Autor: Francisco Glauber Pessoa Alves (*)
A fundamentação judicial é direito do jurisdicionado e dever do magistrado, com berço constitucional (artigo 93, IX) muito bem definido (ALVES, 2015, passim). A importância da matéria é reforçada na tradição constitucional lusitana (CANOTILHO et al., 2013, 1324). Esse elevado status da fundamentação já era reconhecido pelo festejado lente em sua obra clássica sobre a Constituição portuguesa (1999, p. 621).
Como reflexo disso, a processualística brasileira incorporou dita preocupação, erigindo a devida fundamentação como inerente ao Estado Democrático de Direito, por garantir a controlabilidade da atividade jurisdicional (ARRUDA ALVIM WAMBIER, 2005, p. 292; NERY JR. e NERY, 2015, p. 1.153). Até mesmo uma inspiração política foi destacada, possibilitando transparência, impugnação e controle pela sociedade em geral (CINTRA, 2000, p. 274; MIRANDA, 1997, p. 74), acentuando Moreira (1978, p. 116) ser a fundamentação uma garantia de imparcialidade do magistrado.
Obra clássica de Taruffo, datada de 1975, divisou as funções endoprocessual e extraprocessual da motivação (2005, p. 167-168). A primeira, enquanto requisito técnico, assegurando que a motivação é útil a) à parte que pretenda impugná-la, porque o conhecimento da motivação da decisão facilita a individuação do erro e b) ao juízo de impugnação (recursal, mais apropriadamente quanto ao direito brasileiro) porque viabiliza o reexame da decisão impugnada. A segunda dá ensejo a) ao controle externo das razões de motivação, b) à indução ao julgador de demonstrar a validade racional de suas razões frente ao sistema jurídico e c) à demonstração da eficácia persuasiva do precedente invocado como razão de decidir. Daí sua importância também para a decisão que não mais desafia recurso, como expressão da máxima garantia de justificação, o que já há décadas era no Brasil ressaltado (MOREIRA, 1978, p. 118).
Porém, não exigia o CPC de 1973 fundamentação exauriente, admitindo-se-a sucinta. Isso era da doutrina, no sentido de que “(…) as motivações concisas, que deixam entrever as razões pelas quais o magistrado optou por uma dada solução, não ostentam a mácula da inconstitucionalidade” (NOJIRI, 2000, p. 119) e também da jurisprudência, para quem a “(…) Constituição não exige que a decisão seja extensamente fundamentada. O que se exige é que o juiz ou tribunal dê as razões de seu convencimento” (STF, 2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso, AI 162.089-8-DF, DJU 15/3/1996, p. 7.209).
Essa perfeita calibração era tida em duas proposições conciliáveis: a sentença pode até ser omissa quanto ao que não é essencial, mas jamais quanto ao essencial. Há de se recordar, mais uma vez, as preciosas lições de Taruffo (2005, p. 169-171), ao asseverar a importância do magistrado demonstrar racionalmente (= justificação racional da decisão), não interessando, contudo, a formulação (= processo mental que conduziu o juiz a essa ou aquela decisão). Importa, assim, a obrigação ao juiz de “(…) una giustificazione razionale della sua decisione” (TARUFFO, 2005, p. 169).
Já de muito tempo eram criticadas as decisões que não enfrentariam todas as teses suficientes a influenciar o resultado do julgamento, tidas por insuficientes — ao que alguns já então equiparavam à ausência de fundamentação. Não havia, porém, pleno acatamento jurisprudencial dessa linha de argumentos, a partir de acórdãos vazados, no mais das vezes, na seguinte dicção: 1) “tendo o Tribunal de origem se pronunciado de forma clara e precisa sobre as questões postas nos autos, assentando-se em fundamentos suficientes para embasar a decisão, não há falar em afronta ao art. 535, II, do CPC, não se devendo confundir fundamentação sucinta com ausência de fundamentação” (REsp 763.983/RJ, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJ 28/11/2005) (STJ, 1ª Turma, AgRg no AREsp 12.346/RO, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 26/8/2011); 2) “(…) tendo encontrado motivação suficiente para fundar a decisão, não fica o órgão julgador obrigado a responder, um a um, todos os questionamentos suscitados pelas partes, mormente se notório seu caráter de infringência do julgado. Precedente: 1ª Turma, AgRg no AREsp 12.346/RO, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 26/8/2011” (STJ, 1ª Seção, REsp 1.104.184/RS, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 8/3/2012). É, aliás, deveras conhecida a frase de Winston Churchill: “Das palavras, as mais simples: das mais simples, a menor”.
Assim, havendo fundamento suficiente (ou seja, o inverso do fundamento insuficiente), ainda que único e mesmo que os demais argumentos invocados na inicial ou na defesa não sejam enfrentados, para o julgamento de procedência ou de improcedência, deve ser entendida como devidamente motivada a decisão.
