Foro privilegiado: Supremo em Números não pode ser “Números Supremos”

Autor: Lenio Luiz Streck (*)

 

Enfim, saiu o relatório da pesquisa realizada pelo projeto Supremo em Números da FGV (aqui)! Em 23 de fevereiro de 2017 analisei na ConJur o perigo das conclusões tipo “os números falam por si”! Título do meu texto: STF paga o pato! Existem mentiras pequenas, grandes e… estatísticas. Na época, antes mesmo da divulgação efetiva da pesquisa, o coordenador do projeto veio a público em diversas entrevistas – só se falava disso naqueles dias (oiçam aqui) — com perigosas valorações que alimentavam a ideia de responsabilidade do STF pela impunidade em casos de inquéritos e processos que envolviam o foro especial. Foi, assim, dada a largada para propagar a ideia de que a impunidade está associada à prerrogativa de função e que a rapidez e eficiência da Justiça ocorre somente na primeira instância. Por todos os cantos, concluía-se que o foro por prerrogativa de função era o culpado de tudo e o seu fim a salvação!

Recordo o que escrevi: que tudo o que o Supremo em Números, por seu coordenador, dizia podia estar correto, mas devia ser demonstrado. E sem as opiniões pessoais baseados em “dados adiantados” à imprensa.

Mas vamos lá! Afinal, o que diz o relatório?  Lembrando que, na época, o jornal O Globo publicou a seguinte manchete: Levantamento mostra que 68% de ações penais de quem tem foro privilegiado prescrevem. Folha de S.Paulo:  Supremo não dá conta. Carta Capital lascou: A suruba do foro está com os dias contados! Manchetes bombásticas. No meu artigo analisei tudo isso. Mas agora, com o relatório, tem muito mais. E, já de pronto, exsurge o viés de confirmação. Explico: O ministro Gilmar Mendes (aqui e aqui) e eu criticamos fortemente o vazamento de números da pesquisa da FGV não publicada sobre a matéria penal originária no STF. A reação do “Supremo em números” foi publicar a toque de caixa um relatório, procurando confirmar a suposta deficiência do STF.

O relatório continha erros de revisão – por exemplo, as tabelas não correspondiam ao texto. A versão que consta hoje no site não é a original.O grave, no entanto, é a forma como os números são trabalhados, com indisfarçado propósito de confirmar uma conclusão que precede a pesquisa. “Decido depois fundamento”!

Na verdade, falta uma coisa básica à pesquisa. Parece que O Supremo em Números — ao menos nesta pesquisa — não conhece bem o Supremo. E nem o processo penal. Vamos aos dados (o espaço deste artigo não me permite discutir todos os números; aqui discuto os mais importantes, que geraram as manchetes em todos os jornais – mas posso voltar em outros textos). Assim:

1) Tempo até o trânsito em julgado
No título 1.1 da pesquisa, “Tempo até o trânsito em julgado”, afirma-se que o andamento das ações penais é cada vez mais lento – tempo entre autuação e trânsito em julgado cada vez maior. Todavia, essa variável só considera as decisões que transitaram em julgado. Ou seja, se o processo segue em andamento, não entra na estatística.

Ao que se entende da descrição da metodologia, a pesquisa pegou os processos transitados em julgado em cada ano, contou o tempo da distribuição ao trânsito, e lançou-se no gráfico 1.1.2.Ainda assim, o relatório não informa o número de trânsitos em julgado por período.

Montando ou manipulando os números dessa forma, chega-se a conclusões distorcidas. Por exemplo, quanto mais o STF se movimenta e julga processos antigos, colocando em dia seu acervo, maior é o gráfico de tempo de tramitação. Que coisa, não? Se o STF quer ser eficiente, complica-se nos números. Ou seja, os números são lidos de cabeça para baixo. Esclareço: Houve pelo menos dois gargalos superados no período contemplado pelos gráficos 1.1.2 e 1.1.3 (2002 em diante), que explicam a suposta tendência de aumento da demora das ações penais. Ei-los:

a) O tribunal tinha casos antigos em andamento, contra parlamentares federais, que ficavam suspensos, por falta de autorização da casa para o processo. A culpa não era do STF. A partir de 2001, com a EC 35/2001, esses processos passaram a ter andamento. Muitos processos antigos passaram a transitar em julgado, sem que a suspensão constitucional fosse abatida no tempo de tramitação. Claro que a pesquisa não levou isso em conta.

b) A Emenda Regimental 49/2014 transferiu a competência de julgamento de Inquéritos e Ações Penais do Pleno para as Turmas. Daí em diante, houve um aumento considerável no número de julgamentos de casos antigos, que aguardavam espaço na pauta do Pleno.

