Paulo Andres Costa
Reconhecidas como fonte de boa parte dos conflitos em condomínio por unidades autônomas,
as garagens são submetidas a uma infinidade de conceitos que vão desde o simples direito de
estacionamento de veículos, regulado por convenção de condomínio, à perfeita
individualização de unidade autônoma, com matrícula própria no Cartório de Registro de Imóveis.
Sem dúvida, os problemas com origem no uso das garagens encontrados na convivência condominial
têm seu nascimento numa legislação que aborda o tema sem resolvê-lo conceitualmente.
Uma tese defendida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal de Justiça Nelson Jobim diz, em
termos resumidos, que o Legislativo brasileiro usa como principal ferramenta a polissemia, para fugir
dos inúmeros impasses que envolvem definições polêmicas, ainda mais quando estas atingem
interesses específicos. Assim, são escolhidos conceitos com significações amplas, de preferência
adicionados a sentenças ambíguas, tendo como único objetivo abordar o tema sem resolvê-lo.
Como Pilatos, o Legislativo brasileiro lava as mãos e transfere o entendimento à sociedade e,
nos conflitos, ao Judiciário, insinua Jobim.
É o caso das garagens em edifícios. A Lei 4.591 de 16 de dezembro de 1964, passa pelo tema
“garagens” de modo superficial. Diz a alínea “p” do art. 32 (alínea acrescida a este artigo pelo Lei
4.864 de 29/11/1965), que deve o incorporador apresentar, quando do ato de registro de
incorporação no Cartório de Registro de Imóveis, o documento assim descrito:
“p) declaração acompanhada de plantas elucidativas sobre
o número de veículos que a garagem comporta e os locais
destinados à guarda dos mesmos.”
Não repetiu aqui o legislador a clareza expressa na alínea “d” do mesmo artigo, quando exige a
apresentação dos projetos de construção devidamente aprovados pelas autoridades competentes.
A exigência de declaração e de plantas lucidativas, embora sugira um compromisso
público do incorporador, ignora o procedimento normal de aprovação de projetos no qual ao
município é destinada a responsabilidade de normalizar, analisar e exigir condições mínimas
da área projetada para determinado fim.
A Lei 4.864 ainda exime o oficial de registro de imóveis – como não poderia deixar de ser – de
responder pela exatidão da declaração em pauta, desde que esta seja assinada pelo profissional
responsável pela obra. No caso da responsabilidade profissional, entende-se que
seja a responsabilidade relativa ao projeto arquitetônico, que deverá considerar todos os
elementos construtivos ao definir as vagas de estacionamento, para seu perfeito funcionamento.
Estas questões tratadas sem objetividade em seu entendimento técnico-legal teriam uma clara
conceituação se o “órgão competente”, no caso das garagens o município, fosse chamado ao
processo com a simples menção de plantas aprovadas e não meramente “elucidativas”.
É necessário, neste caso, que o município informe em seus alvarás de aprovação de projeto e
construção (para Incorporações Imobiliárias) e alvarás de habite-se (para Instituições de
condomínio) o número de unidades autônomas aprovadas, o número de vagas de garagens e sua
natureza, e as áreas de uso em comum, além das informações quantitativas de áreas. Isto faz parte
do compromisso de ordenação urbana destinada por lei aos municípios, mas nem sempre tratado
com a responsabilidade exigida.
O que temos como regra é a emissão de alvarás com informações sumárias, declarando áreas
totais construídas ou a construir. Esta deficiência é reconhecida na própria lei, quando sugere a
apresentação de declarações complementares com o objetivo de definir aquilo que deveria ter sua
caracterização nos documentos oficiais.
A situação dos oficiais de registros de imóveis, por outro lado, é extremamente incômoda, no
caso de registro de incorporação ou de instituição e especificação de condomínio. Num primeiro
momento, ao analisar a documentação que lhe é apresentada pode, por irregularidade formal de
validade ou ilegalidade na documentação, solicitar por escrito que os problemas encontrados
sejam corrigidos e resolvidos pelo interessado. Muitas vezes desamparado e não atendido em
suas exigências, não resta ao oficial senão suscitar dúvida e, mesmo não sendo parte
interessada, assumir informalmente a única função em todo o processo a ninguém destinada:
de ordenador de procedimentos que juntam elementos legais, técnicos e normativos para a
perfeita caracterização do registro.
