCAC, o fornecimento de relatórios emitidos pelo departamento de tecnologia da informação, a obtenção de declarações de testemunhas e/ou a apresentação de outras informações extraídas na internet.

Portanto, não se pode admitir o cerceamento do direito de defesa do contribuinte quando o sistema da Receita Federal estiver indisponível, sendo imperioso nessa situação que o prazo para apresentação de defesas e recursos nos processos administrativos seja prorrogado para o primeiro dia útil subsequente, independentemente do cumprimento de outras obrigações estabelecidas pela administração ou de diligências pessoais do contribuinte às unidades de atendimento.

 

 

 

Autores: Rogerio Zanetta  é advogados do escritório Salusse Marangoni.

Celso Ferreira da Cruz é advogado do escritório Salusse Marangoni.


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