Governos não têm mais poder absoluto sobre mercados de trabalho

Maria Cristina Mattioli*

A frase “vivemos numa economia global” já se tornou um jargão popular. Sempre houve comércio internacional na história da civilização e até mesmo a internacionalização financeira remonta há alguns séculos. Todavia, é bem verdade que o grau de interconexão entre países e continentes varia com o tempo. Durante o período compreendido entre as duas guerras mundiais, por exemplo, significativos limites no comércio e investimento internacionais surgiram. Estas barreiras foram, gradualmente, relaxadas após a Segunda Guerra.

Durante os anos 80 e 90, graças às sucessivas negociações comerciais, o isolamento entre-guerras foi revertido. Estratégia de crescimento, baseada na exportação-orientada nos paises asiáticos e latino-americanos, o colapso do comunismo no leste europeu e também o movimento em direção ao mercado chinês, trouxeram milhões de novos trabalhadores para a concorrência mundial do mercado.

No âmbito dos mercados nacionais, muitos países implementaram – pelo menos teoricamente – padrões uniformes de trabalho. E a idéia de que poderia haver uma extensão destes padrões, em base mundial, volta à data de criação da Organização Internacional do Trabalho, depois da Primeira Guerra. A questão, contudo, se tornou mais intensa à proporção que o mercado cruzou fronteiras. No final do Século XX, o tema dos padrões de trabalho no comércio internacional, tornou-se uma imensa área de controvérsia. Não só diante do argumento protecionista levantado pelos países menos desenvolvidos, mas também diante da dúvida acerca da instituição legitimada para abrigar esta discussão.

Esta constatação, independentemente do seu contexto ideológico, merece que alguns aspectos sejam salientados. Primeiro, estabelecer um vínculo entre trabalho e comércio pode gerar várias conseqüências: o estabelecimento de uma cláusula social nos acordos de comércio internacional, seja de forma bilateral (como recentemente ocorreu com os Estados Unidos e a Jordânia e através dos GSP – Generalized System of Preferences – existentes nos Estados Unidos e na União Européia) ou multilateral (como a tentativa de inclusão da cláusula no MAI – Multilateral Agreement on Investment, ainda negociado no âmbito da OCDE) ou unilateral (na forma da Lei de Burma, quando em 1996 o Estado de Massachussets proibiu o Poder Público de contratar empresas particulares que tinham relações de comércio com Burma – Myanmar – em razão da prática, por este país, da utilização de trabalho forçado, lei que foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte, diante de lei federal que dispunha em sentido semelhante); a elaboração de diretrizes e guias para empresas multinacionais buscando a institucionalização de responsabilidades sociais corporativas (como o Guideline da OCDE e o Guideline do Global Compact das Nações Unidas); a elaboração de códigos de conduta voluntariamente preparados pelas multinacionais (Nike, Levi-Strauss, Reebok); e, até mesmo, a necessidade de reforma de legislação trabalhista para atender às necessidades do mercado. Segundo, a eliminação de fronteiras para o comércio e mobilidade do capital, implica, também, a mobilidade de trabalhadores, trazendo, por corolário, a necessidade de regulamentação que escapa aos confins da legislação nacional.

Tais aspectos e conseqüências, necessariamente vão influir na redefinição de um novo modelo de relações de trabalho que, atenda às necessidades de um modelo econômica, prévia e politicamente engendrado.

O Brasil, neste exato momento, enfrenta tais questões, tendo que endereçar a necessidade de discussão preemente acerca de um modelo de relações de trabalho que, antes de atender à necessidade do seu trabalhador, atenda às leis do mercado e da nova ordem global. E estas, como se sabe, são voltadas ao custo e benefício das instituições, sejam elas políticas ou legais. Afinal, o pós-neoliberalismo, crítico movimento que ganha corpo nos Estados Unidos, apregoa valores do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, ensina que a regulamentação do mercado – e este inclui as relações de trabalho – é essencial, porém, de uma forma diferente do que até então se vinha adotando.

Neste sentido, regulamentar relações não significa, sob o ponto-de-vista jurídico-econômico, criar ou manter códigos ou estatutos. Aliás, esta forma de legislar, vindo de cima para baixo – do Estado para o cidadão – tem sido considerada tradicional ou uma forma de hard law, ao passo que o mercado e as novas exigências globais estão mais afinadas com uma forma mais flexível e mais moderna de regulamentação, que é chamada soft law, hoje presente na União Européia, quando se examina, por exemplo, o sistema criado para discutir políticas de emprego e proteção social, o OMC – Open Method of Coordination.

