Furto de uso de veículo

Eneida Orbage de Britto Taquary

Na legislação Penal Comum, o Código Penal de 1969 foi precursor da tipificação do crime de furto de uso automotor, disciplinado no Título II — Dos Crimes Contra o Patrimônio, Capítulo I, ao estatuir, no art. 165: ‘‘Se a coisa, não fungível, é subtraída para fim de uso momentâneo e, a seguir, vem a ser imediatamente restituída ou reposta no lugar onde se achava’’ e no seu § 1º ‘‘as penas são aumentadas de metade, se a coisa usada é veículo motorizado, e de um terço se é animal de sela ou de tiro’’. Entretanto, a norma acima jamais foi aplicada, porque o código não entrou em vigor.

A legislação Penal Especial, o Código Penal Militar, instituído por intermédio do Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, andou de mãos dadas com o Código Penal de 69, quando previu o furto de uso, ao estatuir em seu art. 241: ‘‘Se a coisa é subtraída para o fim de uso momentâneo e, a seguir, vem a ser imediatamente restituída ou reposta no lugar onde se achava’’ e em seu parágrafo único acrescenta: ‘‘A pena é aumentada de metade, se a coisa usada é veículo motorizado; de um terço, se é animal de sela ou de tiro.’’

No furto de uso, previsto pelo Código Militar, além das elementares do crime de furto na sua forma fundamental, é necessário que coexistam o elemento objetivo do injusto, diverso do dolo, que é expresso pelo fim de uso momentâneo da coisa e, por derradeiro, o elemento objetivo, qual seja, a restituição ou reposição da coisa imediatamente no lugar onde se achava, descaracterizando de forma peremptória o ânimo de assenhoreamento definitivo. Não consagrou, no entanto, o atual Código Penal o furto de uso, precipuamente, aquele que recai sobre veículos automotores.

A ausência de respaldo jurídico para tipificação do crime de furto de uso no Código Penal enseja sua caracterização como furto simples ou furto qualificado, em especial no tocante a veículos automotores, porque, em regra, o agente, apesar de não ter o animus de apoderar-se do veículo, usa-o na prática de outro crime ou subtrai peças que o compõem, abandonando-o em local diverso daquele que foi subtraído, ocultando-o ou danificando-o propositadamente, criando óbices para que seja localizado. Jamais procede à devolução do bem, seja porque desconhece quem seja seu proprietário, seja porque desconhece o endereço para devolução, deixando evidenciado que a intenção era causar dano ao patrimônio.

É curiosa a observação registrada à época pelo ministro Luís Antônio da Gama e Silva, na exposição de motivos do referido diploma, nº 54, in fine: ‘‘O furto de uso, que se faz mais e mais freqüente, em especial no que se refere ao automóvel, é agora previsto. É claro que se o agente subtraiu o veículo, usou-o e, em vez de repô-lo no lugar onde se achava, abandonou-o em qualquer outra parte, não realizou o furto de uso, mas o furto consumado’’. Daí porque incluía na tipificação do furto simples o que recaísse sobre o veículo, sem fazer qualquer menção especial a esse objeto.

Em nível doutrinário, rechaçada a tese do crime do furto de uso pelos motivos acima, subsiste a caracterização do furto simples, desde que comprovada as elementares do crime (retirada da coisa, alheia e móvel, da esfera da disponibilidade do dono, com o intuito de assenhoreamento definitivo, para si ou para terceiro, com dolo direto ou eventual) e não concorram com essas elementares o elemento subjetivo do injusto, expresso pelo fim de uso momentâneo da coisa e ainda que não haja a restituição ou reposição da coisa imediatamente, no lugar em que se achava.

Quanto à caracterização do furto qualificado, deve ser salientado que, além das hipóteses elencadas no § 4º do art. 155, poderá caracterizar-se também a qualificativa prevista no § 5º do mesmo artigo, que somente após várias décadas foi introduzidas no CP, por intermédio da Lei nº 9.426, de 24.12.96, demonstrando inequivocamente a preocupação com o furto e roubo de veículo automotor, que é transportado para outro estado ou para o exterior, diferenciando-se dos outros legisladores, que apesar de terem previsto o furto de uso não incluíram o furto de veículo como figura qualificada, como temos hoje.

Corroborando o entendimento acima, o egrégio TJDF tem rechaçado a tese do furto de uso, principalmente quando o objeto do crime e veículo automotor, para reconhecer o crime de furto qualificado. Nesse sentido é o acórdão proferido na Apelação na Apelação Criminal nº 15.592/95, cuja ementa possui o seguinte teor: ‘‘Caracterizado está a qualificadora do furto, vez que o laudo de exame em veículo informa, sem divergência por parte dos peritos, que houve arrombamento nos cilindros de ignição e da tampa de combustível. A tese de furto de uso deteriorou-se quando, além de demonstrada a danificação proposital de parte do veículo, saía de Taguatinga para Samambaia, não conhecia seu proprietário e muito menos o seu endereço. A confissão para ser aceita como válida e alcançar a pretendida diminuição da pena há de ser aquela em que a autoria de determinada infração penal é desconhecida, apresentando-se espontaneamente o seu autor, o que não é o caso dos autos.’’

Aqueles que, em regra, sustentam a tese do furto de uso pretendem na realidade não apenas a redução da pena, como fulcro no art. 16 do CP, mas a própria atipicidade do fato, excluindo-se não só a antijuridicidade, mas, também, os requisitos do crime. A aceitação da hipótese do furto de uso, antes de mais nada, é o reconhecimento da ausência desses elementos.

Por derradeiro, cumpre ressaltar que a ausência da previsão do furto de uso como crime no atual CP nenhum prejuízo trouxe ou traz aos operadores do direito, porque aquele que subtrai um ou mais veículos, muitas vezes no mesmo espaço de tempo, lugar e modo de execução, o faz para utilizá-los no cometimento de crime mais grave, abandonando-os ou danificando-os logo após, ensejando, portanto, a aplicação da regra inserta no artigo 69 ou 71 do CP, que prevê o concurso material de crimes (sendo o primeiro deles o furto simples ou qualificado) ou o crime continuado.

Eneida Orbage de Britto Taquary
Delegada da Polícia Civil do Distrito Federal e professora
de Direito Penal do Centro de Ensino Unificado de Brasília – Ceub

Extraído do jornal Correio Braziliense

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