Diante da importância que assume a garagem na vida condominial, não se pode mais aceitar estas
omissões de responsabilidades.
Direito a estacionamento, vagas de garagem, box de garagem, estacionamento descoberto, guarda
de veículos, garagem coletiva, vaga de garagem vinculada… Denominações que dão origem às
mais diversas dúvidas e interpretações doutrinárias. Na prática, são tantos os “nomes”
para um mesmo elemento objeto de direito que terminam ocorrendo os fatos tão bem analisados
por J. Nascimento Franco:
Aproveitando-se de todas essas brechas, os
incorporadores menos escrupulosos lançam mão dos
mais diversificados artifícios para vender vagas
imaginárias, porque existentes apenas nos croquis e
memoriais descritivos, mas que ninguém consegue
materializar no solo, quando a construção termina e o edifício
é entregue aos condôminos.
(IN Problemas do direito
imobiliário. Revista IRIB 3/35)
Cabe-nos analisar, então, a título de contribuição para um melhor entendimento do assunto, os
diversos aspectos da definição de “garagem” com uma visão prática. Neste sentido, o Setor de
Habitação da Caixa Econômica Federal muito tem contribuído para uma normalização informal de
procedimentos registrais. Contudo, a C.E.F. acaba intervindo num campo cuja atuação não lhe é
cabida. Se há nesta intervenção a melhor das intenções, também deve ser levado em conta
que, por não ter atribuição, a CEF pode exigir sem justificar. E assim estamos diante de um novo
risco, pois se estabelecem procedimentos por costume, cuja origem não é dada por uma
conceituação amplamente discutida, de consenso e formalizada.
A análise que faremos terá como base a investigação das características construtivas das
áreas destinadas ao estacionamento de veículos. Isto, ao nosso ver, é o melhor modo de tratar o assunto.
As vagas descobertas no terreno
Se permitido pela municipalidade, um espaço do terreno pode ser destinado ao estacionamento de
veículos. Demarcadas as vagas ou não, os espaços são objetos de um direito regulável
penas pela Convenção de Condomínio. Estas áreas, por não configurarem áreas construídas,
não podem ser consideradas como unidade autônoma e nem mesmo como assessórios das
unidades autônomas. Caracterizar áreas deste tipo como perfeitamente definidas seria
estabelecer desmembramento irregular do lote, criando o problema adicional de servidão de
passagem para cada vaga.
Tecnicamente, em relação à discriminação em quadros de áreas construídas, objeto da Lei
4.591/64, art. 32, alínea “e” (normalizados pela NBR 12.721), este tipo de vaga não pode ser
lançado no cômputo de áreas construídas. Para fins de avaliação de construção poderá ser
lançado apenas como item de custo na planilha III (em atendimento à alínea “h” da Lei citada),
se apresentar custo específico para sua demarcação e localização.
O estacionamento descoberto, portanto, é um modo precário de guarda de veículos.
Perguntar-se-ia qual o objetivo, então, da inclusão deste tipo em nossa análise.
Simplesmente porque, como diz o texto de J. Nascimento Franco, não são poucos os
incorporadores e proprietários de edifícios que se utilizam deste expediente para simular a
existência de vaga vinculada à unidade autônoma, e muitos são os códigos municipais de obras que
se satisfazem com este tipo de estacionamento de veículos.
As vagas descobertas sobre área construída
Embora não muito comum, pode existir estacionamento sobre área construída do edifício.
Se computada como área construída, incluída na área total do edifício, este tipo de vaga tem o
esmo tratamento das vagas cobertas a seguir analisadas.
As vagas cobertas
Vagas cobertas, por configurarem áreas construídas, permitem uma melhor caracterização.
Podem ser tratadas como área de uso em comum, área vinculada à unidade autônoma – como
assessório desta – e, finalmente, como unidade autônoma propriamente dita.
A garagem com vagas indefinidas caracterizadas como de uso em comum propõe problemas iguais
ou maiores aos causados pelas existências de vagas descobertas. Incluída, a garagem, nas
artes de uso em comum, o direito de uso só pode ser tratado na Convenção de Condomínio além, é
claro, de causar dúvidas sobre a divisão e direito de uso. Uma questão comum proposta é: quem
tem maior fração ideal tem direito a maior do número de vagas?
