Família, ética e afeto

Família, ética e afeto: esse foi o tema do IV Congresso[1] do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM -, entidade fundada nos idos de 1997 graças às inquietações de quem percebia que o Direito de Família não acompanhava as transformações por que passam as estruturas sociais. A secularização ou laicização da sociedade – assim entendido o afastamento do Estado em relação à Igreja – revolucionou os costumes e, especialmente, os que regiam a família. A dessacralização do casamento provocou profundas mudanças no conceito de família. Sobreveio o pluralismo de entidades familiares, as quais se desajustaram do ordenamento vigente, escapando às normações existentes.

Reagindo à evolução histórica, o legislador arvora-se o papel de guardião dos bons costumes. Busca a preservação de uma moral conservadora. Cada vez mais se refugia nos preconceitos. É o grande ditador, que edita como as pessoas devem proceder, impondo pautas de conduta afinadas com a moralidade vigente. Limita-se a regulamentar institutos socialmente aceitáveis. Qualquer ação diversa do parâmetro estabelecido é tida por inexistente.

A técnica legislativa sempre aspirou a estabelecer paradigmas comportamentais por meio de normas cogentes e imperativas. Elege um modelo de família e o consagra como única forma aceitável de convívio. A postura é intimidadora e punitiva, na esperança de gerar comportamentos alinhados com os comandos legais. Na tentativa de desestimular atitudes que se afastem do parâmetro comportamental reconhecido como aceitável, a lei nega juridicidade ao que se afasta do normatizado.

Mas negam-se não só direitos. Nega-se a existência de fatos. Situações e posturas que são reais, costuma-se dizer que simplesmente não ocorreram. Tudo que surge à margem do modelo posto como correto não merece regulamentação. A desobediência é condenada à invisibilidade. O transgressor é punido com a negativa de inserção no âmbito do sistema jurídico.

Os exemplos são vários. Basta lembrar a vedação de reconhecimento dos filhos “espúrios”, a indissolubilidade do casamento, a rejeição às uniões extramatrimoniais.

A negativa de reconhecer os filhos havidos fora do casamento possuía nítida finalidade sancionatória, visando a impedir a procriação fora dos “sagrados laços do matrimônio”. Igualmente afirmar a lei que o casamento era indissolúvel servia como verdadeira advertência aos cônjuges de que não se separassem. Também negar a existência de vínculos afetivos extramatrimoniais não almejava outro propósito senão o de inibir o surgimento de novas uniões. O desquite – estranha figura que rompia, mas não dissolvia o casamento – tentava manter a todos no seio das famílias originalmente constituídas. Desatendida a recomendação legal, mesmo assim era proibida a formação de outra família.

Essa rigidez normativa possui um efeito perverso. Além de não alcançar o desiderato pretendido, não consegue impedir que as pessoas conduzam sua vida da forma que melhor lhes agrade. A exclusiva regulamentação dos comportamentos reconhecidos como aceitáveis deixa à margem da jurisdição tudo que não é cópia do modelo ditado como único. Olvida-se o legislador de que negar a existência de fatos existentes, deixando de atribuir-lhes efeitos, acaba fomentando irresponsabilidades. A punição não possui qualquer conteúdo repressivo, pois se transforma em fonte de privilégios indevidos. A lei acaba sendo conivente com o infrator.

Voltando aos exemplos. Negar a existência de prole ilegítima, como fazia o Código Civil anterior, em sua versão original, simplesmente beneficiava o genitor e prejudicava o filho. Ainda que tenha sido o pai quem infringiu o dever de fidelidade e cometeu o delito de adultério, o filho era o grande perdedor. Singelamente a lei fazia de conta que ele não existia. Era punido pela postura do pai, que se safava dos ônus do pátrio poder. Negar reconhecimento ao filho é excluir-lhe direitos, punir quem não tem culpa, brindar quem infringiu os ditames legais.

Antes do divórcio, a indissolubilidade do casamento não possuía outro efeito senão o de vedar a possibilidade de constituição de outra família. A lei, ao preservar intacto o vínculo matrimonial, ainda quando já desfeito o vínculo afetivo, negava a realidade da vida. Manter o casamento após o desquite era uma ficção com o único objetivo de tentar impedir a constituição de novas uniões. O legislador, assumindo o papel de paladino da justiça, da moral e dos bons costumes, simplesmente recusava qualquer direito a quem ousasse constituir relacionamentos extramatrimoniais.

O silêncio da lei, no entanto, não foi suficiente para arrefecer a velha mania do ser humano de buscar a felicidade. Os egressos de relações findas enlaçavam-se em novas uniões. Mesmo sem nome, mesmo sem lei, as pessoas uniam-se e acabavam batendo às portas do Judiciário para resolver eventuais conflitos. Tímida e preconceituosa, a Justiça encontrou uma saída que gerou enorme distorção: ver em tais relacionamentos uma sociedade de fato, expurgando-os do âmbito do Direito de Família. Simulando que a origem não era uma aproximação da ordem da afetividade, o chamado concubinato ou união livre era definido como mera associação lucrativa. Obviamente, um absurdo. O magistrado arvorando-se qualidades mágicas, buscou transformar uma sociedade de afeto em uma sociedade de fato. Tentando engessar um vínculo familiar no Direito das Obrigações, impunha as regras do Direito Societário destinadas às sociedades irregulares.

