Grande desafio da democracia no Brasil é vencer desigualdades

por Gilmar Mendes

“A liberdade de dissentir necessita de uma sociedade pluralista, uma sociedade pluralista permite uma maior distribuição do poder, uma maior distribuição do poder abre as portas para a democratização da sociedade civil e finalmente a democratização da sociedade civil alarga e integra a democracia política”.

Norberto Bobbio

I — Introdução: Panorama Histórico da Desigualdade no Brasil

Um dos grandes desafios da democracia no Brasil — e a enunciação desta idéia é quase a enunciação de um truísmo — é o da superação das desigualdades, que marcam de forma indelével a nossa história.

O regime de capitanias hereditárias, utilizado por Portugal para estabelecer o controle do território brasileiro ensejou uma brutal concentração de propriedade da terra, que seria a base da hierarquia social consolidada nos últimos quatro séculos. Dos 350 milhões de hectares de terras agricultáveis, metade é detida por 2% dos proprietários rurais.

O Brasil foi também o último país do mundo a libertar os escravos, em 1888. Libertos, os escravos formaram o grande grupo de brasileiros excluídos. Se, na condição de escravos, detinham uma péssima posição na escala social, libertos, passaram a não ter qualquer espaço. Até 1940 esse grande contingente não era percebido pela sociedade. A Constituição não os contemplava e não se cogitava de qualquer política pública especial para esse segmento. A primeira Lei que trata do tema da discriminação racial no Brasil é a Lei Afonso Arinos, de 1951(1).

Daí ter-se um quadro de grave distorção: embora a metade da população brasileira seja branca, 69% dos pobres ou miseráveis são negros ou mestiços. Mais grave do que a própria situação criada parece ser o estado de indiferença da própria sociedade em relação ao tema.

É interessante notar que todo esse atraso nas relações sociais nada tem a ver com a ausência de crescimento econômico. Depois do Japão, o Brasil foi o País que mais cresceu entre 1880 e 1980. É inequívoco também o processo de urbanização. Em 1950, a zona rural abrigava 70% da população do país. Hoje, dos 165 milhões de brasileiros, cerca e 80% vivem nas cidades.

O “milagre econômico” da década de 1970 não foi capaz de eliminar a pobreza e a miséria. Também não houve redução da desigualdade na distribuição da renda e da riqueza. E não foram poucos os grupos sociais que permaneceram à margem de qualquer benefício. A chamada “década perdida” de 1980 contribuiu certamente para agravar os problemas sociais, com o aumento do contingente de pobres e miseráveis e da própria desigualdade.

O quadro atual continua preocupante. Hoje, metade de toda a riqueza do país está nas mãos de apenas 10% da população. A renda média dos 10% mais ricos representa 30 vezes a renda média dos 40% mais pobres — seguramente, uma das mais altas concentrações de renda do mundo. Cerca de 21 milhões de brasileiros — quase 14% da população total — vivem em condições de miserabilidade, sem renda suficiente para comprar uma cesta básica de alimentos. As áreas rurais são as mais pobres. Embora abriguem apenas 20% dos brasileiros, nela residem 42% dos indigentes.

Daí a preocupação manifestada por José Murilo de Carvalho com a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redução da desigualdade(2).

A questão da integração social está também em estreita conexão com os desequilíbrios regionais, que são flagrantes. O Nordeste é a mais pobre das cinco regiões: com cerca de 30% da população, concentra 58% dos indigentes. Essa distorção é agravada pelo fato de a metade do território estar em áreas de clima semi-árido.

Sabe-se também que o desenvolvimento institucional tem sido turbulento. A prática democrática muitas vezes foi interrompida por sucessivos tumultos ou golpes.

No período republicano, iniciado em 1889, a experiência democrática brasileira sofreu sucessivas interrupções. O período da primeira república foi marcado por significativos fatores de desestabilização. Inúmeras intervenções federais foram decretadas nessa fase inicial da vida republicana. Também a correção do processo eleitoral nesse período sofreu inúmeras contestações. A Constituição de 1891 teve sua vigência cessada com a chamada Revolução de 1930. Esse movimento foi institucionalizado com a Constituição de 1934, que restabeleceu os parâmetros democráticos, ao introduzir profundas e significativas alterações no nosso sistema de controle de constitucionalidade. A Carta Magna de 1934 trouxe inovações como o voto da mulher e a criação da justiça eleitoral.

