Gratuidade dos registros de nascimento e óbito. Breve análise da Lei N° 9.534/97

( * ) Jarlan Barroso Botelho

A Lei Federal nº9.534/97 trouxe para grande parte da população brasileira uma enorme conquista social, vez que referido dispositivo instituiu a gratuidade dos registros civil de nascimento e óbito PARA TODOS, independentemente da comprovação de pobreza.

Não podemos deixar de aplaudir a iniciativa do legislador, vez que o registro de nascimento, e principalmente este, é em verdade a PORTA DE ENTRADA do exercício da cidadania, vez que o cidadão só existe após o seu registro de nascimento que o possibilitará tornar-se eleitor.

A análise que ora faço, de forma despretensiosa, é reproduzida(com algumas alterações) de parecer elaborado por este Promotor de Justiça e apresentado pelo Excelentíssimo Senhor Procurador Geral de Justiça de nosso Estado, no MS nº98.00792-7, levado à julgamento pelo Tribunal Pleno de nosso Egrégio Tribunal de Justiça, o qual decidiu no mérito, em negar a segurança aos impetrantes, todos oficiais de registro civil.

Por este motivo, insere-se no presente artigo alguns pontos relativos a ação mandamental, os quais fizeram parte da narração original.

Recentemente, este Promotor surpreendeu-se ao tomar conhecimento de novo Mandado de Segurança interposto por oficiais de registro civil, os quais, surpreendentemente, obtiveram nova liminar.

Passo agora a declinar minha “defesa” ao referido dispositivo legal, esperando servir de fomento para a discussão LEGAL da matéria.

DAS RAZÕES

Os senhores oficiais de registro civil de nossa capital, e alguns do interior do Estado, ingressaram com ação mandamental, buscando a proteção de um direito “LÍQUIDO E CERTO” contra ato “ILEGAL” do Exmo. Sr. Corregedor Geral de Justiça, o qual editou o Provimento nº02/98.

Pelo citado provimento o Sr. Corregedor de Justiça dava ciência aos oficiais de registro da “necessidade” de cumprirem a Lei nº9.534/97, sob pena de sofrerem as sanções administrativas cabíveis.

Temos então, prima facie, os pressupostos para admissibilidade do mandamus, pois, segundo os requerentes, estariam buscando proteção de direito líquido e certo contra ato ilegal de autoridade.

Em análise mais detida percebe-se, entretanto, que os fatos não são tão cristalinos como pintado pelos requerentes.

Com efeito, temos um ato concreto(Provimento), advindo de autoridade pública, o que já é um dos pressupostos para o cabimento do Writ, pois o texto constitucional permitiu que o MS fosse concedido ainda quando o ato não tivesse se efetivado, bastando que a sua efetivação pudesse causar sérios riscos à direito líquido e certo do impetrante.

Pelo dito no pedido atrial, o Provimento atacado, ao reproduzir o contido na Lei nº9.534/97, estria pondo em risco o Direito de PROPRIEDADE dos impetrantes(art.5º, XXII), bem como feria o princípio constitucional do respeito aos valores sociais do trabalho (art.1º IV), o do devido processo legal (art.5º, LIV), o da vedação do confisco por tributação (Art.150, IV), bem como o do direito a propriedade privada (art.170, II), todos esses dispositivos constitucionais.

Data máxima venia, as alegações dos impetrantes são no todo descabidas e incompatíveis com a real abrangência da Lei hostilizada, a qual não feriu qualquer dos princípios constitucionais arrolados pelos autores como veremos adiante.

DA NATUREZA DAS SERVENTIAS

Ab initio se faz mister relembrar que, as serventias privadas nada mais são do que UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE NATUREZA PÚBLICO DELEGADA À PARTICULARES, o que não torna o serviço de natureza particular.

