Há uma distorção semântica histórica nos crimes de responsabilidade

Autor: Leonardo Pantaleão (*)

 

Despiciendo destacar, a esta altura, a hecatombe que permeia o cenário político nacional, com gravíssimos reflexos nos âmbitos econômico e social. Valendo-me de uma expressão consagrada há anos, “nunca antes da história deste país” identificou-se, em minúcias, um esquema tão estruturado de desvio de dinheiro público, cujos valores assombrosos, e ainda distantes do real, já seriam suficientes para relevantes programas nas áreas de educação e saúde, especialmente.

Como desdobramento natural, com o incremento das denominadas “colaborações premiadas” e outros meios de obtenção de provas, emergem indícios por vezes relevantes e seguros de atuação ilícita de agentes públicos e, daí, o resgate de expressões definidas na legislação constitucional e infra, entre as quais têm-se os intitulados crimes de responsabilidade.

Esse é o ponto que nos interessa, ou seja, a aferição semântica da utilização do vocábulo crime para tais condutas de agentes públicos. Passemos a uma análise técnica do tema.

De acordo com o disposto no artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914/41), “considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa […]”. Percebe-se, portanto, que é inerente a essa modalidade de infração penal a previsão legal de reprimenda de natureza corporal (detenção ou reclusão).

Vale rememorar, na mesma esteira, a celeuma que permeou a vigência do artigo 28 da Lei de Drogas, pelo fato de que, embora previstas como crime, o agente que realizasse qualquer das condutas descritas naquele dispositivo não sofreria qualquer perspectiva de restrição ambulatorial, em face da não previsão legal. Suscitava-se, à época, a eventual descriminalização ou despenalização de tais comportamentos.

O Supremo Tribunal Federal, a seu turno, posicionou-se no sentido de que ocorrera tão somente uma despenalização, mantendo-se sólida a existência da infração penal do tipo crime, mesmo inexistindo previsão legal de qualquer modalidade de pena privativa de liberdade, invocando-se, para tanto, o disposto no art. 5º, XLVI, da Carta Magna.

Porém, antônima é a situação dos crimes de responsabilidade, senão vejamos. Vestibularmente, têm-se, como tais, as infrações político-administrativas cometidas no desempenho da função pública, desde que definidas em lei. No tocante ao chefe do Poder Executivo, ilustrativamente, tanto a Constituição Federal (art. 85, CF) como a Lei 1.079/50 (art. 2º) explicitam dispositivos que visam responsabilizá-lo pela prática de comportamentos lesivos a bens e interesses gerais (coisa pública), tendo como consequência a proibição da continuidade do mandato, com a perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer função pública.

Verifica-se, assim, que o crime de responsabilidade não decorre de uma lei de natureza penal, mas, sim, de natureza diversa. Essa é a razão pela qual é pertinente a observação de que somente certas pessoas, no exercício de certas funções, podem praticar crimes de responsabilidade, pois as pessoas comuns, a princípio, não têm condições de atentar contra a existência da União, o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário etc.

No mesmo sentido, outra crítica doutrinária refere-se ao fato de que a Lei 1.079/50, como ressaltado, não descreve crimes, e sim infrações político-administrativas, valendo-se, impropriamente, do termo ação penal, além do que ela pode ser desencadeada a partir de denúncia popular (art. 14), o que não se admite em ação penal pública, pois esta é de titularidade do Ministério Público.

Nessa esteira, merece destaque o fato de que se firma, como premissa da lei penal, a defesa de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência harmoniosa entre os homens, e que não podem ser eficazmente protegidos de maneira menos custosa, com imposição de sanções capazes de séria restrição aos direitos fundamentais. Nesse prisma, em face de ser geradora de restrições a garantias individuais, inclusive, é fundamental ser a lei penal (normas penais incriminadoras), até como instrumento de segurança social e jurídica, aplicada, com exclusividade, pelo Poder Judiciário. Como visto, não é o que ocorre com os crimes de responsabilidade, o que os distancia dessa natureza.

O crime (ilícito penal) não prescinde jamais do comportamento transgressor da norma penal incriminadora, ao passo que a infração de responsabilidade resulta da violação do contido na norma constitucional e na lei de caráter não penal. Nesse último, relativamente ao Presidente da República, por exemplo, o processo e o julgamento não se verificam perante o Poder Judiciário, e sim perante a Câmara Federal e Senado, transformados em tribunal político-administrativo.