Essa Constituição foi superada já em 1937, pela Carta outorgada pelo Presidente da República, inspirada na Constituição polonesa do General Pilsudski. O governo ditatorial duraria até 1945. É verdade que o Governo Vargas priorizaria conquistas sociais, com a criação do salário-mínimo, a organização sindical, a criação da Consolidação das Leis do Trabalho, e inúmeras outras iniciativas que, em suma, foram reflexo da intensificação do processo de industrialização no Brasil. O restabelecimento da normalidade institucional com a Constituição de 1946 sofreria significativas alterações já no início dos anos 60, com a adoção improvisada do Parlamentarismo no País. Com os tumultos institucionais que antecederam a posse de Juscelino na Presidência (1955), a ordem constitucional de 1946 conseguiu regular a nossa vida institucional até 1961, quando adveio a renúncia do Presidente Jânio Quadros. A posse do Vice-Presidente foi antecedida da mudança da forma de Governo (de presidencialismo para parlamentarismo).

Em seguida, nova mudança, decorrente de um plebiscito: do parlamentarismo ao presidencialismo, em 1963, com aprovação de 82,25% da população. Com todas as distorções, essa ordem teve a sua vigência cessada em 1964, com o advento do Governo Militar. O regime autoritário chegou até 1985. Foram, portanto, mais de vinte anos de regime autoritário, com fases de maior ou menor abertura.

A luta pela redemocratização não se limitou a aspectos de reordenação institucional formal. Mas, ao revés, a idéia de democracia estava indissociavelmente ligada, nos vários movimentos, à reivindicação por justiça social.

Como observa Maria Hermínia Tavares de Almeida, democracia e justiça social foram os grandes lemas do movimento de oposição ao regime militar. Daí o uso, à época, da expressão “resgate da dívida social”, na verdade uma síntese da aspiração de que o processo de retomada da democracia devesse vir acompanhado da redução da pobreza e das desigualdades(3).

Em 1985 foi aprovada Emenda Constitucional (EC 25/ 85), que permitiria a realização da Assembléia Nacional Constituinte. Como resultado desse trabalho, promulgou-se, em 5 de outubro de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”.

É evidente que esse novo modelo constitucional buscava superar, institucionalmente, o modelo de democracia meramente formal a que nós nos acostumamos no passado. Tentava-se, também pela via da constitucionalização de direitos sociais, e da criação de instrumentos de judicialização dessas pretensões de caráter positivo, superar o quadro de imensas desigualdades acumuladas ao longo dos anos.

II – A Redemocratização e a Promessa de Integração Social na Constituição Brasileira de 1988

A Constituição de 1988, aprovada num contexto econômico e social difícil (a inflação acumulada do ano de 1988 foi de 1.037,56%), faz uma clara opção pela democracia e uma sonora declaração em favor da superação das desigualdades sociais e regionais. Do ponto de vista estritamente fiscal, implementa-se um modelo de federalismo fiscal, que permite uma maior desconcentração da receita tributária, com a evidente ampliação do sistema de autonomia tributária e da distribuição da receita para Estados e municípios, mediante repasse pelos Fundos de Participação. No plano eleitoral, além de uma ampla liberdade na criação de partidos, amplia-se o direito ao voto, que passa a ser exercido, facultativamente, pelo analfabeto e pelo jovem maior de 16 e menor de 18 anos.

A ênfase em uma agenda social está estampada logo no início da Carta Constitucional.

No artigo 3º, a Constituição declara que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos. Tem-se uma Carta que, ao lado das disposições tradicionais sobre o modelo democrático, consagra um amplo catálogo garantidor dos direitos individuais, e incorpora um número elevado de direitos sociais. A Constituição consagra, entre direitos de perfil fortemente programático, o direito a um salário mínimo capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador urbano e rural (art. 7º, IV) e à assistência social para todos aqueles que dela necessitarem (art. 203).

Como se vê, a institucionalização da democracia em 1988 veio acompanhada de uma agenda social, que, em muito, transcende os aspectos meramente formais. Opta-se por um modelo constitucional fortemente dirigente, que, de forma extremamente analítica, disciplina uma série de questões da vida nacional. É, indubitavelmente, a mais detalhada Constituição da nossa história constitucional, com 250 artigos na parte permanente e 83 disposições transitórias, que tratava, originariamente, não só de questões relativas ao funcionamento dos órgãos estatais supremos, mas também de matérias ligadas à própria administração da economia (monopólios, empresas da capital nacional, etc.).