O CPC de 2015 trouxe uma nova técnica de fundamentação da decisão judicial, contida nos artigos 10 e 489 do CPC. Já discorremos longamente sobre o assunto em outro momento (2015, passim), e não é essa a quadra para retornar a ele com vagar sem incorrermos em redundância. Para fins deste comentário, basta-nos o que segue. Cuida-se de um reforço da exigência constitucional (artigo 93, IX da CF), incorporando a concepção de fundamentação exauriente (ou completa) e abandono da fundamentação suficiente, conceito que pode ser reproduzido em jurisprudência clássica, no sentido de que “Constituição não exige que a decisão seja extensamente fundamentada. O que se exige é que o juiz ou tribunal dê as razões de seu convencimento” (2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso, AI 162.089-8-DF, DJU 15/3/1996, p. 7.209).
O artigo 93, IX da Constituição Federal demanda a presença da devida fundamentação das decisões judiciais (acórdãos, sentenças e decisões interlocutórias). Aos juizados especiais, de igual constitucionalidade (artigo 98, I), foi autorizado (o que inalterado pelo CPC de 2015) um panorama próprio de fundamentação, previsto na Lei 9.099/95. Segundo ele: a) a sentença mencionará os elementos de convicção do juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório (artigo 38); b) o julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva (artigo 46, primeira parte); c) se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão (artigo 46, segunda parte).
A vinda do CPC não trouxe qualquer mudança na legitimidade desse modelo de fundamentação bem específico. Ele é justificado na perspectiva dúplice de se prestar (1) às decisões em causas de menor complexidade e, a partir daí, (2) garantir que essas causas sejam celeremente processadas. Jamais se defendeu com alguma densidade ou frequência a inconstitucionalidade desse modelo, cuja base sempre foi a Constituição Federal (artigo 98, I) e não o CPC. Muito pelo revés, assentou o STF em vários precedentes, inclusive em sede de repercussão geral, que “(…) não viola a exigência constitucional de motivação a fundamentação de turma recursal que, em conformidade com a Lei nº 9.099/95, adota os fundamentos contidos na sentença recorrida” (STF, 2ª T., RE 724.151-AgR, rel. min. Cármen Lúcia, DJe 28/10/2013; STF, 1ª T., ARE 718.596 AgR/RJ, rel. min. Dias Toffoli, DJe 15/3/2013; STF, Plenário Virtual, RE 635.729/SP-RG, rel. min. Dias Toffoli).
Temos, portanto, que por força dos princípios da simplicidade, celeridade, informalidade e economia processual (artigo 1º da Lei 9.099/95), não se exige, nos juizados especiais, uma fundamentação tão rígida quanto a prevista no CPC (artigo 489), conquanto ela deve ser bastante, clara, ciosa do enfrentamento mínimo das questões de fato e de direito da lide. A escorreita fundamentação (TARUFFO, 2005, p. 167-168) é fator de legitimação interna (impugnabilidade pelas partes e conhecimento das razões de decidir pela instância ad quem — função endoprocessual) e externa (conhecimento pela sociedade dos argumentos judicialmente utilizados, indução do julgador à demonstração da validade racional de suas razões frente ao sistema jurídico e à demonstração da eficácia persuasiva do precedente invocado como razão de decidir — função extraprocessual), e tais funções são perfeitamente atingíveis nos juizados especiais. Assim, havendo fundamento suficiente (ou seja, o inverso do fundamento insuficiente), ainda que único e mesmo que os demais argumentos invocados na inicial ou na defesa não sejam enfrentados, para o julgamento de procedência ou de improcedência, deve ser entendida como devidamente motivada a decisão.
Nesse condão, entendemos não ser aplicável a disciplina dos artigos 11 e 489 do CPC aos juizados especiais, por já comportarem estes um modelo próprio e de fundamentação de assentamento constitucional. Pela inaplicabilidade: Donizetti (2015, p. 94-97); Oliveira (2015, p. 101-103). Contrariamente, é verdade: Silva (2015, p. 511); SCHMITZ (2015, p. 524).
Há uma forte sinalização quanto à inaplicabilidade aos juizados especiais a partir das seguintes perspectivas: Enunciado 162 do Fonaje (“Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95″), Enunciado 153 do Fonaje (“A regra do art. 489, parágrafo primeiro, do NCPC deve ser mitigada nos juizados por força da primazia dos princípios da simplicidade e informalidade que regem o JEF”), Enunciado 10 da Enfam (“A fundamentação sucinta não se confunde com a ausência de fundamentação e não acarreta a nulidade da decisão se forem enfrentadas todas as questões cuja resolução, em tese, influencie a decisão da causa”) e Enunciado 47 da Enfam (“O art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizados especiais”). Contrariamente, Enunciado 309 do FPPC (“O disposto no § 1º do art. 489 do CPC é aplicável no âmbito dos Juizados Especiais”).
Autor: Francisco Glauber Pessoa Alves é juiz federal presidente da Turma Recursal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Potiguar de Processo Civil (IPPC).