Diz o art.236 da Constituição:

Art.236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, POR DELEGAÇÃO DO PODER PÚBLICO. (destaque nosso)

O professor NELSON NERY JÚNIOR, comentando o citado artigo da Constituição, assim se manifestou, in literes:

“Delegação. A concessão da delegação da função notarial é atribuição do Poder Executivo. O §1º determina ao Poder Judiciário apenas a fiscalização da atividade notarial, restando implícito que a este Poder não cabe a delegação. Daí a razão por que foi vetado o art. 2º da L 8935/94, que previa a delegação da função pelo Poder Judiciário (razões do veto do Presidente da República, in DOU 21.11.1994, p. 17515, 1ª coluna).”

Ainda sobre a natureza das serventias, de bom alvitre se faz a colação do entendimento de nosso Pretório Excelso, o qual assim se manifestou, in verbis:

“Serviços notariais. Natureza. A possibilidade jurídico-constitucional de a mera execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada em caráter privado, por delegação do poder público, não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa.”(negritos no original)

Evidente, portanto, a natureza pública do serviço de registro, o que afasta de logo a possibilidade da atacada Lei nº9.534 está ferindo o direito de propriedade privada dos oficiais de registro, até mesmo porque a citada Lei não faz requisição de propriedades, ou desapropria bens imóveis dos titulares das serventias.

De igual modo não fere os VALORES SOCIAIS DO TRABALHO, muito pelo contrário, vem valorizar a prestação de cunho social do trabalho dos oficiais de registro, pois o surgimento da nova lei veio realçar e dar ênfase ao caráter social do serviço público, de natureza relevante, empreendido por estes.

Longe de ferir, o dispositivo atacado RESGATA o caráter social do trabalho dos oficiais de registro, vez que estes representam os “Guardiães” da porta de entrada do cidadão comum no meio democrático participativo de nosso Estado.

Essa função estava distorcida em detrimento da manutenção de privilégios “hereditários” de castas que se formaram utilizando-se do serviço que deveria ter caráter público, mas que foram implicitamente “privatizados”. Essa é a imagem passada a maioria da população, que acredita que os “Cartórios” são empresas comerciais prestadoras de serviço, assim como são as empresas locadoras de mão de obra.

Os oficiais de registro vêem dessa mesma forma, tanto que alegam que a atacada lei fere seus direitos de proprietários. Proprietários de que afinal? Das serventias PÚBLICAS?

O inciso XXV do art.5º da CF, o qual foi argüido pelos notários, dá a real idéia desse sentimento de propriedade, pois exigem uma INDENIZAÇÃO pelo fato do Poder Público estar “utilizando propriedade particular”.

Diferente não é a impropriedade do arrolado art.150, inciso IV, o qual prevê a vedação do confisco pelos tributos, pois o caso sub examen não trata-se de lei que instituiu qualquer tributo. Não tratamos aqui de direito tributário e sim de lei com fins a instituir a igualdade de tratamento à população do País, visando a efetiva aplicação da isonomia.

Se for-mos examinar pelo ponto de vista do citado artigo, vemos que aqui foi abolido um tributo, no caso uma taxa cobrada pela prestação de um serviço público. Não há, portanto, confisco mas sim isenção tributária extensiva a todos.

Totalmente improcedente ainda é a afirmação de que a Lei fere o disposto no art.170 da CF/88, vez que este trata da intervenção do Estado na ordem econômica para evitar a ocorrência de abusos e regulamentar o exercício da livre iniciativa PELOS PARTICULARES.

Inexiste ainda DIREITO ADQUIRIDO a percepção dos emolumentos, pois é fácil perceber que a atividade notarial é serviço público em que seus SERVIDORES ingressam na carreira através de CONCURSO PÚBLICO. Sendo público o cargo e a atividade, poderá o Poder Público, conforme dispõe a Constituição, regular a atividade e fixar emolumentos do modo QUE MELHOR ATENDER O INTERESSE PÚBLICO.

