O que há em comum nestas duas manchetes, recentemente publicadas?
“Justiça demora dois anos para decidir sobre furtos de R$ 1 —processos custam, em média, quase 2.000 vezes mais para os cofres do Poder Público do que o valor dos objetos furtados”.
“Homem é preso por furto de papel higiênico em banheiro”.
Acontecem todos os dias. Os jornais e sites publicam, como deve ser. A mídia televisiva, temperada com aquele sensacionalismo provocante, “homenageia” os protagonistas, que servem de tristes exemplos à concretização escancarada da aplicação desequilibrada, anômala, do que entendem por Justiça.
A verdade é que, às vezes, o detalhe (apenas para nós, claro, meros espectadores), acabam por desqualificar o trabalho de anos e anos. É recorrente na mente do povo a indigerível situação, caracterizada pela manipulação da “fantochada sem cérebro”, representativa alcunha já utilizada, cujos resquícios anímicos são os ineficientes desabafos, proferidos em tom de chacota, nos bares, escritórios e elevadores: “Vocês viram, ‘fulano’ foi preso porque furtou uma galinha, enquanto os verdadeiros criminosos, que roubam e desviam milhões e milhões estão soltos…Não dá pra crê nessa Justiça”. (sic —imaginário).
A lógica é perversa, porém contornável. O câncer cinge-se tanto aos soltos, injustamente, quanto aos presos, desnecessariamente. Porque é dessa equação que surge um produto inexplicável, senão sob o ponto de vista jurídico, aos leigos, ansiosos por Justiça. Pretensão que, de tão legítima, é responsável pelas bases que sustentam a todos nós, operadores do direito.
Quanto ao “pequeno furtador”, o Judiciário costuma fazer sua parte, aplicando rigorosamente a lei. A autoridade policial também, ao formalizar as prisões dos agentes em situações de flagrância delitiva, assim definidas em lei. Aliás, devem fazê-lo, sob pena de infringirem eles a legislação penal.
Felizmente, neste particular, a solução não nos parece complicada.
O artigo 155, caput, do Código Penal Brasileiro traz como preceito secundário a pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Trata-se do furto simples (subtração de bem móvel, sem violência ou grave ameaça). Neste caso, considerando que a pena máxima supera 2 (dois) anos, não há como inseri-lo na categoria dos crimes denominados de “menor potencial ofensivo”.
Isso significa, dentre outras conseqüências, que uma vez caracterizado o flagrante de furto, o agente será devidamente preso e poderá ser solto, desconsiderando eventuais nulidades, caso estejam ausentes os pressupostos para a prisão preventiva. Na prática, pois, na grande maioria dos casos, os agentes saem, acertadamente, mediante concessão de liberdade provisória.
Mas e com relação ao furto de pequeno valor, objeto de nossa análise?
O Código Penal versa sobre tal hipótese no parágrafo 2º, do seu artigo 155, definindo o que a doutrina conhece por furto privilegiado ou furto mínimo. Diz o aludido preceito que “se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”.
A questão é que tais alternativas, que minimizam a situação do agente, somente podem ser reconhecidas e aplicadas pelo magistrado, após análise dos autos. Não é possível o reconhecimento a priori, no Distrito Policial, de modo a ensejar a soltura do agente, eventualmente detido em flagrância delitiva pelo furto de pequeno valor.
Daí transcorrerem situações inconcebíveis aos olhos do grande público, como aquela corporificada pelo agente que foi preso tentando furtar papel higiênico —sequer chegou à etapa final do iter criminis e, até o momento em que escrevo as presentes linhas, pelo que sei, ainda estava preso (três dias).
É bem verdade que ele não tinha nem conhecia advogado que pudesse interferir em seu favor. (Oportuno citar que, em boa hora, foi recentemente publicada a Lei 11.449/2007 que alterou o artigo 306, do Código de Processo Penal, obrigando o envio de cópia do auto de prisão em flagrante para a Defensoria Pública. Tal medida ensejerá a adoção de providências urgentes, já em âmbito inquisitorial, favorecendo aqueles que não puderem constituir advogados).
De toda forma, antes do finalmente, momento em que as tão alardeadas “mudanças efetivas no Código de Processo Penal” integrarão nosso ordenamento, bastaria a criação de um tipo de furto derivado, de pequeno valor, com pena que permita a inclusão deste tipo de crime no rol dos chamados crimes de menor potencial ofensivo. Penso, até, que bastaria a previsão isolada de pena pecuniária. Proeminente que tal conceito não seja, de modo algum, aplicado quando presente quaisquer das qualificadoras do parágrafo 4º, como o concurso de agentes, por exemplo.
Da forma como está descrito no código, todavia, não há a possibilidade de se reconhecer, previamente, tal conduta como de menor potencial ofensivo.
Uma vez definido em lei o critério “pequeno valor”, que poderia ter como teto, apenas como sugestão, o valor correspondente a um quarto do salário mínimo vigente ao tempo da prática do crime (o valor não pode ser elevado, de modo a não incentivar a prática delituosa), necessário, também, que se conceda à autoridade policial ou perito poder para se proceder, perfunctoriamente, tal avaliação, para efeito de classificação penal provisória. Feito isto, não nos depararíamos mais com tais situações que atingem desproporcionalmente o agente e, de modo coetâneo, maculam a boa face da prestação jurisdicional.
E isto porque, uma vez reconhecido como delito de menor potencial ofensivo, não se lavrará auto de prisão em flagrante (portanto, não haverá prisão, nem flashes ou filmagens), desde que o agente se comprometa a comparecer em juízo para a realização de audiência preliminar, na data marcada.
Por outro lado, a Justiça também não perderá muito tempo e dinheiro, já que o caso poderá ser resolvido, presentes os demais requisitos legais, já na audiência preliminar (transação), sem necessidade de denúncia formal e processo, cujo custo médio, segundo estimativa feita no Diagnóstico do Poder Judiciário, da Secretaria Nacional de Reforma do Judiciário, oscila em R$ 1.900 (por processo), na Justiça Comum.
Não nos olvidamos que, para alguns, bastaria a aplicação, nestes casos, do princípio da insignificância ou de bagatela, em que não se reconhece haver crime de furto, em face da pequena lesão ao bem jurídico tutelado, o patrimônio. Ocorre que, como se disse, tal reconhecimento é feito apenas pelo magistrado, posteriormente, e é embasado na doutrina e jurisprudência. Não em lei. Isso dificulta a sua ampla aplicação, notadamente o arquivamento dos inquéritos policiais.
Além do mais, justamente porque tal princípio não é estritamente regulado por lei, inexiste um consenso sobre a sua aplicação. Exemplo disso pode ser constatado na decisão publicada no último dia 29 de março, no site Última Instância, com o título “Doméstica deve ser condenada por furto de óculos, diz STJ”. A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, instada a se manifestar sobre o furto de um óculos, avaliado em R$ 158, entendeu que o caso não se insere no conceito de crime de bagatela, reformando as decisões absolutórias de primeiro e segundo graus.
A verdade é que nem sempre a solução para a criminalidade passa, obrigatoriamente, pelo endurecimento da lei penal. Parece-nos mais relevante e eficaz o investimento na proporcionalidade do sistema penal, com respostas adequadas para cada conduta delituosa, em comparação às demais existentes e a certeza de que tais conseqüências serão, de fato, aplicadas àqueles que as infringirem.
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Rodrigo Felberg é advogado criminalista, graduado pela PUC-SP, ex-delegado de polícia, mestre em direito penal, político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e professor de direito penal e direito processual penal