Damásio de Jesus
A Lei n. 10.628, de 24.12.2002 [1] , inovando a matéria do foro por prerrogativa de função, deu nova redação ao art. 84 do Código de Processo Penal:
“Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
§ 1.º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
§ 2.º A ação de improbidade administrativa, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou a autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1.º”.
Com relação à cabeça do dispositivo, nada de substancial foi modificado, ocorrendo apenas aperfeiçoamento da redação, uma vez que o texto se encontrava desatualizado. A expressão “Tribunais de Apelação” foi substituída por “Tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal”. Além disso, houve o acréscimo do Superior Tribunal de Justiça no elenco dos tribunais competentes para o processo e julgamento nos casos de foro por prerrogativa de função.
Foram inseridas duas relevantes regras nos parágrafos: a primeira, conferindo foro especial mesmo após a cessação do exercício da função pública em relação às condutas relacionadas com os “atos administrativos do agente”, ou seja, aquelas realizadas na vigência do exercício funcional, ligadas diretamente à função (§ 1.º); a outra, estendendo o foro especial a acusados de atos de improbidade administrativa definidos na Lei n. 8.429, de 2.6.1992, inclusive após o término da função pública, no tocante a fatos praticados durante o seu exercício (§ 2.º).
À luz da Constituição Federal de 1988, afigura-se inconstitucional a outorga de foro especial a ex-ocupantes de cargo ou função pública. Violam-se o regime democrático e o princípio da igualdade, pois com a cessação do exercício funcional o agente se equipara ao cidadão comum.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a competência constitucional dos tribunais superiores merece interpretação restrita e não pode ser ampliada por via de lei ordinária [2] . A jurisprudência recente do Pretório Excelso trilha caminho semelhante, tanto assim que a Súmula n. 394 do STF foi cancelada em 1999. Referida súmula continha o seguinte enunciado:
“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.
Nos termos do enunciado, cometido o delito durante o exercício funcional, continuava a competência por prerrogativa de função do STF, do STJ e dos Tribunais de Justiça na hipótese de perda de mandato etc. Suponha-se que um Prefeito Municipal, processado por corrupção perante o Tribunal de Justiça, viesse a ter cassado o mandato. O feito prosseguia nesse tribunal. O STF, por unanimidade, em decisão de 25.8.1999, do Plenário, proferida no Inq. 687 (et al.), relator o Min. Moreira Alves, cancelou a Súmula n. 394. Como ficou consignado, ela garantia julgamento perante o Pretório Excelso a ex-Deputados e a ex-Ministros processados por crimes cometidos na atividade funcional, ainda que cessado esse exercício (perda ou término do mandato, demissão do ministério etc.). Diante do cancelamento, cessado, v. g., o exercício funcional, os autos deveriam retornar ao juízo de primeiro grau. A prerrogativa de foro, afirmou o Min. Carlos Velloso por ocasião do julgamento, pressupõe o exercício do cargo ou do mandato, razão pela qual a súmula, ampliando o privilégio, não condizia com o regime democrático. Para o Plenário, a prerrogativa é funcional e não pessoal. Assim, terminado o exercício do cargo ou do mandato, cessa também a competência funcional, sendo válidos os atos praticados e as decisões proferidas com base na referida súmula (decisões com efeito ex nunc). O Pleno, por 7 votos a 4, decidiu não editar nova súmula sobre o tema.
Na ausência do enunciado, por exemplo, os autos da ação penal por homicídio doloso promovida contra um Promotor de Justiça no Tribunal de Justiça, pedindo ele exoneração, devem ser remetidos ao Tribunal do Júri [3] .
A CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – ajuizou, em 27.12.2002, ação direta de inconstitucionalidade tendo como objeto justamente os §§ 1.º e 2.º do art. 84 do CPP, acrescentados pela Lei n. 10.628/02. O Ministro Ilmar Galvão, exercendo interinamente a Presidência do STF, negou a liminar em 7.1.2003, entendendo não estar configurado o periculum in mora. O julgamento do mérito ainda se encontra pendente.
Tendo em vista o indeferimento do pedido liminar, em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela CONAMP [4] , o § 1.º do art. 84, com a redação da Lei n. 10.628/02, deve ter aplicação imediata, por força do art. 2.º do CPP. Dessa forma, todas as ações penais referentes a ex-integrantes de cargos públicos com foro especial, que se refiram a atos administrativos por eles praticados no exercício do cargo, devem ser imediatamente remetidas ao tribunal competente.
Havendo remessa de processos aos respectivos tribunais envolvendo ex-ocupantes de cargos com foro especial, os atos processuais já praticados devem ser aproveitados [5] .
De ver-se que a 9.ª Câmara de Direito Público de Férias do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em agravo de instrumento, julgando recurso de um prefeito que pretendia deslocar uma ação civil pública por suposto ato de improbidade administrativa da comarca de origem para o TJSP, entendeu inconstitucional o § 2.º do art. 84 do CPP, com redação da Lei n. 10.628/02. [6]
[1] A Lei n. 10.628 entrou em vigor no dia 26 de dezembro de 2002.
[2] STF, Inq. 687, DJU de 9.11.2001. Nesse sentido: MAZZILLI, Hugo Nigro. O foro por prerrogativa de função e a Lei n. 10.628/02. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, jan. 2003. Disponível em: .
[3] Informativo STF n. 159/1-4, 23-27 ago. 1999 e DJU de 9.11.2001, p. 44.
[4] ADIn n. 2797.
[5] STF, Inq. 571, Plenário, DJU de 5.3.1997, p. 2897.
[6] O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10 fev. 2003. Caderno A, p. 11.