O direito adquirido dos impetrantes diz respeito tão somente àqueles que ingressaram na carreira via concurso, ou relativamente aqueles que já ocupavam seus cargos antes do advento da atual Constituição. São direitos pessoais e não direito sobre o serviço prestado.

Repete-se aqui que as serventias não são propriedade dos impetrantes. Quando muito são propriedade destes os prédios e materiais que guarnecem-nas, mas nunca a ATIVIDADE.

O que busca o presente mandamus é a manutenção de privilégios de uma abastada classe de pessoas, que luta para não ver suas mordomias comprometidas pelo advento da democrática e social Lei nº9.534, a qual veio corrigir, mesmo que tardiamente, um flagrante absurdo ainda reinante em nosso País. Fazem isso em detrimento de milhares de pessoas que necessitam de seus registros de nascimento e óbito de parentes para exercitarem seus direitos de cidadãos.

DA INEXISTÊNCIA DE DIREITO

LÍQUIDO E CERTO

A definição de direito líquido e certo é por demais controvertida, sendo que a mais aceita pela doutrina e pela jurisprudência e o dado pelo insuperável HELY LOPES MEIRELES, o qual assim o define, in literes:

“Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocado, para ser amparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se a sua existência for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se o seu exercício depender de situação e fatos ainda indeterminados, não rende ensejo a segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais.”

Acrescenta o brilhante autor que:

“Em última análise, direito líquido e certo é direito comprovado de plano. Se depender de comprovação posterior não é nem líquido nem certo, para fins de segurança.”

Os impetrantes não comprovaram seu direito, pois a simples transcrição do art.236 da Lex Mater não possui o condão de comprovar o direito pleiteado como inquestionável, já que existem inúmeras disposições em contrário.

Aqui sequer configura-se dúvida quanto a existência do direito, pois esta dúvida é substituída pela certeza da inexistência, já que os impetrantes pretendem de uma só vez insubordinarem-se contra o dever disciplinar ao não acatarem as orientações e advertências do Corregedor, e ainda insurgirem-se contra norma Federal cogente e aplicável erga omnes.

Ipso facto, não se pode reconhecer como líquido e certo o direito dos impetrantes, sendo esse único fato motivo para afastar o cabimento do Writ.

DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI

Insurgem-se os impetrantes em seu pedido contra a multicitada Lei nº9.534/97 que estendeu o registro de nascimento e óbito gratuitamente a todas as pessoas, indistintamente.

Pintaram-na com contornos lúgubres e sombrios afirmando que esta feria uma série de dispositivos constitucionais como analisado acima.

Mesmo que os autores não tenham pedido a declaração de sua inconstitucionalidade incidenter tantum, mister se faz a sustentação de sua total constitucionalidade, apenas por amor ao debate, pois o seu reconhecimento fica comprometido ante a AUSÊNCIA DO PEDIDO, já que assim o fazendo seria configurado o julgamento Ultra petita.

Veio a lume através de sanção do Excelentíssimo Senhor Presidente da República a Lei nº9.534/97 a qual modificava o art.30 da Lei nº6.015, bem como os arts. 30 e 45 da Lei nº8.935/94, estendendo assim a gratuidade do registro de nascimento e óbito, bem como a primeira certidão respectiva.

Com isso a lei permitiu a todos os cidadãos brasileiros a obtenção do documento indispensável para o efetivo exercício da cidadania, qual seja, a certidão de nascimento.

Diz o art. 4º do Código Civil que:

“A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro.”

Para a obtenção de personalidade civil o homem necessita obrigatoriamente de seu registro de nascimento, pois sem este torna-se INEXISTENTE para o mundo, e fica aparte de suas transformações sociais e políticas, fica excluído de participar dessas mutações que irão influenciar em sua vida.

O modo de poder o cidadão participar dessas transformações será através do VOTO LIVRE E CONSCIENTE, e ai volta-se a necessidade de seu registro de nascimento, pois só é eleitor quem existe civilmente.