A esta altura, deve estar se indagando o atento leitor sobre a origem de tamanha imperfeição técnica, reiteradamente indicada nas legislações nacionais, inclusive na órbita da Constituição Federal. Trata-se, como se demonstrará, de vício histórico que há muito nos acompanha, conforme cronologia pontuada pelo eminente Professor Luiz Regis Prado, a saber:

“[…] Em termos cronológicos, a inicial positivação da expressão ‘crimes’ de responsabilidade no Brasil é vista na Lei de 15 de outubro de 1827, que disciplinava a responsabilidade dos Ministros, Secretários de Estado e dos Conselheiros de Estado, além do procedimento para apuração dos crimes de responsabilidade. Esta lei tinha conteúdo criminal.

Depois, o Código Criminal do Império de 1830 consignava expressamente o seguinte:

Art. 308. Este Codigo não comprehende: 1º Os crimes de responsabilidade dos Ministros, e Conselheiros de Estado, os quaes serão punidos com as penas estabelecidas na lei respectiva.

Na esteira da Lei de 1827, o Código Criminal de 1830 versava sobre os Ministros e Conselheiros do Estado (não sobre o Imperador – vigorava na época a premissa de que o rei não erra), como eventuais autores do crime de responsabilidade.

Mais tarde, o “Código Penal dos Estados Unidos do Brazil” de 1890 inovava ao tratar dos crimes de responsabilidade aplicáveis ao Presidente da República:

Art. 6º. Este codigo não comprehende:

  1. a) os crimes de responsabilidade do Presidente da República.

A respeito, anota-se que o artigo 6º do Código Penal de 1890 foi anterior à própria criação da espécie constitucional estabelecida na Constituição de 1891, sendo a primeira vinculação legal brasileira entre a figura do Presidente da República e os “crimes” de responsabilidade.

É de registrar-se ainda que, mesmo contida em Códigos Penais (inclusive, no Código de Processo Penal) e em leis especiais, a expressão designava, em geral, crimes funcionais e infrações político-disciplinares. Com efeito e lamentavelmente, “desde o primeiro reinado, a locução defeituosa se insinuou na linguagem legislativa e não mais foi abandonada”.

Essa origem, por assim dizer, penal da locução é geradora da equivocidade que ainda hoje consagra o referido conceito (“crime” de responsabilidade), e que muito problematiza seu estudo. Apoucadas diferenças surgem posteriormente na Constituição de 1934 (inspirada em Weimar), com previsão similar na disciplina da matéria, inclusive a manutenção da ordem dos dispositivos.

A Constituição de 1946 trazia modificação para ensejar o “crime” de responsabilidade quando o Presidente da República atentasse contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes Constitucionais dos Estados”, seguido igualmente nas Cartas de 1967 e de 1988.

O atual dispositivo constitucional (art. 85 da CF) é regulamentado pelos artigos 5º a 12 da Lei 1.079 de 1950, no tocante ao Presidente da República, onde se tipificam atuações de caráter misto, político-jurídico (constitucional-administrativo), e não propriamente criminal. Tal desalinho é visto também no Decreto-Lei 201 de 1967, que nomeia crimes comuns ou funcionais como “de responsabilidade” no caso de infrações praticadas por Prefeitos municipais.

Na Constituição Federal, em vigor, aparece o termo “crime” várias vezes com sentidos bastante diversos, o que denota não ser a terminologia fator decisivo para compreensão do injusto de responsabilidade.”

Nesse contexto, aprioristicamente, o próprio conteúdo do art. 86 da Carta Política revela a natureza jurídica diversa existente entre os denominados “crimes comuns” (esses, sim, considerados delitos no sentido técnico da expressão) e os equivocadamente referidos “crimes de responsabilidade”, atribuindo-lhes competências diversas para o respectivo julgamento.

Conclui-se, assim, que a distorção semântica que envolve os “crimes de responsabilidade” inaugurou-se ainda no século XIX, perdurando até a presente data.

  1. Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

  1. Art. 5º, XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: (destacamos)
  2. a) privação ou restrição da liberdade;
  3. b) perda de bens;
  4. c) multa;
  5. d) prestação social alternativa;
  6. e) suspensão ou interdição de direitos;
  7. TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
  8. PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal brasileiro. São Paulo: RT, 2013.
  9. PRADO, Luiz Regis; SANTOS, Diego Prezzi. Revista de Direito Constitucional e Internacional. RT, v. 95, abr-jun./2016, p. 61-80.
  10. idem
  11. Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade […]

 

 

 

 

Autor: Leonardo Pantaleão é advogado criminalista, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal do Centro Preparatório Jurídico(CPJUR) e sócio-fundador da Pantaleão Sociedade de Advogados.


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