Prezados leitores, perdoem-me, antecipadamente, pela eventual acidez literária presente nas considerações ora expostas. Mas saibam que, ainda assim, procurei amenizar as palavras aqui empregadas.
O tema em pauta cinge-se na possibilidade, via projeto apresentado na Câmara dos Deputados, da eliminação definitiva da prescrição retroativa, que, a meu ver, corrobora com a ilusória política criminal legiferante que vem assolando o Congresso Nacional nas últimas duas décadas.
Trata o projeto, originalmente, da modificação das regras de prescrição de infrações penais, notadamente com o fim da prescrição retroativa, subespécie da prescrição da pretensão punitiva.
Num efêmero lampejo parcial de lucidez, os deputados retiraram o aludido projeto de pauta e, mediante a apresentação de um substitutivo (a lucidez durou pouco), entenderam por bem apenas alterar as regras da prescrição retroativa, que passaria a ser contada da denúncia ou queixa e não mais da data de consumação da infração ou dos últimos atos executórios, na hipótese de tentativa (crime).
Dessa forma, o substitutivo não eliminaria totalmente a prescrição retroativa, pois a mantém no interregno entre a data da publicação da sentença condenatória e a data do recebimento da denúncia ou queixa.
O substitutivo amenizou o projeto original, mas, ainda assim, não tem qualquer cabimento jurídico ou comprometimento com os bastiões imprescindíveis à efetivação da Justiça ideal que todos nós buscamos, incansavelmente.
Eliminar a prescrição retroativa é ignorar o objetivo final da ciência do direito, que visa precipuamente a Justiça, objetivo este que somente será atingido à medida que as normas garantirem a estabilidade das relações humanas.
A prescrição retroativa é baseada na pena justa, concretizada na sentença. E o jus puniendi, que repousa na reprovação social, tem como elemento marcante o tempo, como fator de eliminação dos sentimentos oriundos da infração e, por óbvio, influenciador na reprovação do fato.
O projeto confere ao Estado um poder inaceitável sobre o cidadão, que permaneceria a disposição do Poder Judiciário por lapso temporal indeterminado (ou inadequado, baseado na pena máxima, em abstrato), agravando ainda mais a insuportável morosidade da Justiça.
O instituto da prescrição retroativa, como critério limitador para o exercício de punir do Estado, leva em conta a conseqüência exata para a conduta criminosa, decorrendo, daí, o lapso temporal necessário para que o indivíduo não fique, indefinidamente, com a famosa “espada na cabeça”. É a perda do direito de punir do Estado, pelo decurso de tempo previamente estipulado, em razão de sua inércia, ensejando a extinção da punibilidade do agente.
O sentido da prescrição retroativa está no fato de que a pena máxima do preceito secundário, para efeito de cálculo prescricional, não passa de injusta ficção legal, ao passo que a pena definida na sentença, sem possibilidade de majoração em segundo grau, corresponde à adequada resposta à conduta e, por essa razão, o parâmetro ideal à definição do tempo a ensejar a prescrição.
A verdade é que, nos últimos decêndios, o Congresso Nacional vem se especializando em dar respostas duras à sociedade, baseadas, em grande parte, no endurecimento irracional (ou por alguma lógica não publicável) da legislação penal, sem se preocupar devidamente com as verdadeiras medidas de cunho estrutural para estancar a crescente criminalidade. Há muito os juristas anunciam a ineficácia de tais medidas.
Segundo dados da rede Social de Justiça de Direitos Humanos, o Brasil tem, atualmente, um dos indicadores mais altos de violência no mundo, com 50 mil homicídios por ano e uma taxa de 28,5 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes.
Desde 1980, o país mais do que triplicou a taxa de violência letal, deixando um saldo de cerca de 700 mil mortos no período. Tem 5% da população mundial, mas é responsável por 11% dos homicídios no mundo, ficando atrás, apenas, da Colômbia, Venezuela e Rússia, países em que a guerrilha, o narcotráfico, as crises econômicas e a máfia justificam tamanha violência.
Alegam alguns que a limitação da prescrição retroativa é necessária para acabar com a impunidade, já que muitos advogados se utilizam desse artifício para livrar seus clientes dos processos.
Esse tipo de argumento ignora a capacidade pensante dos juristas.
Primeiro porque não são os dilatados prazos prescricionais previstos em nosso Código Penal os responsáveis pela impunidade, muito menos a prescrição retroativa, com termo inicial anterior à denúncia, mas sim a ineficiência na investigação, processamento e punição dos autores de infrações penais (10% dos casos de homicídios no Brasil são resolvidos).
Na verdade, tanto esse projeto de lei, como o posterior substitutivo, são evidentes constatações da ineficiência Estatal e não resolvem, mais uma vez, a causa para mal atacar os efeitos, minando equivocadamente o que resta de construtivo em nosso sistema penal.
Ouso afirmar que terão efeito contrário ao que se prestam. Além de não afetar, verdadeiramente, a questão da impunidade, fomentará, institucionalizará a demora na apuração de infrações penais, servindo como um tiro no pé.
Oportuno levar em conta, ainda, que a tendência legislativa mundial seja de informatizar os processos, sejam judiciais ou não, desburocratizando-os, o que, por óbvio, contribuirá para a celeridade da prestação jurisdicional, tornando desnecessário alterar o regramento dos prazos prescricionais.
Exemplo disso é a recém publicada Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial.
A limitação da prescrição retroativa ao recebimento da denúncia ou queixa não leva em conta que a pretensão punitiva nasce, exatamente, com a prática do fato delituoso. É a partir daí que surge para o Estado o ius puniendi. Portanto, é inegável que a intranqüilidade social, que é a antítese do bem-estar social, razão do direito, existe antes da propositura (e recebimento) da ação penal. É daí que emana a possibilidade do exercício da pretensão.
De outro lado, limitar a prescrição retroativa ao recebimento da denúncia ou queixa (substitutivo) é, a meu sentir, desconhecer que os prazos processuais previstos para encerramento dos inquéritos policiais (quando não há presos) são, na prática, letra morta.
Se, mesmo diante de tais prazos e dos limites prescricionais e, ainda, considerando o controle constitucional da polícia feito pelo Ministério Público, há milhares de inquéritos que se desenrolam por anos e anos, que dirá não havendo a possibilidade de prescrição retroativa, anterior ao recebimento da denúncia?
O fato é que, não obstante tais regramentos, é incomum a verificação de maiores conseqüências administrativas pela demora nas apurações das infrações penais, até porque tal infortúnio está relacionado a inúmeros outros fatores, de ordem não conjuntural, como condições de trabalho, número e eficiência de servidores, métodos correcionais, dentre outros.
Portanto, a conclusão é que, mais uma vez, em política criminal, estamos nos dirigindo para o caminho errado, no tocante à prática legiferante.
A eliminação do parágrafo 2º, do artigo 110, do Código Penal, de modo a limitar a prescrição retroativa, é mais uma perigosa medida paliativa, que busca disfarçar a ineficiência do Estado, minando os pilares que sustentam o fim maior da ciência do direito.
Mais uma vez ouço aquela voz, silenciosa, que insiste em ecoar nos meus ouvidos: de que adianta a pressa, se caminham em direção errada? De que adianta a pressa, se caminham em direção errada…
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Rodrigo Felberg é advogado criminalista, graduado pela PUC-SP, ex-delegado de polícia, mestre em direito penal, político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e professor de direito penal e direito processual penal