O peso de seu voto só fará diferença quando este for depositado na urna de forma consciente, esclarecido e livre, e estas qualidades só serão obtidas através de uma efetiva educação em escola de qualidade. Esse direito à educação só será estendido aqueles que possuem personalidade civil (Registro), o que nos mostra mais uma vez a importância fundamental de tal ato na vida do homem.

A lei em análise veio corrigir uma distinção inconstitucional entre os cidadãos brasileiros.

Isso é dito porque a Lex Fundamentalis pregava como uma de suas pilastras mestras o DIREITO A IGUALDADE, o conhecido princípio da isonomia, vedando assim qualquer distinção entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, seja por conta de raça, cor, crença religiosa, sexo ou distinção DE QUALQUER NATUREZA, assegurando novamente o direito à vida, à liberdade e à igualdade, conforme preconiza o art.5º”Caput” da CF.

A ênfase dada ao DIREITO DE IGUALDADE foi a pedra angular na elaboração da debatida lei pois, o desejo do legislador nesse instante foi o de nivelar o cidadão no momento em que ele se torna mais igual, ou seja, no momento de seu nascimento e de sua morte.

Nada mais democrático do que a isonomia nesses casos, pois é certo de que todos chegam ao mundo de uma mesma forma, e como tal, necessitam existir para ele.

O insuperável mestre JOSÉ AFONSO DA SILVA, discorrendo sobre o assunto em baila, nos traz o brilhante entendimento que ora se transcreve, in literes:

“O direito de igualdade não tem merecido tantos discursos como a liberdade. As discussões, os debates doutrinários e até as lutas em torno desta obnubilou aquela. É que a igualdade constitui signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra. Por isso é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa.”

A necessidade constitucional do tratamento isonômico foi o ponto de partida da lei e uma de suas pilastras, mas não foi só ai que ela obteve respaldo constitucional.

Prevê o texto constitucional em seu art.5º, LXXVII, a gratuidade de TODOS OS ATOS NECESSÁRIOS AO EXERCÍCIO DA CIDADANIA.

Como visto anteriormente, para o efetivo exercício dessa cidadania o homem necessita antes de mais nada existir civilmente, e isso só ocorre com seu registro de nascimento.

Da mesma forma, o direito de herança que lhe é assegurado pela Lex Fundamentalis só poderá ser exercido com seu registro de nascimento e o registro de óbito do parente morto.

A todos os direitos contidos no ordenamento jurídico pátrio está relacionado o direito a obtenção de seu registro de nascimento, pois como visto, só através dele é que o cidadão passa a existir para que possa gozar efetivamente do que lhe é assegurado por lei.

Mas não para por ai. O próprio artigo utilizado pelos impetrantes como arrimo para a sustentação de inconstitucionalidade da lei, milita contra suas pretensões, pois este atribui competência a Lei federal para REGULAR A ATIVIDADE E ESTABELECER NORMAS GERAIS para a fixação de emolumentos.

Ora, se a CF fala em regulara a atividade, outra coisa não fez a atacada lei que não regular a atividade de registro ao modificar o artigo 30 da Lei nº6.015 que está inserido no Título II, Capítulo I, intitulado DISPOSIÇÕES GERAIS.

Ainda que se enquadre a modificação como fixação de emolumentos, ainda assim estaria esse permitido pela norma Constitucional, pois, como trata a atividade de serviço público, pode o Poder Público isentar a população de seus custos, não excedendo com isso os limites de suas atribuições.

Assim, comprovado e claro está a total constitucionalidade da lei atacada, não havendo reproches a faze-la.

CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto, esperamos poder ter contribuído para esclarecer um pouco sobre os aspectos atinentes a Lei nº9.534/97, e esperamos que esta não torne-se letra morta, mas que seja efetivamente cumprida em nome do resgate da cidadania.

( * ) O autor é Promotor de Justica titular da Promotoria de Justiça do Juizado Especial Cível e Criminal de Tauá-CE.

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