Autor: Pedro Machado Segall (*)
Vício aparente é aquele de fácil constatação, perceptível com o simples uso e consumo do produto ou serviço. Já o vício oculto é aquele que, concomitantemente, não pode ser verificado com o mero exame do produto ou serviço e não provoca a impropriedade, inadequação ou diminuição do valor. Note-se que a mera inacessibilidade do vício pelo consumidor não induz sua clandestinidade se as suas consequências puderem ser facilmente percebidas.
Constatado o vício, surge o direito subjetivo de o consumidor demandar o fornecedor pelo prejuízo incorrido. Evidentemente, não poderá o fornecedor manter-se responsável perpetuamente, razão pela qual o Código de Defesa do Consumidor estipulou prazos, a depender da natureza do produto e do vício, para que o consumidor possa ver-se ressarcido.
Nesse sentido, conforme preceitua o artigo 26 do CDC, em se tratando de bem não durável, deverá o consumidor reclamar em 30 dias; se durável, tal prazo será de 90 dias.
Em ambos os casos, sendo o vício aparente, o prazo do consumidor se iniciará com a efetiva entrega do produto ou do término da execução dos serviços, segundo o parágrafo 1º do referido dispositivo. Por outro lado, no caso de vício oculto, o prazo é deflagrado da ciência do referido vício, conforme anuncia o artigo 26, parágrafo 3º, do CDC.
Assim é porque afrontaria a segurança jurídica a possibilidade de exercício vitalício de uma prerrogativa jurídica, seja ela oriunda de um direito potestativo, no caso da decadência, ou de uma pretensão, no caso da prescrição. Ao revés, seria ilógico penalizar o interessado que se mantém inerte na hipótese de ele desconhecer a prerrogativa que possui ou não poder exercê-la, sequer se podendo, a bem da verdade, falar em inércia nesse caso. Tal premissa é aceita desde os romanos, que conceberam o brocardo contra non valentem agere nulla currit praescriptio (em português, contra quem não pode agir, não corre a prescrição).
Importa ressaltar que, conquanto alguns se refiram ao artigo 26, I e II, do CDC, como prazos de garantia, não se trata propriamente de prazo de garantia, mas de reclamação. O artigo 618 do Código Civil, ao tratar do contrato de empreitada, exemplifica a distinção com clareza, prevendo no seu caput o prazo de garantia, e, no parágrafo único, o prazo de reclamação.
É por isso que a ministra Nancy Andrighi defende que, quando o fornecedor oferece garantia contratual, o prazo desta não é somado àqueles previstos no artigo 26, servindo estes apenas de embasamento para reclamação de vício surgido enquanto vigente aquela.
Em razão da semelhança entre desgaste natural e vício oculto e das consequências sobre a responsabilidade do fornecedor, é relevantíssima a diferença entre um e outro.
Desgaste natural é a deterioração do produto em razão do seu uso normal, i.e., o uso de acordo com a finalidade do produto e as limitações especificadas pelo fornecedor. Nesse contexto, os prazos de garantia visam acautelar o consumidor quanto a prejuízos causados por um tal desgaste dentro de um prazo mínimo no qual se espera não ocorram. Após a expiração desses prazos, tolera-se que o produto apresente algum desgaste.
Já vício oculto é aquele oriundo de causa outra que não o uso normal do produto. É existente desde antes da sua aquisição, mas somente pode ser aferido posteriormente, sendo fruto de diversas causas: falhas de projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros.
Assim, é imprescindível reiterar uma característica essencial do vício oculto: o fato de que ele existe antes da aquisição do bem, sendo que apenas o seu surgimento se dá a posteriori. A ressalva é importante para distinguir situações que não configuram vício oculto.
A responsabilidade civil do fornecedor por vícios engloba os deveres de qualidade, quantidade e informação que tem em relação ao consumidor. Tais deveres, em conjunto, visam a assegurar que o produto ou serviço ofertado pelo fornecedor atenda à finalidade que legitimamente se espera, o que se perfaz no dever de adequação (artigo 18, caput, do CDC).
No que tange a bens duráveis, da leitura sistemática do referido dispositivo com o artigo 4º, II, “d”, do CDC, percebe-se a intenção do legislador em substanciar o que se entende por expectativa legítima do consumidor em relação ao produto ou serviço adquirido: a conjugação entre finalidade e durabilidade razoável.
Vida útil, portanto, é o lapso temporal durante o qual o consumidor pode esperar legitimamente que o produto ou serviço irá funcionar de maneira adequada.
Como visto, em se tratando de vício oculto, o consumidor tem os prazos de 30 ou 90 dias, a depender da durabilidade do bem, contados da sua ciência, para reclamar perante o fornecedor.
No entanto, o CDC não estabeleceu um termo final para essa responsabilidade, é dizer, a legislação consumerista não fixou até quando pode o fornecedor ser responsabilizado por um vício oculto.
É verdade que essa ausência de prazo subjetiviza a questão, podendo dar azo a abusos, bem como encarecer o bem. Inobstante, parece-nos ter sido a melhor opção, tendo assim feito o legislador porque, a uma, seria arbitrário e desproporcional um prazo único de garantia para todos os bens e, a duas, seria impraticável elaborar uma lista com prazo de garantia para todos os produtos e serviços oferecidos no mercado, além de ter de ser atualizada a cada instante.