A título de curiosidade, vale mencionar anotação crítica do cientista político italiano Giovanni Sartori, a propósito da extensão da Constituição brasileira de 1988:

“O salto ‘quântico’ ocorreu em 1950, com a Constituição da Índia, que tinha 395 artigos, além de alguns anexos detalhados. Mas a Constituição brasileira de 1988 possivelmente bate o recorde: é uma novela do tamanho de um catálogo telefônico, […]. É uma constituição repleta não só de detalhes triviais como de dispositivos quase suicidas e promessas impossíveis de cumprir”(4).

Sobre a Constituição, disse Roberto Campos, antes das reformas:

“Diz-se que o camelo é um cavalo desenhado por economistas. A nova Constituição é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela”(5).

A acidez de Roberto Campos em relação à Constituição dirigia-se especialmente aos dispositivos que permitiam uma forte intervenção estatal no plano econômico, ao afirmar que na era dos mercados globais a Constituição de 1988 teria declarado que o mercado constitui patrimônio nacional.

As razões do modelo analítico são várias.

É muito provável que os longos anos de autoritarismo tenham debilitado a força da lei e criado uma enorme desconfiança em relação ao legislador ordinário. Não se pode esquecer que, naquele momento, o Congresso Nacional acumulava as funções de órgão legislativo ordinário e de Poder Constituinte. Era, porém, muito mais fácil obter uma decisão do Congresso Constituinte do que uma lei ordinária, uma vez que esta estava, muitas vezes, submetida a reservas de iniciativa e ao procedimento de sanção ou veto pelo Presidente da República.

É certo que matérias de perfil tipicamente ordinário acabaram sendo incorporadas ao texto constitucional, o que acarreta uma outra peculiaridade no sistema brasileiro. A inclusão de matérias típicas na legislação ordinária no texto constitucional torna freqüente a necessidade de reformas constitucionais.

Não foi por acaso que o constituinte também previu que em cinco anos haveria a necessidade de uma revisão. Esta revisão resultou frustrada, muito provavelmente, por ter sido realizada no período que antecedeu à eleição presidencial de 1994.

A Constituição já foi objeto de 43 Emendas Constitucionais, sem contar as 6 emendas realizadas naquele período especial de revisão, de modo que os ajustes necessários têm sido feitos. Mudou-se, assim, além da disciplina da ordem econômica, o modelo de edição das medidas provisórias, ato legislativo que é sensível no plano das relações entre os Poderes Legislativo e Executivo (Emenda 32, de 2001). Mudou-se o regime previdenciário (Emenda 20, de 1998, e Emenda 41, de 2003), assim como a disciplina da Administração Pública (Emenda 19, de 1998). Mudou-se o regime das imunidades parlamentares (Emenda 35, de 2001), entre outros aspectos.

É certo, assim, que o modelo analítico faz com que revisões de políticas governamentais passem necessariamente pela revisão da Constituição. Tal modelo obriga os Governos, independentemente do seu perfil, a cultivarem uma maioria apta a votar emendas (3/5 de votos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal).

Não obstante as reformas, remanesceu o caráter analítico da Constituição.

Esse grau de detalhamento da Constituição brasileira não tem representado um obstáculo à vida política nacional. Isso obviamente não quer dizer que as constantes emendas constitucionais tenham sido obra fácil.

Ao longo desses anos, após 1988, pode-se perceber que a ampla proclamação de direitos pela Constituição serviu de estímulo a que as instituições de representação da sociedade civil se mobilizassem em favor da concretização daquelas promessas constitucionais. Não há dúvida de que, a partir de 1988, a sociedade civil brasileira saiu fortalecida.

Convive-se hoje com uma multiplicação de movimentos e organizações sociais voltados à defesa de múltiplos interesses, como a defesa da igualdade racial, do meio ambiente, da reforma agrária, dos interesses indígenas, do consumidor, entre outros.

Esse é, sem dúvida, um aspecto positivo que se relaciona ao que se poderia considerar como uma excessiva proclamação de direitos de caráter simbólico pelo Constituinte, aspecto muitas vezes ignorado pelos críticos da Carta de 1988. De fato, conforme anota Marcelo Neves, “enquanto não estão presentes ‘regras-do-silêncio’ democráticas nem ditatoriais, o contexto da constitucionalização simbólica proporciona o surgimento de movimentos e organizações sociais envolvidos criticamente na realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional e, portanto, integrados na luta política pela ampliação da cidadania”(6).

