Falta transparência da Receita Federal ao convocar testemunhas

Autores: Guilherme Cardoso Leite e Leonardo Pimentel Bueno (*)

 

A Receita Federal do Brasil tem adotado um comportamento que nem mesmo o romancista alemão Franz Kafka poderia prever ou acreditaria: sob o argumento de fiscalizar contribuintes pessoa jurídica, a autoridade fiscal tem intimado terceiros pessoa física que com elas tenham alguma relação profissional para prestar depoimentos como “testemunha” e para entregar documentos relacionados a ambos. O que chama a atenção no caso — daí uma referência a algo kafkaniano — é que o auditor fiscal não permite que o terceiro intimado como testemunha tenha acesso a nenhum tipo de informação a respeito do que irá testemunhar. Ou seja, esse “terceiro” comparece às cegas no gabinete do auditor fiscal sem saber sobre o que irá falar e acaba sendo surpreendido com uma verdadeira inquisição acerca da sua vida pregressa e das relações que teve com várias empresas.

Algo não cheira bem nesse procedimento da Receita Federal. Embora os sujeitos intimados sejam arrolados como “testemunha”, a Autoridade Fiscal lhes tem requerido a apresentação de vários documentos, tais como contratos possessórios de participação em empresas prestadoras de serviços com qualquer empresa para os quais tenham prestado serviço nos últimos exercícios fiscais; e detalhamento da escala de trabalho realizada nos diversos estabelecimentos prestadores de serviços e muitos outros. E o Termo de Intimação Fiscal (TIF) encerra informando à ao terceiro convocado a atuar como “testemunha” que o descumprimento à intimação “determinará a abertura de fiscalização com a aplicação das multas previstas na legislação tributária sem o prejuízo do encaminhamento das declarações para a apuração de possíveis crimes ao Ministério Público Federal”.

Não se pode aceitar como possível que um TIF não indique de forma clara aos contribuintes ou aos terceiros “intimados” atuar como “testemunha” quais são os fatos submetidos à investigação e sobre os quais a “testemunha” deverá fornecer informações. Nos casos que tivemos conhecimento, o documento fiscal até menciona o número do Termo de Distribuição do Procedimento Fiscal (TDPF) relacionado ao TIF, mas o acesso ao material tem sido negado sistematicamente ao argumento de que a “testemunha” só poderia verificar os autos quando comparecesse à Receita para prestar os esclarecimentos solicitados.

Essa postura da Receita Federal é absurda e chantagista! Note-se que o princípio da transparência tributária deve nortear a relação entre o Fisco e o contribuinte — transparência não deve ser entendida apenas como certeza e previsibilidade, mas, sobretudo, como visibilidade e possibilidade de que se tenha acesso às informações que sejam de interesse, tanto mais quando devidamente justificado esse interesse. Sob essa ótica, o princípio em análise requer que os atos, processos, decisões e razões do Fisco não apenas sejam públicos, mas também sejam facilmente acessíveis e compreensíveis pelos contribuintes. A transparência, neste caso, encontra fundamento imediato nos artigos 145, § 1º, 150, §§ 5º e 6º, e 167, § 6º, da Constituição da República e assenta-se nos princípios republicano (artigo 1º, caput) e da igualdade tributária (artigo 150, II), bem como nos princípios da publicidade, da moralidade e da impessoalidade da Administração Pública (artigo 40, caput).

