Hermenêutica advocatícia: "A letra mata e o espírito vivifica!"

Daniel Cavalcante Silva
advogado em Brasília (DF), integrante do escritório MBSC Advogados Associados, pós-graduado no MBA de Direito e Política Tributária pela FGV Brasília

A priori, faz-se necessário um breve esclarecimento sobre a frase do apóstolo São Paulo que, ao escrever uma carta aos Coríntios, expôs sua célebre frase: “A letra mata e o espírito vivifica!” Se for colocada no seu devido contexto, poderá se observar que ao longo de todo o terceiro capítulo da referida carta, o apóstolo São Paulo faz um paralelo entre dois tipos de tratamentos: um através da lei e o outro através do Espírito Santo, traçando, assim, indiretamente, normas de condutas.

Existem atos que se referem às normas de condutas, elencadas nos princípios gerais do Direito, encontrando-se entre estes sistemas normativos, por fim, as normas éticas. Dentre estas normas éticas pode-se enquadrar as de cunho religioso, ou seja, o valor do divino norteando o homem na sociedade, exigindo um determinado comportamento por parte dos indivíduos e dos grupos. Demonstra-se, com esta afirmação, que toda e qualquer atividade humana, enquanto intencionalmente dirigida à realização de um valor, deve ser considerada uma conduta ética.

A norma ética estrutura-se, pois, como um juízo de dever ser, mas isso significa que ela estabelece, não apenas uma direção a ser seguida, mas também a medida da conduta. Toda norma ética expressa um juízo de valor, ao qual se liga uma sanção, isto é, uma forma de garantir-se a conduta que, em função daquele juízo, é declarada permitida, determinada ou proibida.

Essas definições, acima citadas, são de suma importância para a finalidade aqui proposta, pois é verificada uma analogia entre as leis e o espírito divino com as leis e o espírito das leis, com as quais são regidas as vidas dos cidadãos.

A lei é, em geral, configurada ou estruturada em função dos comportamentos normalmente previsíveis do homem comum, de um tipo de homem dotado de tais ou quais qualidades que o tornam o destinatário de preceitos de caráter genérico, o que não impede que existam normas complementares que prevejam situações específicas ou particulares, que agravem ou atenuem as conseqüências contidas na norma principal.

Porém, uma série de fatores contribui para que a norma não tenha eficácia, devido principalmente à sua caducidade ou às várias formas interpretativas. Cabe ao jurista fazer uma interpretação do que o legislador quis proferir na época em que foram elaboradas as leis. Parece paradoxal, mas é fundamentalmente verdadeira a asserção de que uma norma não diz apenas aquilo que está em sua letra fria e inanimada. O legislador não se limita a descrever um fato tal como ele sempre será, mas baseando-se na previsão de diversas modificações dos costumes e valores.

Quando se encontra uma forma de conduta não disciplinada especificamente por leis ou regras que lhes sejam próprias, considera-se razoável subordiná-las aos preceitos que regem relações semelhantes, mas cuja similitude coincida em pontos essenciais, o que configuraria uma forma de analogia. A este fato é que se enquadra a citação do divino apóstolo com o âmbito do direito.

Como se poderá discorrer de um tema sem se admitir, como pressuposto, uma noção elementar e provisória da realidade em que tratamos, ao relacionar a citação de São Paulo, com o seguinte exemplo. Sabe-se, por exemplo, de um acidente de trânsito no qual um motorista atropelou um pedestre na avenida mais movimentada da cidade. Este alegou que o motorista vinha em velocidade maior que a permitida e que, por isso, não o viu. Aquele afirmou que o pedestre atravessou a rua quando o sinal estava verde e que não desviou o seu veículo porque havia um ônibus ao seu lado. O segurança do banco, que presenciou tudo, falou que o motorista tinha sido trancado por outro carro, não lhe restando outra opção senão avançar para o local onde estava o pedestre. E um executivo, que observou o ocorrido da janela de seu escritório, disse que o sinal na verdade estava vermelho. Esse é exatamente o papel do direito, fazer com que cada um tenha direito e relatar a sua versão para que, ao final, baseado em argumentos, provas, testemunho e leis, se possa chegar a um consenso e, com isso, se fazer justiça.