2) O Tempo de Terceiros
O Relatório faz algum esforço para apurar o tempo de terceiros – especialmente o da PGR. Mas há mais. Vou ajudar a FGV. Faltou dizer que entre a autuação do inquérito e o oferecimento da denúncia, o papel do STF é de simples supervisão. A demora, nessa fase, costuma ter pouca ou nenhuma contribuição do tribunal. A Polícia conduz a investigação e o Ministério Público acusa.

Ainda assim, não foram levantados os dados relevantes: tempo da autuação do inquérito até o relatório policial e tempo da vista do relatório policial até o oferecimento da denúncia/pedido de arquivamento. Neste caso, o que o STF tem a ver?

3) Pendendo para defesa?
O item 3.1 critica o conteúdo das decisões, sugerindo que o STF é muito favorável às defesas, em inquéritos e ações penais: “Enquanto que 40,3% das decisões são favoráveis à defesa (com a rejeição da denúncia ou arquivamento, por exemplo), somente 5,2% são de recebimento da denúncia. Isso é extremamente relevante pois influencia o universo de posteriores ações penais”. Não entendi. É ruim absolver? A pesquisa toma partido da acusação? Como assim, se, no final do relatório, consta que “a missão institucional do Supremo não é condenar ou absolver”.

Vejamos a explicação do fenômeno “absolvições”:

3.1) Inquéritos
Tomadas as decisões definitivas em inquérito, o STF decidiria 43,34% das vezes pela defesa e só 5,56% das vezes pela acusação. Vejamos: Foram classificados como favoráveis à defesa os pedidos do próprio MP. Como os pesquisadores explicam isso? Vou ajudar a FGV: No Inquérito, o tribunal só pode decidir pela acusação se houver acusação. Muitos casos acabam em pedido de arquivamento, pelo PGR. Nada resta ao Tribunal além de atender. Falei disso no artigo anterior e parece que os pesquisadores não leram.

Outros tantos casos terminam em extinção da punibilidade, pelas mais diversas razões: homologação de transação penal, cumprimento da suspensão condicional do processo, falecimento etc. Isso não foi levado em conta na pesquisa. E fica mais um gap na pesquisa.

Apenas alguns inquéritos geram denúncia, que é apreciada pelo tribunal. Onde está o furo? Simples. A estatística que importa – número de denúncias recebidas vs. número de denúncias rejeitadas – não foi feita.

Há uma “concessão” a ser feita, decorrente da observação empírica: o STF é mais rigoroso que o juiz de primeira instância para receber denúncias. Isso decorre de pelo menos dois fatores, que os pesquisadores deveriam explorar e que lanço como contribuição:

(i) a apreciação da denúncia no STF é colegiada e fundamentada, na forma da Lei 8.038/90. Só que no primeiro grau isso é diferente: sabe-se que, de acordo com a jurisprudência, o juiz pode receber denúncias sem maiores considerações. Baita diferença, não?

(ii) o STF é a última instância, por isso pode dar a última palavra desde logo, sem aplicar “in dubio pro accusatione” – o STF não tem dúvidas. A pesquisa ignora que osarts. 395 e 397 do CPP só permitem ao juiz de primeira instância barrar a ação penal por causa “manifesta” ou “evidente”. No primeiro grau, na dúvida, a denúncia é recebida e a instrução segue. O momento reservado ao juiz para aprofundar a análise é a sentença. Com isso, se houver recurso, entrega-se a causa pronta ao Tribunal em julgamento de apelação. Já no STF, não há porque esperar, porque não há para quem recorrer. Na análise da denúncia, afere-se a viabilidade da ação de forma mais profunda.

3.2) Ações Penais
O problema da metodologia se repete nas Ações Penais. Teríamos 0,74% de condenações e 17,57% de decisões favoráveis à defesa. Problema: Em decisões favoráveis à defesa, a pesquisa junta um universo que engloba não só absolvições a pedido da acusação, mas também extinção da punibilidade ou da ação penal pelas mais diversas razões. De novo os números não podem falar por si. A estatística que importa – número de pedidos de condenação pelo PGR vs. número de condenações – não foi feita. E isso é mais um ponto que fragiliza a pesquisa.

4) Prescrição
Fala-se muito sobre a prescrição da pretensão punitiva por culpa do STF. Esquece-se que várias razões podem levar à prescrição.O STF, assim como qualquer Juízo, tem muito pouco controle da prescrição contada até o recebimento da denúncia. Não depende dele. São terceiros que lidam com os “autos”.

