Garantismo, ainda que muito, é sempre pouco

Autor: Leonardo Isaac Yarochewsky (*)

 

Segundo matéria publicada na Revista Eletrônica Consultor Jurídico (leia aqui), o procurador da República José Robalinho Cavalcanti, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), entidade de classe do Ministério Público Federal, afirmou que: “graças a uma interpretação equivocada do artigo 5º da Constituição pelo Supremo Tribunal Federal, o Brasil é um dos países mais garantistas do mundo”. Ao que tudo indica, o procurador Robalinho ignora o que vem a ser garantismo e os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

O jurista italiano Luigi Ferrajoli [1] apresenta três significados de garantismo: um primeiro significado designa um modelo normativo de direito, principalmente, no que se refere ao direito penal, modelo de estrita legalidade, próprio do Estado de Direito, que sob o plano político se caracteriza como “uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos”; em um segundo significado, designa “uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela existência ou vigor das normas.” Mais adiante, Ferrajoli afirma que “o garantismo opera como doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda da legitimação interna do direito penal, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão crítica sobre as leis vigentes”; em um terceiro significado, garantismo, para o jurista italiano, “designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade”.

Decorre do modelo penal garantista a função de delimitar o poder punitivo do Estado mediante a exclusão das punições extra ou ultra legem. O referido modelo tem como pilar o princípio da legalidade estrita, proposto como “uma técnica legislativa específica dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter constitutivo e não regulamentar daquilo que é punível”. O princípio da legalidade estrita, diferente do “princípio da mera legalidade” — dirigido aos juízes —, dirige-se ao legislador, a quem prescreve a taxatividade, não se admitindo “normas constitutivas”, mas, tão somente “normas regulamentares” do desvio punível.

Ferrajoli propõe dez axiomas de garantias penais e processuais penais para o sistema garantista (SG), expressado como máximas latinas: A1 Nulla poena sine crimine; A2 Nullum crimen sine lege; A3 Nulla Lex (poenalis) sine necessitate; A4 Nulla necessitas sine imjuria; A5 Nulla injuria sine actione; A6Nulla actio sine culpa; A7 Nulla culpa sine judicio; A8 Nullum judicium sine accusation; A9 Nulla accustio sine probatione; A10 Nulla probatio sine defensione.

Salo de Carvalho [2], com toda sua competência, sintetiza os axiomas elaborados por Ferrajoli afirmando que o modelo teórico minimalista caracteriza-se por dez condições restritivas do arbítrio legislativo ou do erro judicial. Segundo este modelo, esclarece o autor, “não é legitima qualquer irrogação de pena sem que ocorra um fato exterior, danoso para terceiro, produzido por sujeito imputável, previsto anteriormente pela lei como delito, sendo necessária sua proibição e punição”. Além dos requisitos processuais, “a necessidade de que sejam produzidas provas por uma acusação pública, em processo contraditório e regular, julgado por um juiz imparcial”.

Em relação aos fins da pena (intervenção penal) Ferrajoli sustenta a abolição gradativa da mesma, para ele a pena máxima não deveria superar dez anos de prisão. Justifica-se a intervenção penal (mínima) com o fim de se evitar penas arbitrárias ou a vingança privada.

No que diz respeito ao princípio da presunção de inocência, hodiernamente atacado por aqueles que têm uma visão míope, fascista e autoritária do processo penal, de acordo com Ferrajoli, é correlato do princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária). Para Ferrajoli, “se é atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena”. Mais adiante, o respeitável jurista italiano assevera que o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade, “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”.

Na Itália, informa ainda Ferrajoli, com o advento do fascismo, a presunção de inocência entrou em profunda crise. Os freios contra os abusos da prisão preventiva deixaram de existir em nome da “segurança processual” e da “defesa social”, sendo considerada a mesma indispensável sempre que o crime tenha suscitado “clamor público”.

Segundo Rubens Casara e Antônio Melchior, a concretização do princípio da presunção de inocência se dá em três dimensões diversas: a) a dimensão do tratamento ao indiciado ou réu (regra de tratamento), segundo a qual todos os acusados devem ser tratados como inocentes até que advenha uma condenação resultante de uma sentença penal irrecorrível; b) a dimensão probatória (regra de juízo). Enuncia uma regra probatória que se exprime através da máxima do in dubio pro reo. Cabendo “o ônus de provar o fato delituoso (típico, ilícito e culpável) é uma consequência natural do dever legal de propor a ação penal”; c) a dimensão de garantia (regra de Estado) — esta regra impõe ao Estado que todo investigado ou réu seja tratado dignamente, compatível com seu estado de inocente.

Contudo, e apesar de todo “garantismo”, o Brasil conta atualmente com cerca de 700 mil presos (proporção de cerca de 350 pessoas presas para cada 100 mil habitantes) — terceira ou quarta maior população carcerária do planeta — sendo que deste total, mais de 200 mil são de presos provisórios (que ainda não foram condenados definitivamente). Não sendo demais lembrar, como já foi dito alhures, que a população carcerária na sua esmagadora maioria é composta pelos mais vulneráveis e pelos excluídos da sociedade de consumo e capitalista. Uma população compostas por jovens, negros, pobres, sem qualquer formação e de baixa escolaridade.

Em pesquisa realizada no ano de 2011 a Anistia Internacional constatou que nos vinte países que ainda mantêm a pena de morte, em todo o mundo, foram executados 676 pessoas, sem contar as execuções ocorridas na China, que não fornece dados. No mesmo período, informa Orlando Zaccone [3], somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a partir de ações policiais, totalizando um número 42,16% maior do que de vítimas da pena de morte em todos os países pesquisados. Em 2014, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 3.022 casos, média de um homicídio a cada três horas. Número de vítimas que supera dos atentados de 11 de setembro nos EUA, em que 2.977 pessoas morreram. O número de mortes provocadas pela polícia em 2014 é 37,2% maior que o registrado em 2013. O estado de São Paulo apresentou a maior letalidade em 2014, foram 965 pessoas mortas pela polícia, 351 a mais do que 2013. No Rio de Janeiro, as policias mataram 584 pessoas em 2014, 168 a mais que em 2013.

Ao contrário de muitos países em que a identidade do acusado é preservada, não havendo revelação do seu nome e exibição do seu rosto, no Brasil a vida privada do acusado, repita-se acusado, sofre uma verdadeira devassa. O acusado, dependendo da manipulação da mídia, torna-se uma celebridade às avessas. A partir do momento em que é decretada a prisão do acusado, às vezes antes, sua vida, como numa espécie de Big Brother jurídico, deixa de lhe pertencer. Até seus familiares são expostos e execrados publicamente.

Ainda bem que “o Brasil é um dos países mais garantistas do mundo”, se assim não fosse, estaríamos todos presos ou mortos, posto que garantismo, ainda que muito, é sempre pouco.

 

 

Autor: Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e professor de Direito Penal da PUCMinas

 


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