Por outro lado, instalar-se-ia enorme insegurança jurídica caso possível o exercício vitalício de uma prerrogativa jurídica, razão pela qual teve a doutrina que estabelecer um lapso temporal findo o qual não poderá mais o consumidor pleitear a responsabilização do fornecedor por um vício oculto, identificando-se duas posições: (i) uma fundada no prazo de garantia, e (ii) outra na vida útil do produto ou serviço.
A primeira corrente argumenta que o consumo de um produto ou serviço passa por uma fase de preservação, na qual se busca conservar a sua adequação. E esse prazo, em regra, é mensurado pela garantia contratual, que, por sua vez, é fixada pelo fornecedor. Assim, não podendo ser eterna a responsabilidade do fornecedor, somente responderá por vício oculto caso este se manifeste dentro do prazo da garantia contratual.
Já a segunda corrente aduz que o fornecedor será responsável por vícios ocultos enquanto o produto ou serviço estiver dentro da sua vida útil. E nós nos alinhamos a esta pelos argumentos seguintes.
Em primeiro lugar, a garantia contratual, quando é estipulada, ela o é unilateralmente, ao exclusivo arbítrio do fornecedor, como também reconhece a primeira corrente. Contudo, entendemos que o parâmetro utilizado pelo fornecedor para fixar tal garantia não é o da vida útil do produto, mas a sua intenção de lucro e seu objetivo de reduzir seus custos ao abreviar o prazo pelo qual responde por eventuais vícios.
Até porque, se estivesse correta a primeira corrente, seríamos obrigados a concluir que nas hipóteses em que o fornecedor não oferece garantia contratual a vida útil do produto seria equivalente a zero. E isso violaria um dos princípios da tutela consumerista: dentre os diversos norteadores da Política Nacional das Relações de Consumo, encontramos aquele que determina que a Administração Pública agirá para garantir ao consumidor produtos duráveis (artigo 4º, II, “d”, do CDC).
Em segundo lugar, a primeira corrente, aparentemente, distingue desgaste natural e vício oculto conforme a expiração ou não do prazo de garantia contratual, respectivamente. No entanto, essa não nos parece ser a distinção mais recomendada, seja porque os institutos são diversos do ponto de vista ontológico – e não do volitivo do fornecedor –, seja porque submeter a fixação da vida útil de um bem ao exclusivo arbítrio do fornecedor exacerbaria a vulnerabilidade do consumidor, além dos demais aspectos já enfrentados no primeiro argumento.
Além disso, valer-se da garantia contratual como critério de fixação da vida útil de um bem estimularia, ainda que indiretamente, a obsolescência programada, pois essa fixação se fundaria em um parâmetro absolutamente arbitrário.
Em terceiro lugar, aceitar a responsabilidade do fornecedor por vício oculto apenas enquanto vigente a garantia implicaria dupla cobrança do mesmo bem: uma pela sua aquisição e outra pelo seu conserto em um momento no qual o produto ou serviço não deveria apresentar impropriedades.
Isso viola mais de uma norma jurídica: configura enriquecimento ilícito e afronta o princípio da boa-fé objetiva, pois, se ainda está na sua vida útil, nada mais lógico e legítimo que o consumidor não tenha que arcar com custos para manter o produto ou serviço funcionando, sob pena de desvirtuamento do próprio conceito de vida útil.
E uma vez que é legítima a expectativa do consumidor de que o bem por ele adquirido funcione adequadamente durante a sua vida útil, reveste-se de indispensável lealdade a conduta do fornecedor em oferecer seus bens sob tais parâmetros. Assim, pode-se afirmar que essa expectativa do consumidor quanto à vida útil do produto está protegida pela boa-fé. Nas palavras do ministro Salomão no REsp 984.106:
“9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo.”
E, finalmente, em quarto lugar, corrobora essa segunda corrente o fato de que, como dito, o CDC não previu prazo de garantia, mas de reclamação, porque impossível prever um prazo de garantia para cada produto.
Dessa forma, entender pela vinculação da responsabilidade do fornecedor ao prazo de garantia por ele estipulado geraria uma situação, no mínimo, curiosa, já que, no caso de não haver essa garantia, a rigor, o consumidor poderia reclamar, mas não teria garantia para embasar a reclamação. Seria uma reivindicação oca.
Não se desconhece o raciocínio empregado pela ministra Nancy Andrighi no REsp 967.623, mas, data venia, dele discordamos, exatamente porque, se o prazo de reclamação diz respeito apenas aos vícios ocorridos no prazo da garantia contratual, em inexistindo essa, não haveria possibilidade de reclamação alguma. Portanto, ainda que tecnicamente não tenha o CDC previsto prazo de garantia, apenas de reclamação, os prazos previstos no seu artigo 26, I e II, devem ser interpretados como que imbuídos de um direito de garantia.
Por todo o exposto, concluímos que cabe ao magistrado, no caso concreto, a determinação da vida útil, segundo as características do produto ou serviço, bem como a expectativa legítima da sua fruição e parâmetros de adequação. Essa a solução mais razoável porque
“É regra de equilíbrio que empresta utilidade à extensão diferenciada do prazo em relação aos vícios ocultos, ao mesmo tempo em que não permite interpretação irrazoável no sentido do estabelecimento de uma garantia sem termo final de eficácia, e confundindo-se, eventualmente, com o resultado do próprio desgaste natural do uso do produto”.
Autor: Pedro Machado Segall é bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduando em Direito do Consumidor pela Escola Paulista da Magistratura e escrevente de gabinete em 2º grau no Tribunal de Justiça de São Paulo.