Não bastasse a violação dos referidos princípios constitucionais, o comportamento da Receita Federal ora referenciado atropela as regras do Código de Processo Penal e do Novo Código de Processo Civil. Primeiro porque o depoimento de alguém na condição de “testemunha”, qualquer que seja a esfera ou órgão, deve ser sempre desinteressado em relação aos fatos investigados. Por isso, para ter validade e eficácia probatória, é necessário que a “testemunha” tenha conhecimento prévio dos fatos sobre os quais irá depor, até mesmo para que possa avaliar se há interesse pessoal ou não no objeto dos seus depoimentos. A prova testemunhal consiste em uma reprodução oral do que se encontra na memória daqueles que, não sendo parte, presenciaram ou tiveram notícia dos fatos investigados. Ou seja, negar o acesso da testemunha ao TDPF sobre o qual deve depor subtrai, por si só, a validade da prova eventualmente produzida pela Receita Federal e implica nulidade de eventual autuação que nela tiver sido amparada. Ademais, a testemunha não é obrigada a depor sobre fatos que exponham a si, seu cônjuge ou seus parentes; ou a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo. Isso reafirma o direito-dever da testemunha obter informações prévias acerca dos fatos sobre os quais deve prestar esclarecimentos — se assim o é no âmbito do processo penal e cível, tanto mais em procedimento administrativo de fiscalização que não comporta qualquer publicidade.

É por essa e por outras que se faz urgente implementação do “Código de Defesa do Contribuinte” no âmbito federal, não obstante alguns Estados como São Paulo já possuam o seu próprio regulamento (Lei Complementar Estadual 939/2003). A propósito desse assunto, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.557/2011, já aprovado na Comissão de Finanças e Tributação, que pretende proteger os contribuintes dos excessos fiscais. O artigo 2º do referido Projeto de Lei define os objetivos do Código, dentre os quais o de promover o bom relacionamento entre Fisco e contribuinte, baseado nos princípios da lealdade, da cooperação, do respeito mútuo e da parceria, visando a fornecer ao Estado os recursos necessários ao cumprimento de suas atribuições; proteger o contribuinte contra o exercício ilegal do poder de fiscalizar, de lançar e de cobrar tributo instituído em lei; assegurar a ampla defesa dos direitos do contribuinte no âmbito do processo administrativo-fiscal em que tiver legítimo interesse; assegurar a adequada e eficaz prestação de serviços gratuitos de orientação aos contribuintes; e assegurar a manutenção e apresentação de bens, mercadorias, livros, documentos, impressos, papéis, programas de informática ou arquivos eletrônicos a eles relativos, com base no regular exercício da fiscalização.

Independentemente da aprovação da implementação de um bem-vindo “Código de Defesa do Contribuinte”, os agentes da Receita Federal devem sempre observar o direito que os contribuintes possuem a um adequado e eficaz atendimento pelos órgãos e unidades fazendários, bem como o acesso a dados e informações pessoais e econômicas que a seu respeito constem em qualquer espécie registro, informatizado ou não, dos órgãos integrantes da Administração Tributária Federal, Estadual, Distrital ou Municipal, salvo se comprometer atividades de inteligência, de investigação ou de fiscalização, cujo teor seja objeto de procedimento fiscal efetivamente instaurado.

Como se vê, a “transparência” fiscal no Brasil é uma via de mão única e serve somente aos interesses fazendários, na contramão da relação cooperativa entre Fisco e contribuinte que prevalece nos países desenvolvidos. Os agentes públicos no Brasil têm pecado muito por atuarem, em seu ofício, em um ambiente cuja cultura é belicosa, desconfiada e sempre objetiva a aplicação de penalidades. Perde-se com isso a oportunidade de avançar para um ambiente de maior interação entre as esferas públicas e privadas, como uma imersão mesmo em um ambiente de confiança, de fidúcia. O preço que se paga é a exposição desse tipo vergonhoso de comportamento, que deve ser freado.

Os agentes do Estado brasileiro, na medida em que Estado de Direito, devem obediência à lei e respeito moral ao público. A contumácia de comportamentos lesivos a direitos torna imprescindível que providências acauteladoras — administrativas e/ou judiciais — dos interesses das classes profissionais envolvidas e dos indivíduos convocados como “testemunhas” sejam empreendidas para resguardá-los da ilegítima sanha arrecadatória a qualquer custo do Fisco.

 

 

 

 

 

Autores: Guilherme Cardoso Leite é advogado, sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

 Leonardo Pimentel Bueno é sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestre (LL.M.) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda.


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