A fase de investigação pode demorar, especialmente em crimes de complexidade, como corrupção e crimes de licitações. Quando esses crimes são praticados na gestão pública, normalmente as investigações só se iniciam ao final do mandato do investigado. Até então, os fatos ficam encobertos. Vários países contam a prescrição apenas após o agente público deixar o mandato. No Brasil, não temos regra semelhante.

Para crimes ocorridos até 2010, ainda se aplicava a prescrição retroativa, entre o fato e o recebimento da denúncia. Ou seja, se um prefeito cometia um crime de licitações no primeiro mandato e se reelegia, era muito comum que, mesmo que viesse a ser condenado, não chegasse a cumprir pena, em razão da prescrição.

Vou ajudar de novo: Essa prescrição retroativa valia para qualquer processo, do STF à primeira instância. Apenas a Lei 12.234/10 mudou o artigo 110 do CP, acabando com essa prescrição retroativa. Ou seja, vários processos prescreviam no STF, por conta da demora da investigação, como ocorre em todas as instâncias. Então: Não houve, na pesquisa, separação da prescrição por culpa do STF ou por demora na investigação.

5) Instância Única
O STF julga casos em instância única. Ou seja, suas decisões equivalem não apenas à tramitação da ação penal em primeira instância, mas também a toda cadeia recursal. A comparação a ser feita – e que a pesquisa ignorou – deveria ser: tempo de denúncia a trânsito em julgado CPP vs. tempo denúncia a trânsito em julgado STF. Simples assim. Para não dar xabu nos números.

Há que se acrescentar que, embora o STF julgue ações penais relativas a qualquer delito de nossa legislação, dificilmente se depara com casos de prova simples, como ações que decorram da prisão em flagrante. Normalmente, a corte julga casos de considerável complexidade. Sem falar das defesas, que são competentes e especializadas.

Se a pesquisa fizesse uma análise global (levando em conta os demais tribunais e primeira instância), teria concluído que, para os parâmetros brasileiros, a jurisdição do STF não é morosa. Pelo contrário.

Para mostrar isso, vou auxiliar mais uma vez: Segundo dados do Justiça em Números do CNJ, relativos ao ano de 2016, 71% dos casos criminais não são julgados nem sequer em primeira instância em um ano de tramitação. Fala-se muito da velocidade de tramitação dos casos da “lava jato” em Curitiba. De fato, eles vêm se desenvolvendo com celeridade notável na instância de origem. Mas, após a sentença, sobrevém a fase recursal, sem nenhuma previsão de encerramento. Só de prisão preventiva tem gente presa há mais de ano.

É preciso saber que a estrutura atual de enfrentamento da matéria criminal originária no STF se consolidou mesmo em 2015, após uma série de mudanças, que incluíram: a) o fim da autorização para processo de parlamentares; b) a convocação de magistrados instrutores; c) a transferência da maior parte da competência criminal para as turmas.

Como mostra o levantamento das ações penais mais recentes, as ações penais iniciadas após essa estruturação foram, em sua maioria, julgadas em cerca de dois anos. Nem na minha cidade de Agudo os processos andam tão rápido. O tempo atual de tramitação no STF é consideravelmente mais breve do que aquele das instâncias ordinárias. Vejam, pois, como nem tudo que parece, é.

6) Estudo da estrutura atual
Aqui vai mais uma colher de chá: o primeiro semestre de 2015 é a fatia com melhor potencial para representar a configuração atual do STF para julgamento das ações penais originárias. Já havia o deslocamento da matéria penal para as Turmas, determinado pela Emenda Regimental 49/2014, e a estruturação da corte, com magistrados instrutores.

De lá para cá, o período não foi de calmaria para o STF. A cadeira deixada pelo ministro Joaquim Barbosa esteve vaga do final de 2014 até junho de 2015, quando foi empossado o ministro Edson Fachin. O tribunal enfrentou ações relativas ao momento político turbulento que o país viveu (e vive). Sem contar que, no final de 2017, mais uma cadeira restou vaga. São elementos objetivos que devem ser levados em conta.