De certa forma, esse quadro normativo, inicialmente de forte conteúdo simbólico, tem legitimado a ação das diversas organizações sociais que reivindicam a concretização desse programas, até mesmo mediante a judicialização das mais diversas pretensões. Tenha presente, v. g., a discussão que se enceta, anualmente, em torno da revisão do salário-mínimo, com base também na sua eventual inadequação em face do art. 7º, inciso IV, da Constituição.

Recorde-se, aqui, da lição de Peter Häberle, no sentido de que o tema do Estado constitucional toca ao mesmo tempo a ratio e a emotio e traz consigo o princípio-esperança. Na visão de Häberle, tanto a teoria da Constituição como o tipo de Estado constitucional devem conceder ao ser humano um espaço para um “quantum de utopia”, não só na forma de ampliação dos limites das liberdades mas, também, de uma maneira mais intensa, na medida em que os textos constitucionais disponham sobre esperanças(7).

Por certo, em um país como o Brasil, em que o acesso a direitos sociais básicos ainda não é garantido a milhões de pessoas, não surpreende a generosidade do Poder Constituinte que, em síntese, traduziu essa perspectiva de que o Estado constitucional também é um espaço de síntese e de proclamação de esperanças que, historicamente, foram esquecidas.

Feitas essas considerações, na verdade um balanço, a evidenciar parte da realidade brasileira e de sua história institucional, gostaria de fazer algumas considerações sobre o projeto constitucional brasileiro de 1988 em duas perspectivas básicas.

A primeira delas relativa à democracia formal, com uma breve análise da evolução das instituições democráticas brasileiras a partir de 1988.

O segundo aspecto que irei abordar refere-se às promessas de democracia substantiva, especialmente no plano social, que acompanharam o processo político de redemocratização e que restaram proclamadas na Carta de 1988.

II. 1. Consolidação das instituições democráticas

Passo a tratar dessa perspectiva do desenvolvimento institucional brasileiro a partir de 1988.

Desde a promulgação da Constituição foram realizadas significativas reformas constitucionais e administrativas, com repercussão no âmbito econômico, financeiro e administrativo. A inflação galopante foi controlada, o que tem permitido uma melhoria relativa da própria distribuição de renda. Os gastos públicos estão hoje disciplinados por Lei de Responsabilidade Fiscal, que prenuncia um certo equilíbrio e transparência nas contas públicas federais, estaduais e municipais. Esse processo de reforma prossegue, no Governo atual, que conseguiu a aprovação, no primeiro ano, de uma reforma mais ampla do sistema de previdência social (Emenda 41, de 2003) e uma parcial reforma do sistema tributário nacional (Emenda 42, de 2003).

É certo, por outro lado, que, a despeito das mais diversas dificuldades, a Constituição tem mantido a sua capacidade regulatória. Não tenho dúvida de que, a partir da Carta de 1988, estão presentes aquelas condições que Robert Dahl enuncia como pressuposto para que seja atingida a democracia plena.(8)

Há uma convicção no modelo democrático, e as vias democráticas de conciliação têm-se mostrado mais lucrativas que o conflito e a ruptura. Crises políticas e econômicas graves têm sido equacionadas dentro dos marcos institucionais previamente estabelecidos. Um impeachment presidencial e inúmeras crises políticas e econômicas desenvolveram-se sob a disciplina constitucional sem qualquer contestação ou reclamo relevante. O poder civil está consolidado, cabendo mencionar, nesse ponto, a criação do Ministério da Defesa (Emenda 23, de 1999), órgão a que estão subordinadas as forças armadas e ocupado desde a sua criação por civis, expressão nítida do controle das forças militares pelo Poder civil.

Nesse contexto também mostra-se relevante o papel da jurisdição constitucional na consolidação desse ambiente democrático. O Brasil tem talvez uma das mais ativas jurisdições constitucionais do mundo, com amplo controle de constitucionalidade concreto e abstrato. As sucessivas revisões constitucionais têm sido objeto de continuada impugnação perante o Supremo Tribunal Federal, mas não há dúvida quanto à autoridade da Constituição ou do próprio guardião da Carta Constitucional.

O Supremo Tribunal Federal está desafiado a buscar o equilíbrio institucional, a partir de procedimentos que permitam uma conciliação entre as múltiplas expectativas de efetivação de direitos com uma realidade econômica adversa. Daí invocarem-se, não raramente, o chamado “pensamento do possível” e o próprio limite do financeiramente possível.

II.1.1. Reforma Política: Democracia eleitoral

Nessa análise do desenvolvimento institucional brasileiro, não poderia deixar de formular algumas considerações sobre o sistema eleitoral positivado na Constituição de 1988.

