Roberto desejava fervorosamente ir à praia. Era num domingo caloroso, típico de uma prazerosa tarde de verão. Num átimo, telefonou para alguns de seus amigos mais chegados. Desejava convidá-los a acompanhá-lo a um divertido passeio pela Praia do Coco. Papear, tomar umas, azarar as gatas: certas atividades simbólicas de uma juventude contemporânea.
Três daqueles companheiros decidiram ir junto com Roberto à praia. Afinal, amigos também são pra essas coisas…Escolheram uma barraquinha, propiciadora de uma bela sombra e de um admirável panorama. Acomodaram-se. Rapidamente, Roberto, avistando um garçom, exclamou:
− Traz uma, cara, bem geladinha!
Papo vai, papo vem e, assim, sucessivas idas e vindas do garçom foram caracterizando um conseqüente empilhamento de garrafas e de petiscos consumidos. Entre soluços, sorrisos e gaiatices, Roberto, meio que em um sinal de protesto, bradou, volvendo-se ao atendente:
− A conta!!!
Finalmente. O garçom, exausto após um longo dia de trabalho, rapidamente somou os valores com sua singela maquininha.
Ansioso, Roberto arrancou das mãos do garçom o pedaço de papel, onde estava o somatório. Seus olhos terrificaram-se − Tudo isso!! − assustou-se o jovem com a cifra. Seus amigos, que estavam mais pra lá do que pra cá, decidiram que … nada decidiram. Haviam esquecido suas respectivas carteiras em suas respectivas casas. Azar de Roberto. Teria que pagar a “fortuna” solitariamente.
Antes de pagar, Roberto, um pouco ébrio porém apreensivo, examinou a discriminação das contas feitas pelo garçom. Lá constava: 10% – gorjeta – garçom.
A verve da indignação externou-se. O rapaz foi pego de surpresa, pois em local algum da barraquinha havia avisos sobre tal cobrança. Roberto não aceitava debitar os 10% do garçom como se fossem uma obrigação a ele impostos. Seria, realmente, Roberto compelido a pagar ao estabelecimento percentagem a favor de seus funcionários? Gorjeta não seria uma espécie de liberalidade? E liberalidades são imposições? E se são, desde quando?
Tentaremos responder a essas indagações alusivas ao cenário por nós fantasiado como suporte a alguns comentários acerca da gorjeta como elemento integrante que é da remuneração.
A literatura trabalhista faz constantes menções da gorjeta ora como forma de remuneração, ora como elemento integrante da remuneração, ora como tipo especial de remuneração.
Quanto à definição de remuneração, uníssonas não são as opiniões doutrinárias, não sendo pertinente, neste meteórico espaço de considerações, o detalhamento de cada um desses juízos. Porém, primeiramente, convém definirmos, acompanhando a doutrina majoritária, o que vem a ser esse instituto, para, a posteriori, discorrermos sobre a gorjeta, foco de nosso relato, já que esta sem aquele é despida de efeitos no ordenamento jurídico. Para Mauricio Godinho, a vertente interpretativa do modelo criado pelos arts. 76 e 457, caput, da CLT é “a que melhor atinge aos objetivos e à própria função do Direito do Trabalho”. Essa linha de interpretação, trazendo à colação as palavras do excelso trabalhista, “preserva a regra geral de que somente terá natureza salarial/remuneratória, no Direito Brasileiro, parcelas retributivas habituais devidas e pagas diretamente pelo empregador ao empregado; admite, contudo, por exceção que a média das gorjetas habitualmente recebidas integre-se ao salário contratual obreiro para todos os fins (exceto salário mínimo)”. [1]
Amauri Mascaro Nascimento, à luz do art. 457 da CLT, afirmava que “o legislador quis que as gorjetas compusessem o âmbito salarial. Como as gorjetas não são pagamento direto efetuado pelo empregador ao empregado, a solução encontrada foi introduzir na lei a palavra remuneração”. [2]
Assim, essa vertente sustenta que as gorjetas habitualmente recebidas pelo obreiro integram efetivamente a remuneração, passando a compor seu salário contratual, repercutindo nas demais parcelas pertinentes à relação de emprego, como efeito-cascata (décimo terceiro salário, férias com um terço, horas extras etc).