E, atenção: ainda assim, a amostra de 2015 para cá é representativa. Processos autuados no primeiro semestre de 2015 já contam com algo entre 1 ano e 9 meses a 2 anos e 3 meses de tramitação. As ações penais distribuídas ao STF no 1º Semestre de 2015 estão, em sua maioria, julgadas, ou em vias de ser. Foram autuadas 42 ações penais nesse intervalo de tempo (são  46 números de atuação, números 903 a 948, mas tiveram atuação cancelada os números 909, 910, 934 e 948). Dezoito dessas ações penais foram julgadas. Duas foram suspensas, para negociação da suspensão condicional do processo, o que representa a tramitação regular para o tipo de crime envolvido. Das 22 ações ainda não julgadas, temos os seguintes andamentos atuais:

Análise-resposta: 1 (AP 927); Instrução: 7 (ações 914, 915, 930, 936, 938, 944, 945); Fase diligências: 2 (911, 923); Alegações finais: 2 (924, 940); Conclusas ao relator para voto: 4 (928, 935, 941, 939); Conclusas ao Revisor: 3 (921, 931, 943); Pautadas: 3 (907, 937, 942).  Veja-se que apenas 8 das ações penais ainda dependem de instrução. As demais se encaminham para julgamento. Isso em um período de cerca de dois anos.  Viram como é que é? Isso não conta a favor do STF? Isso não deveria aparecer na pesquisa? Esses dados estão no STF, disponíveis para pesquisa.

Permito-me dizer: Bingo. Há vários modos de contar as coisas. Uma ilha pode ser um pedaço de terra cercado por água ou um pedaço de terra que luta bravamente contra o assédio das águas. Ou, como o caso — que aqui já contei — da entrevista do presidente Lincoln de um pretendente a emprego, cujo pai havia sido morto enforcado por ser ladrão de cavalos. Claro que o candidato ao emprego não poderia contar sua origem nesses termos. E escreveu: meu pai estava em uma cerimônia pública e a plataforma cedeu.

Finalmente, leio que o jornal O Globo abriu novo espaço para que os responsáveis pela pesquisa voltassem à carga insistindo em suas suposições e “turbinando-as” com os números apresentados, os quais, como demonstrei acima, não se prestam para tanto.  A principal suposição, a qual serve de subtítulo ao artigo dos pesquisadores (O atual sistema provoca paralisia do Supremo Tribunal Federal e pode ser conivente para dezenas de congressistas investigados na “lava jato”), é que o foro privilegiado provoca paralisia do STF e “poder ser” conivente com os congressistas investigados na “lava jato”. Vejam os leitores que, quando os pesquisadores da FGV falam em paralisia referem-se aos prazos. Mas a “paralisia” existe apenas nestes expedientes que envolvem o foro especial? Acima demonstrei que não. Aliás, depois de 2015, ao contrário.

E como assim,“pode ser” conivente? A grande questão aqui é: seria diferente no primeiro grau? A Justiça seria, de fato, “eficaz e rápida na responsabilização de autoridades públicas quando cometem qualquer tipo de crime”? A pesquisa é expressa em afirmar que essa comparação sequer foi feita, mas nas manifestações de seus pesquisadores ela é pressuposta como certa! Ou seja, embora não tenham examinado esse detalhe, eles apostam que no primeiro grau tudo será/seria diferente. Mas não é! Talvez seja pior! Isso sem falar no segundo grau e no STJ. A propósito: A ação penal envolvendo a Boate Kiss é de janeiro de 2013… O caso Bruno é de 2010.

Há que se cuidar para que os números não se transformem em uma coisa que aqui no RS se chama de “tosa de porco”: muito grito e pouca lã.  Ou se proceda lançando mão daquilo que no meu novo livro Hermenêutica e Jurisdição chamei de “Fator Target” (efeito alvo): atiramos a flecha e depois pintamos sobre ela o alvo. Resultado: nunca erramos.

Pesquisas são importantes. Despiciendo falar da importância delas e da FGV. Também é óbvio que temos de repensar o foro. Deixei isso claro no artigo de 17F. Mas o foro existe não por culpa do STF. Devemos parar de querer alterar a CF toda hora em que existir uma tensão. Já demonstrei que os números não “batem”. E, como também demonstrei, a coisa não é como foi pintada pela FGV. Números podem distorcer a realidade. Por isso, no mínimo os dados devem ser trazidos de forma imparcial. Para dar ao leitor a oportunidade de tirar as suas próprias conclusões. Não parece ter sido o caso desta pesquisa Supremo em Números. Temo que outras pesquisas anteriores possam conter o mesmo vício. Esperamos que não.

Na mitologia, hermenêutica vem de Hermes, que ficou famoso porque transmitia aos mortais a palavra dos deuses. Só que nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse que os deuses disseram. Por isso, o cuidado que temos que ter para com o que Hermes nos diz. Mutatis, mutandis: os números não falam por si. Eles sempre dizem algo. Mas não dizem qualquer coisa…!

 

 

 

 

 

Autor: Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.


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