Considerando-se esta mudança de paradigma no pensamento econômico e também na forma de regulamentação, bem como a necessidade do Brasil atender a comportamento que viabilize, cada vez mais, sua inserção no cenário econômico internacional, qualquer reforma que se pretenda fazer, nas suas relações de trabalho, deve atender à vinculação comércio e trabalho e à uma regulamentação menos tradicional que a lei estatal.

Neste sentido, é evidente que a CLT, este livro grosso, precisa de modificação a tal ponto que facilite um método de regulamentação mais flexível, como é o da negociação coletiva e que, por outro lado, permita a participação de outros atores sociais, que não simplesmente governo, sindicatos e empresariado. A sustentação tripartite do diálogo social repousa na tradição, experimentada, atualmente, no neo-corporativismo, como sustenta David Trubek, da Universidade de Wisconsin, havendo necessidade da presença, neste diálogo, da sociedade civil (2).

Cada vez mais os direitos trabalhistas estão sendo enfocados sob uma perspectiva transnacional, como se dá na União Européia através do Capítulo Social de seu Tratado ou através do NAALC – North American Agreement on Labor Cooperation, como parte do NAFTA – North American Free Trade Area. Neste sentido, os sindicatos já começaram a organizar e coordenar campanhas além das fronteiras; agências governamentais, de diferentes países, fazem consulta recíproca quando da administração e aplicação de leis trabalhistas; organizações não-governamentais e outras frentes de defesa de direitos trabalhistas já se engajaram na advocacia transnacional, quase sempre envolvendo o uso de vários sistemas legais, simultaneamente.

Ora, a combinação de todos estes elementos demonstra que, uma visão transnacional da regulamentação das relações de trabalho, está emergindo. Esta nova visão rejeita a idéia de que as possibilidades de regulamentação sejam, exclusivamente, binárias, isto é, no nível de governo nacional ou no nível global. Esta visão parte do pressuposto de que há múltiplos elementos na regulamentação e assevera que um regime complexo pode ser construído, coordenando regras nacionais, públicas, privadas, negociadas e até internacionais.

Embora esta visão transnacional decorra do mundo prático, ela pode ser redefinida e redesenvolvida através da recombinação de várias tradições intelectuais. Assim, uma versão mais robusta utiliza técnicas das relações industriais, que ressalta a interação entre trabalho, empresariado e Estado na formação de normas trabalhistas (Dunlop); pluralismo legal, que salienta a necessidade de entender-se como múltiplos e diferentes ordenamentos jurídicos se entrelaçam e podem afetar várias outras áreas sociais autônomas (Arthurs); e regime internacional e teoria da advocacia internacional (Krasner, Keck e Sikkink).

Dentro deste contexto, as normas coletivas são mais flexíveis e melhor atendem a esta visão transnacional científica, cujas experiências o mundo, concretamente, está demonstrando que existem, seja através dos acordos coletivos internacionais, das diretrizes para empresas multinacionais ou dos códigos de conduta internacionais. E a norma coletiva gerada no Direito Brasileiro tem a característica da obrigatoriedade no seu cumprimento, sob pena de execução, ao contrário destes últimos exemplos que, praticamente, até o momento, estão fundamentados em sistemas de participação voluntária.

Por derradeiro, neste mundo globalizado, no qual as nações permanecem como local central de autoridade em questões relativas ao trabalho, governos nacionais não mais possuem poder absoluto sobre seus mercados de trabalho e instituições regionais e globais têm poderes limitados, soluções transnacionais são essenciais para a efetiva proteção dos direitos trabalhistas e melhoria das condições de trabalho e isto exige uma forma menos rígida e tradicional de modelo de relações do trabalho. Logo, continuar brigando pela manutenção de um sistema antigo e corporativista é, no mínimo, brigar por uma causa perdida. A direção é outra.

Nota de rodapé:

1 – O Professor Trubek bem explicou, no 93º Encontro Anual da Sociedade Americana de Direito Internacional, como a combinação de mudanças na organização industrial e na geografia da produção e a liberalização do mercado financeiro, comumente descrita como globalização, têm diminuído o interesse do Estado em avançar na fixação de padrões de trabalho, bem como enfraquecido sua capacidade. Como resultado, proponentes de rígidos padrões tiveram que procurar alternativas para a regulamentação do trabalho em nível nacional, numa economia globalizada. 93 Am. Soc’u Int’l L. Proc. 380.

Maria Cristina Mattioli é juíza, mestre em Direito pela Universidade de Harvard e pós-doutoranda em Direito na Universidade de Harvard e no Centro de Estudos Internacionais da London School of Economics and Political Sciences.

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