Logo, a remuneração é o conjunto contraprestativo pago pelo empregador ao empregado pela prática de seu serviço ou pelos momentos de disponibilidade concedidos em prol do tomador, devendo contribuições de terceiros (gorjetas), caso haja, integrar esse valor remuneratório. A relação entre remuneração e gorjeta é de continente-conteúdo. A segunda integra a primeira, pertencendo-lhe por injunção legal.
Semanticamente, gorjeta corresponde a uma “pequena quantia, além da devida, que se dá como gratificação; propina, espórtula”. [3] Juridicamente, à baila do direito trabalhista, como vimos, é uma “gratificação recebida de terceiros pelos empregados por ocasião dos serviços prestados na própria organização do empregador”. [4] Em um e outro caso, gorjeta é sinônimo de gratificação, complacência , benfeitoria pecuniária concedida por uma pessoa a outra como forma de retribuição por um serviço não exigível prestado; é o famoso agrado. Neste tônus, retornando à Praia do Coco, será Roberto obrigado a desembolsar os 10% do garçom alocados em sua dívida? Acreditamos, humildemente, que não. Vejamos o porquê.
Se gorjeta está correlacionada à idéia de liberalidade e sabendo-se que liberalidades são irreclamáveis, tendo-se em vista seu manto de obrigação natural, logo, à primeira vista, Roberto não está jungido à injunção empregada pelo estabelecimento de conceder a gorjeta aderida à sua dívida. Além disso, liberalidades são sempre interpretadas restritivamente. Quem tem, a priori, obrigação de retribuir seus empregados pelos seus serviços efetivamente prestados ou pela sua mera disposição ao alvedrio patronal é o empregador, não o consumidor. Este, como o próprio nome induz, consume e, obviamente, deverá pagar o que conscientemente consumir. O quadro de deveres está assaz transparecido, levando-se em consideração os papéis de cada personagem em cena.
Quando a CLT aduz, em seu art. 457, que “compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber”, ela considera que essas parcelas eventualmente pagas por terceiros constarão no montante remuneratório a favor do empregado. De fato, o empregador coopta-se dessa relação amistosa. Essas gorjetas, caso o obreiro as receber, necessariamente se associarão à remuneração do empregado. Trata-se de inflição da legislação trabalhista em respeito aos princípios da imperatividade das normas trabalhistas e da indisponibilidade dos direitos trabalhistas.
Ademais, é inegável a natureza costumeira da atitude de dar gorjetas seja a garçons, seja a manobristas ou frentistas, mas, por se tratar de obrigação natural, ou seja, de não haver tipificações em lei que force alguém a prestá-la, o cliente não pode ver o pagamento dessa liberalidade condicionada à sua dívida, esta sim passível de sofrer efeitos de uma possível insolvência. Está incorporada ao rol das liberdades públicas a garantia de ninguém ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5º). Ora, usos não são lei; no máximo são fonte de direito em algumas circunstâncias.
Portanto, as gorjetas são liberalidades, não podendo ser o cliente compelido a efetuá-las, mas, uma vez pagas, serão elas computadas na remuneração do obreiro se feitas habitualmente, sendo defeso, assim, a repetição dessas parcelas.
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[1] DELGADO, Mauricio Godinho. “Curso de Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr, 2006, p.693.
[2] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. “Iniciação ao Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr, 1994, p.295.
[3] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. “Mini Aurélio Século XXI”. Rio de janeiro: Ed. Nova Fronteira. 2000, p. 350.
[4] LIMA, Francisco Meton Marques de. “Elementos de Direito do Trabalho e Processo Trabalhista”. São Paulo: LTr. 2000, p.97.
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Camila Maués dos Santos
Estudante do 7o. semestre de Direito da Universidade Estadual do Piauí-UESPI. Estagiária da Defensoria Pública do Estado do Piauí.