Ainda que haja a Constituição Federal posto fim a essa verdadeira alquimia, enlaçando as relações afetivas no conceito de entidade familiar, não perdeu a Justiça o hábito de fingir que não vê situações que estão diante de seus olhos.

Cabe trazer novos exemplos. É enorme a dificuldade de visualizar como entidade familiar as relações de pessoas do mesmo sexo. Contudo, não há por que duvidar – senão por puro preconceito – de que as uniões chamadas de homoafetivas têm origem em um elo de afetividade. Mas a jurisprudência, infelizmente ainda majoritária, insiste em rotulá-las como sociedades de fato. Nega o seu conteúdo afetivo e não as insere no âmbito do Direito de Família.

Igualmente os relacionamentos simultâneos recebem denominações pejorativas e, com o nome de concubinagem, concubinato adulterino, impuro ou de má-fé, são condenados à invisibilidade. Simplesmente a tendência é não reconhecer sequer sua existência. A depender do conhecimento da duplicidade de vidas do par, tais vínculos são alocados no Direito Obrigacional e lá tratados como sociedades de fato. Assim, infringir o princípio da monogamia assegura privilégios. A mantença de duplo relacionamento gera a irresponsabilidade de quem foi infiel. Uniões que persistem por toda uma existência, muitas vezes com extensa prole e reconhecimento social, são simplesmente expulsas da tutela jurídica. Com isso, pune-se geralmente a mulher, que resta sem nada, a não ser a pecha de “traidora”, embora também haja sido traída pelo companheiro. A essa “amante” somente se reconhecem direitos se ela alegar que desconhecia a infidelidade do companheiro. Para ser amparada pelo Direito precisa valer-se da mentira, pois, se ela confessa que desconfiava ou sabia da traição, recebe da Justiça um solene: bem feito! É condenada por cumplicidade, punida como co-autora do crime de adultério, enquanto o autor do delito é absolvido. O varão, por manter relacionamento concomitante com outra pessoa, sai premiado. Quem foi infiel e desleal permanece com a titularidade patrimonial, além de ser desonerado da obrigação de sustento de quem lhe dedicou a vida, mesmo sabendo da desonestidade do parceiro. Paradoxalmente, se o parceiro foi fiel e leal a uma única mulher, é reconhecida a união estável com os ônus de divisão de bens e de obrigação alimentar. A conclusão é uma só: a Justiça está favorecendo e incentivando a infidelidade e o adultério!

Esses exemplos são suficientes para evidenciar que não basta a inserção do afeto como elemento identificador dos vínculos familiares. A percepção dessa realidade foi a grande vitória alcançada pelo IBDFAM em sua bem-sucedida trajetória. Mas, além do afeto, é impositivo invocar também a ética como elemento estruturante do Direito de Família. Ao se confrontar com situações em que o afeto é o traço diferenciador das relações interpessoais, não se podem premiar com a irresponsabilidade comportamentos que afrontam o dever de lealdade que merece ser prestigiado como integrante da estrutura familiar. A omissão em extrair conseqüências jurídicas pelo só fato de a situação não corresponder ao vigente modelo de moralidade não pode chancelar o enriquecimento injustificado. Certamente esse viés ético foi o que levou à consagração da paternidade socioafetiva. Constituído o vínculo da parentalidade, mesmo quando desligado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. Não é outro o fundamento que veda a desconstituição do registro de nascimento feito de forma espontânea por aquele que, mesmo sabendo não ser o pai consangüíneo, tem o filho como seu. A chamada adoção à brasileira visa a impedir o locupletamento de quem procedeu em desconformidade com a lei e a verdade. Tal atitude, ainda que configure o delito de falsidade ideológica, nem por isso deixa de produzir efeitos, não podendo gerar irresponsabilidades ou impunidades. Se foi o envolvimento afetivo que gerou a posse do estado de filho, o rompimento da convivência não pode romper o vínculo de filiação.

Outra não deve ser a postura ética da jurisprudência diante de situações similares. O distanciamento dos parâmetros comportamentais majoritários ou socialmente aceitáveis não pode ser fonte geradora de favorecimentos. Ainda que certos relacionamentos sejam alvo do preconceito ou se originem de atitudes havidas por reprováveis, o juiz não pode se afastar do princípio ético que deve nortear todas as suas decisões.

Não enxergar fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades, é olvidar que a Ética condiciona todo o Direito, principalmente, o Direito de Família.

[1] Realizado de 24 a 27 de setembro de 2003, em Belo Horizonte – MG.

* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família

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