Desde a promulgação da Constituição já se discutia a necessidade de uma mudança no sistema político eleitoral, envolvendo inúmeros pontos que permaneceram inalterados em relação à Constituição anterior, mas que continuavam a merecer atenção.

O modelo eleitoral fixado manteve, para as eleições parlamentares, o sistema proporcional de listas abertas e votação nominal, que corresponde à prática brasileira desde 1932. O mandato parlamentar que resulta desse sistema afigura-se muito mais fruto do desempenho e do esforço do candidato do que da atividade partidária.

A ampla liberdade partidária, por sua vez, promoveu uma proliferação de partidos, dificultando as possibilidades de articulação política e importando em prejuízos para a densidade programática. Tal aspecto também acabou por comprometer a disciplina interna das legendas, que se tornam reféns dos personalismos dos candidatos que as integram.

Apesar de tudo isso, não se poderia afirmar que o caráter fragmentário do sistema partidário tem importado em prejuízos à democracia brasileira. Essa, aliás, é uma das preocupações de Adam Przeworski, que considera temerária uma combinação de presidencialismo com a inexistência de um único partido majoritário, chegando a afirmar, com base em elementos probabilísticos, que tal sistema teria expectativa de vida de apenas 15 anos. Przeworski, em verdade, faz uma aposta no regime parlamentarista, ao afirmar que, ao lado do desenvolvimento econômico, a adoção desse regime seria um dos fatores de durabilidade da democracia(9).

Todavia, como já observado, talvez o próprio caráter analítico da Constituição, a obrigar os Governos a cultivarem uma maioria apta a votar emendas (3/5 de votos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal), tenha produzido uma singularidade em nosso sistema presidencialista. De fato, não obstante a pluralidade de partidos e a inexistência de um único partido majoritário, o fato é que têm se formado, em todos os Governos, grandes blocos parlamentares com algum grau de coesão, a permitir a implementação dos projetos políticos decorrentes das eleições presidenciais.

A reforma política está em plena discussão e comissões representativas das diversas esferas de poder expressam a necessidade de se promover uma ampla reforma, capaz de fortalecer as instituições democráticas e reforçar a importância do exercício da cidadania e a legitimidade dos mandatos conquistados pelo voto. Discutem-se, por exemplo, a criação do voto distrital, mecanismos para a diminuição do número e o fortalecimento dos partidos, instituição da fidelidade partidária, a revisão do sistema de financiamento de campanha e do próprio sistema eleitoral.

É certo que, desde a Constituição de 1988, o Brasil tem passado por uma rica experiência em termos de desenvolvimento político. Eleições regulares e isentas de distorções e fraudes nos planos municipais, estaduais e federal têm marcado a experiência do Brasil democrático. Desde a promulgação da Constituição de 1988 realizaram-se quatro eleições diretas para Presidente da República em pleitos absolutamente isentos de qualquer suspeita, devidamente supervisionados por uma Justiça Eleitoral formada por juízes independentes. As eleições presidenciais diretas de 1989 foram as primeiras realizadas desde o ocaso da democracia em 1964 (a última eleição presidencial havia sido em 1960). Em 2002, pela primeira vez, desde 1988, realizou-se uma situação de típica alternância de Poder, com a assunção da Presidência da República pelo então Chefe do maior partido de oposição.

Outro aspecto digno de nota é uma ampla informatização das eleições, a partir de um sistema seguro e garantidor de correção dos pleitos eleitorais.

Consolida-se, assim, do ponto de vista histórico, o modelo democrático formal estabelecido em 1988.

E o quadro formal da democracia conta com a uma vantagem específica, que é a inexistência de adversários radicais do modelo. Tal como observa José Murilo de Carvalho, a esquerda e a direita brasileiras parecem hoje convictas do valor da democracia, valendo lembrar que parte significativa dos militantes da esquerda armada dos anos 70 são hoje políticos adaptados aos procedimentos democráticos(10).

Essa observação coincide com a de Adam Przeworski, em sua obra “Democracy and the Market”, no sentido de que a democracia consolida-se quando, sob certas condições políticas e econômicas, um dado sistema de instituições apresenta-se como o único mecanismo político viável, quando não se concebe uma atuação fora desse mecanismo democrático, quando não passa pela cabeça dos perdedores outra opção senão a de tentar novamente alcançar o poder político por meio das mesmas instituições em que foram derrotados (11).

Revista Consultor Jurídico, 22 de Fevereiro de 2005

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