Autor: Guilherme Nucci (*)
A Lei 12.850/2013 (Lei da Organização Criminosa) autorizou, como um dos meios de prova, para apurar o crime de organização criminosa e correlatos, a delação premiada. O prêmio, segundo os termos desta Lei, consiste em uma das três opções: a) perdão judicial (sem punição alguma); b) redução da pena de até 2/3 da pena privativa de liberdade que vier a ser aplicada; c) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Um desses benefícios valerá para quem colaborar efetiva e voluntariamente para permitir a identificação dos integrantes da organização criminosa, revelar a sua estrutura e a divisão de tarefas, prevenir outras infrações, recuperar bens e valores ou localizar a vítima (neste último caso, valendo para o crime de sequestro).
Há limites para o acordo de colaboração premiada? Pode o Ministério Público e o delator firmar propostas para o presente e para o futuro? É viável inserir no termo de colaboração premiada elementos concernentes a questões civis? É juridicamente possível firmar cláusulas que venham a vincular outras autoridades judiciárias (e membros do MP) que nada tem a ver com o caso? Enfim, pode-se “tudo” no acordo? A homologação do juiz, que deve verificar a sua legalidade, tem o condão de validar toda e qualquer cláusula prevista no termo?
Essas dúvidas haverão de ser decididas algum dia por tribunais superiores, quando forem questionadas de algum modo.
Assim sendo, somente para ilustrar e para argumentar, imagine-se que um acordo de delação premiada contenha as seguintes cláusulas:
a) em primeiro lugar, vale-se de benefícios penais advindos de várias Leis diferentes, formando uma autêntica combinação de leis penais para conceder benefícios;
b) prever o cumprimento de qualquer pena futura em regime aberto;
c) suspender todo e qualquer processo/investigação que esteja instaurado ou que venham a ser inaugurados em qualquer juízo;
d) prever pena cumulativa de prestação de serviços à comunidade (além da privativa de liberdade no regime aberto);
e) suspender o curso da prescrição por vários anos até que se possa considerar cumprida a parte do colaborador;
f) prever que todos os benefícios de execução penal se baseiem numa pena fixa de “x” anos, pouco interessando que o colaborador seja apenado a muitos mais anos de prisão;
g) dispor sobre formas de imunidade à punição de ações de improbidade administrativa que forem propostas no futuro;
h) propor multa compensatória em qualquer quantia;
i) compromissar o colaborador a sempre falar a verdade em qualquer investigação ou processo, presente ou futuro;
j) obrigar o colaborador a abrir de todo e qualquer recurso que vise a impugnar o termo de acordo celebrado;
k) estabelecer o dever genérico de cooperar sempre com o Ministério Público;
l) fixar que a prova obtida em face da delação tenha validade em qualquer investigação ou processo, penal ou civil, presente ou futuro;
m) estabelecer alteração de competência para estabelecer que o juízo de execução penal seja o juízo da condenação (o mesmo juízo que homologou o acordo).
Se existir um acordo de delação premiada contendo as supostas cláusulas supra descritas, além de outras, transforma-se em lei entre as partes e também vincula todas as demais autoridades judiciárias de qualquer instância no Brasil?
Parece-nos, salvo melhor juízo, que o acordo de delação premiada não pode combinar leis penais, retirando benefícios de qualquer lei e fazendo uma miscelânea legislativa, jamais prevista pelo Parlamento.
Segundo nosso entendimento, o acordo não pode nunca vincular outras autoridades (Delegados/MP/Judiciário) que dele não participaram, pois seria a maior ilogicidade em matéria penal.
Sugere-nos o princípio da legalidade que jamais se altera o prazo prescricional ou a competência penal por acordo extrapenal entre quem quer que seja.
Soa-nos ilegal dispor sobre execução penal em acordo pré-processual, como se houvesse um único juízo no Brasil — o da homologação.
Outras considerações poderiam ser apresentadas, mas essas cláusulas são ilustrativas, não significando que estejam presentes num autêntico acordo entre o Ministério Público e qualquer colaborador.
Afinal, se o acordo puder conter aquelas supostas cláusulas, não mais precisaremos de leis no Brasil, pois acordos valerão mais que normas editadas pelo Parlamento na área penal. Parece até que se está diante do Direito Civil, cuidando de interesses meramente privados e disponíveis.
Sem dúvida, dará a última palavra o Supremo Tribunal Federal. Até lá, muitos colaboradores devem ficar prevenidos, pois seus acordos não estão imunes a questionamentos advindos do simples cumprimento da lei. O momento decisivo para a Justiça será verificar o que pesa mais: leis ou acordos. Tudo isso no ambiente da legalidade penal.
Autor: Guilherme Nucci é desembargador em São Paulo. Livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Processo Penal.