Com certeza, embora presente em muitos registros de incorporação e instituição de
condomínio, esta é uma forma de desvencilhar-se do problema na fase de construção ou na de
venda das unidades e transferi-lo para o funcionamento do condomínio.
Em relação às planilhas-modelo da NBR 12.271, se assim considerada, a área destinada à
garagem será parte do valor da área real lançada na coluna 15 do quadro I, englobada no somatório
de todas as áreas de uso em comum.
No caso de vagas definidas, duas formas se apresentam. A primeira delas diz respeito às
áreas consideradas como assessório da unidade autônoma. Neste caso, área de estacionamento e
área de circulação e acesso vinculam-se à área privativa da unidade autônoma. Constará, assim,
numa mesma matrícula o principal – o apartamento, a sala comercial, a loja, etc.- e o
assessório construído e designado como vaga identificada no local. Para sua perfeita
identificação, é preciso ainda que conste descrição de sua localização no edifício,
pavimento e confrontações com outras áreas e vagas. É interessante destacar que há
referências, em muitos estudos sobre este tema, que consideram possível a indefinição destas
reas mesmo quando vinculadas à unidade autônoma. Não é isto senão um modo de
estender as possibilidades de confusão.
A área considerada como assessório aparecerá na planilha II, na coluna 28, nos quadros-modelos da
NBR 12.271, vinculada à unidade autônoma descriminada na coluna 19 e cujo valor
representará a área demarcada para estacionamento somada às suas parcelas
relativas à circulação e acesso.
A segunda forma de classificação das vagas cobertas definidas é aquela onde são tratadas
como unidades autônomas, com fração ideal de terreno própria, sendo objeto de matrícula
específica no Cartório de Registro de Imóveis. Sem dúvida é o modo mais claro e objetivo.
Sendo matrícula própria, a vaga terá todas as características de um bem imóvel único (princípio
da unitariedade – cada imóvel uma matrícula), perfeitamente individualizado.
Se classificada como unidade autônoma, terá sua área privativa (área destinada ao estacionamento
do veículo) definida na coluna 28; a área de uso em comum (preferencialmente tomada a partir da
divisão de áreas de circulação entre as vagas e acessos) será discriminada na coluna 28; e a área
real total, na coluna 37, tudo isto nos quadros-modelo II da NBR 12.271.
Cabe aqui destacar que as informações sobre a localização das áreas reais finais em planilhas
detalhadas acima são frutos de minha experiência profissional. Como a NBR 12.721 também não se
atém a estes conceitos específicos, não há uma uniformidade proposta e verificada na
apresentação das áreas de garagem em suas diversas formas. Contudo, por ter origem na
experiência profissional tem-se mostrado como uma boa opção na forma de leitura, considerando
a interface de conceitos técnicos e legais, e diante da necessidade de clara identificação do
modo adotado para classificação das áreas destinadas ao estacionamento de veículos.
Das formas possíveis e analisadas, é quase consenso em estudos doutrinários de que só
merecem tratamento formal e normativo as vagas tratadas como assessórios (determinadas) e as
tomadas como unidade autônoma.
Em conclusão, lembramos que os problemas relativos a garagens seriam reduzidos (e muito)
se todas estas questões fossem abordadas pelos códigos municipais de obras reforçados por dados
da obra perfeitamente discriminados em alvarás, sejam estes de construção ou de habite-se.
Se a questão é quase insolúvel diante da diversidade das legislações municipais, cabe à
ABNT estabelecer norma ou complementação de norma existente que padronize os procedimentos
já enunciados em Lei. Caso contrário, de acordo com a tese do ministro Jobim, a Lei continuará
sendo apenas um sumário de capítulos escritos a cada contenda.
*O Eng. Paulo Andres Costa (andress@desbrava.com.br –
IN-ICQ: 54900809) é engenheiro civil formado pela
Universidade Federal de Santa Maria, em 08/08/1988.
Consultor do SINDUSCON-OESTE de Santa Catarina (Economia
e Estatística). Membro da Comissão de Estudos de Custo
Unitário e Orçamento de Construção Civil -NBR 12.721/1999 –
COBRACON – ABNT. Árbitro Permanente da Câmara de
Mediação e Arbitragem (Incorporações Imobiliárias) de
Chapecó – SC.