Futebol, tercerização e responsabilidade fiscal.

Francisco A.V.P. Silva e Ana Carolina M.S. Costa

Animados pela aspiração de obter proveitos econômicos em certos negócios jurídicos relativos às suas atividades, particularmente na contratação de atletas, técnicos e administradores, os clubes de futebol são tentados a se livrarem dos pesados encargos trabalhistas, previdenciários e fiscais, emergentes de vínculos empregatícios, regulados na Consolidação das Leis do Trabalho e legislação complementar.

A preocupação combina, outrossim, com as atuais e notórias aperturas financeiras por que passam as entidades de prática futebolística e desportiva em geral.

O desiderato insere-se na liberdade dessas contratações por valores econômicos menos onerosos, inclusive na esfera tributária, desde que cumpridas as regras legais. É um direito constitucional, já que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

A nossa reflexão a propósito volta-se para o instituto de tercerização, segundo o qual uma empresa contrata com outra a realização de determinados serviços, a serem executados habitualmente por empregados desta. Tem uso corrente nos serviços de limpeza e manutenção, segurança ou vigilância, transporte de valores (Lei nº 7.102/83), restaurantes, etc. O emprego materializa-se entre o trabalhador e a locadora do serviço, isentando-se o tomador dos encargos trabalhistas em geral, ou amenizando a incidência.

Esquematicamente, o clube contrata serviços especializados com uma empresa, no mais das vezes constituída pelo próprio prestador das tarefas, que pessoalmente as exercerá. Ambas as partes colhem os benefícios da redução de despesas, graças à diminuição dos encargos trabalhistas (INSS, FGTS, Férias, 13º Salário, Imposto de Renda, Seguro-acidente, etc.).

O procedimento não tipifica fraude se não houver violação de norma jurídica, desvendando-se nesse caso, a elisão fiscal, afinada com a legalidade. Aliás, “seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto lícitos) para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele meio que determinasse pagamento de tributo mais elevado” (Alfredo Augusto Becker – “Teoria Geral do Direito Tributário”, 2ª ed. Saraiva, pg. 122).

À diferença da evasão lícita, o contrato sob cogitação, camuflado sob a forma civil, será fraudulento se as obrigações do prestador do serviço (atleta, técnico, administrador) enquadrarem-se nos termos legais configuradores da relação de emprego.

A fraude é verificável pela presença dos requisitos clássicos do liame de emprego: habitualidade, subordinação, onerosidade, pessoalidade e ausência de prestação de serviço por conta de outrém (alteralidade).

Em abreviado, em vez da real tercerização, esses ajustes disfarçados caracterizam contrato de trabalho por interposta pessoa, à vista da subordinação direta e contínua, além do pagamento de salário, implicando a nulidade de pleno direito (CLT, art. 9º).

Os abusos advindos dessa tercerização em detrimento da pura locação de serviços, redundou na Súmula 256 do Tribunal Superior do Trabalho: “Salvo nos casos de trabalho temporário e de serviços de vigilância, previstos nas Leis 6.019, de 03.01.74 e 7.102, de 20.06.83, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços”.

Mas não parou aí, pois subseqüentemente o TST emitiu a Súmula 331, em revisão à 256, firmando nova compreensão: “I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei 6.019, de 03.01.74). II – A contratação irregular do trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (Art. 37, II, da CF). III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei 7.012, de 20.06.93), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador de serviços quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste do título executivo judicial”.

Nessa perspectiva, a liceidade e ausência de simulação fundamentam-se no contrato-realidade, expressão cunhada por De La Cueva, e não simplesmente no que vem consignado num documento ou acordo de perfil civilístico.

Citado por Américo Plá Rodrigues, aquele jurista argentino resume desse modo a questão: “Existe, por conseguinte, uma diferença essencial entre o contrato de trabalho e os contratos de direito civil. Nestes, a produção dos efeitos jurídicos e a aplicação do direito somente dependem do acordo de vontades, enquanto no de trabalho é necessário o cumprimento mesmo da obrigação contraída; donde se deduz que no direito civil o contrato não está ligado a seu cumprimento, enquanto que no do trabalho não fica completo senão através de sua execução” (Princípios de Direito do Trabalho – 3ª ed. LTR, pg. 339, tradução e revisão de Wagner D. Giglio).

Os pressupostos, sobretudo a habitualidade, subordinação e pessoalidade apontados para o contrato de trabalho, hão de estar ausentes de tais contratações para elidir a fraude viciadora do negócio jurídico.

No tocante ao contrato de trabalho do atleta profissional de todas as modalidades esportivas, vale o aviso sobre a indispensabilidade de documento formal firmado com a entidade de prática desportiva, pessoa jurídica de direito privado, que deverá conter, obrigatoriamente, cláusula penal para as hipóteses de “descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral”, a teor do artigo 28 da Lei nº 9.615, de 24/3/98.

Sem embargo das agruras econômicas dos clubes de futebol, os riscos de contratos quejandos assomam mais penetrantes nos dias de hoje, quando após duas Comissões Parlamentares de Inquérito, instauradas no Campeonato Nacional, se especula seriamente sobre a edição de Medida Provisória destinada a responsabilizar os seus dirigentes pelas infrações de natureza fiscal, inclusive na órbita penal, não bastassem as pesadas sanções já previstas como consequência do ato fraudulento. E não se perca de vista as conseqüências da nulidade com o reconhecimento judicial de todos os direitos do trabalhador e do fisco.

* Francisco de Assis Vasconcellos Pereira da Silva é Desembargador Aposentado, Conselheiro do Instituto dosAdvogados de São Paulo e advogado do Rui Celso Reali Fragoso Advogados Associados

* Ana Carolina Magarão Silva Costa é advogada do Rui Celso Reali Fragoso Advogados Associados.

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