Fundamentos aprócrifos contaminam prisões preventivas

Autor: Luis Henrique Machado (*)

 

Há um provérbio irlandês que diz: “se contemplarmos longamente a escuridão, algo sempre aparece…”. Em tempos obscuros para os direitos e garantias fundamentais, em matéria penal, novas premissas e concepções surgem, o que nos levam à reflexão. Em sentido inverso, caminhando para o interior da caverna de Platão, ao abandonar a luz do sol, talvez passemos a acreditar, equivocadamente, que as sombras sejam a realidade.

Em recente posicionamento, o juiz Sergio Moro revela que, “embora as prisões cautelares decretadas no âmbito da ‘lava jato’ recebam pontualmente críticas, o fato é que, se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro criminoso. Se os custos do enfrentamento hoje são grandes, certamente serão maiores no futuro”. Afirma ainda que, ao justificar o decreto de prisão, “excepcional não é a prisão cautelar, mas o grau de deterioração da coisa pública revelada pelos processos na ‘lava jato’.” Em arremate, afirma que a prisão, nessas hipóteses, é a “aplicação ortodoxa da lei”.[1]

De antemão, abre-se um parêntese para frisar que se há um desvio de conduta endêmica, definitivamente não é a prisão preventiva a solução. Tampouco ampliar o objeto desta modalidade de prisão sob o pretexto de correção social.

Em que pese o decoro e o empenho do magistrado na condução da operação, discordamos de tais opiniões. Importante ter em mente que a prisão preventiva possui, em sua essência, o viés de proteger e garantir a eficácia do processo, razão pela qual sua natureza é meramente acautelatória. Nesse jaez, a prisão preventiva não tem o condão de pena antecipada, bem como é despropositado decretá-la com a finalidade de combater a corrupção sistêmica, ou por questão pedagógica, ou por pressão da opinião pública ou mesmo com intuito investigativo. Isto é, prender para averiguar a origem do dinheiro, por exemplo, sob o argumento de que os ativos seriam dilapidados ou então objetivando extrair eventual confissão do acusado ou mesmo impeli-lo à colaboração premiada. Aqui, revelam-se casos típicos em que a doutrina e a jurisprudência alemã denominam, em estudos avançados, de “fundamentos de prisão apócrifos” (Apokryphe Haftgründe).[2]

Apócrifo é um adjetivo qualificativo, de origem no termo grego apokryphos, que significa oculto. Trata-se, portanto, de um fundamento, não previsto em lei, mas que, na prática, vem sendo utilizado de modo decisivo para decretar e manter a prisão preventiva. Na verdade, eles se escondem por trás dos fundamentos legais, para dar aparência de legalidade e, assim, legitimar a ordem de prisão. Desse modo, sentencia a doutrina alemã que a decretação da prisão preventiva (Untersuchungshaft), tomando como base tais razões, assentados em fundamentos apócrifos, significa nada mais do que um resultado calcado em um rótulo fraudulento.[3]

É evidente que nenhum magistrado fundamentará a ordem de prisão preventiva com fulcro: a) na “pressão da opinião pública” (Druck der öffentlichen Meinung); b) no “estímulo para facilitar confissão” (Förderung der Geständnisbereitschaft); c) na facilitação da investigação (Erleichterung der Ermittlungen), ou d) no estímulo para cooperação com as autoridades de investigação (Förderung der Kooperationsbereitschaft mit den Ermittlungsbehörden). Eles, por sua vez, permanecem ocultos.

Todavia, no momento da elaboração da decisão, o fundamento apócrifo emerge sob nova faceta, adquirindo roupagem diversa, transvestindo-se em motivos “teoricamente” legais, porém, vagos. Exemplo típico e recorrente é fundamentar a prisão preventiva tendo em vista o perigo de fuga, visando garantir a aplicação da lei penal, alicerçado em fundamentos como a “dupla-nacionalidade”, ou a “manutenção de ativos no exterior”. Outra clássica hipótese é a fundamentação com amparo no perigo de reiteração criminosa, tomando por base a garantia da ordem pública, quando a prisão se refere a fatos pretéritos e não há indício [concreto] de conduta ilícita superveniente. Em outras palavras, inexiste contemporaneidade entre os fatos delituosos e o decreto de prisão — é o que se denomina de prisão post tempus.

Bem comum, nesses casos, o juiz utilizar o futuro do pretérito na redação da decisão, como “poderia”, “seria”, “ocorreria”, pendendo para um subjetivismo intuitivo, incorrendo em mero exercício de futurologia. De se ver que a razão pela qual impulsiona o decreto de prisão preventiva pode ser qualquer um dos fundamentos apócrifos [ocultos] retromencionados.

Nessas hipóteses, compete à instância revisora zelar pelo rigor da cautelaridade da medida de prisão, quando necessária, impedido, assim, que fundamentos apócrifos contaminem a finalidade para a qual a prisão preventiva foi concebida na ordem jurídica. Sobreleva anotar que a prisão preventiva é medida excepcionalíssima, seja no sistema brasileiro, seja no alemão, haja vista os princípios que ambos países comungam em seus respectivos ordenamentos, tais como a liberdade (Freiheitsprinzip), a presunção de inocência (Unschuldsvermutungsprinzip) e a proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitsprinzip).

Em resumo, é de vital importância a assepsia do conteúdo decisório, desalojando a fundamentação apócrifa. O que se procura, aqui, é adequar a prisão preventiva para a finalidade que foi criada, restaurando a sua essência. Necessário impedir a distorção de seus fundamentos legais, prezando-se, sobretudo, pelo cumprimento do devido processo legal. Não se defende, neste artigo, a impunidade. Pelo contrário. Somente se faz um simples, mas importante alerta de que a prisão preventiva jamais pode ganhar o viés de pena antecipada em um Estado Democrático de Direito. Afinal, não é juridicamente ortodoxo demonstrar, por um lado, o fumus comissi delicti, e, por outro, embuçar o periculum libertatis.

Em tempo e buscando novamente a saída da caverna, lembremos a aguda observação de Ferrajoli: “não se pode castigar para depois condenar”.

 

 

 

Autor: Luis Henrique Machado é sócio do escritório Machado Ramos & Von Glehn advogados, mestre e doutorando pela Universidade Humboldt de Berlim.


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