Todavia, não será apenas a versão de cada parte na contenda que influenciará o resultado final, mas também, e talvez principalmente, a de todos os profissionais da área jurídica. O problema é que nem sempre o direito se resume a esse maniqueísmo simplório entre quem tem e quem não tem razão. Para colorir isso, vale lembrar uma história passada na velha Grécia que muito gostava de contar o advogado e poeta recifense Talden Farias:

Conta-se que o grande sofista Protágoras, aquele que disse não haver a Verdade, e sim a verdade individual, a verdade de cada um, e que o homem é a medida de todas as coisas, foi o primeiro mestre que cobrou honorários pelos ensinamentos que ministrava Antes dele, os mestres recebiam apenas as dádivas voluntárias dos seus discípulos. Protágoras inaugurou a fase do ensino pago.

No entanto, um de seus alunos, o discípulo chamado Evalthus, era muito pobre e não podia pagar o curso de jurisprudência que pretendia fazer. Então, fizeram ambos um contrato, pelo qual Evalthus pagaria o seu curso, de uma só vez, se ganhasse a sua primeira causa. Conta-se que Evalthus, concluído o curso, não passou a advogar, até que, um dia, perdida a paciência, Protágoras ajuizou contra ele uma ação de cobrança, dizendo que o discípulo, sabendo o mestre muito velho, estava esperando que ele morresse, para furtar-se ao pagamento. E a fundamentação da ação de cobrança era de que agora, naquele tempo, Evalthus pagaria de qualquer modo.

Protágoras, se ganhasse a ação, receberia em virtude da sentença, e, se perdesse, receberia em virtude do contrato, porque Evalthus havia ganho a sua primeira causa. Parecia irrespondível.

Mas Evalthus contestou a ação, dizendo que não estava esperando que o mestre morresse, e, sim, que ele ajuizasse aquela ação. Porque, agora, não pagaria mais. Se vencesse a ação, estaria desonerado pela sentença, pois esta atribuiria um valor a ser cobrado ao mestre Protágoras em virtude de sua perda judicial. E se perdesse, nada deveria, em razão do contrato, porque havia perdido a sua primeira causa.

É claro que são verdadeiras as duas teses, o que pode diferir é o ponto de vista do profissional do meio jurídico que, diante de um caso prático, terá de optar entre um ou outra. Entretanto, essa história nos deixa uma lição, que é a certeza de que o direito não deve ser tratado feito uma ciência exata, como querem os mais apegados à fria letra da lei. A percepção do direito tem por base, parafraseando Clóvis Bevilácqua, o princípio da igual liberdade, em que o juízo e as partes deverão curvar-se às peculiaridades sociais de cada caso, de forma que o bom senso se sobressaia da palidez normativa.

Poder-se-ia dizer que é o presente modificando o passado, o fato modificando a lei, como ensina o professor Miguel Reale. (1) “Entre a lei e o fato, no mundo físico, não há que hesitar: prevalece o fato, ainda que seja um só fato observado; modifica-se a teoria, altera-se a lei”. A este fato acresce-se aos preceitos normativos que regem o art. 112 do CC, que assim dispõe:

“Art.112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem.”

Este artigo seria uma forma de interpretação extensiva, ou seja, parte-se da admissão de que a lei existe, sendo suscetível de ser aplicada ao caso, desde que estendido o seu entendimento além do que usualmente se faz. O grande problema que perpassa na citação do apóstolo São Paulo é quanto à aplicação do Direito, em se relacionando com o âmbito de sua eficácia. Quanto a isso poder-se-ia dar o exemplo dos contratos entre presentes e entre ausentes, no que se refere, principalmente, à forma de celebração do mesmo, ou seja, quanto a possibilidade ou não de resposta imediata. Tira-se como exemplo disso a Internet.

A Internet é um moderno meio de comunicação em que as pessoas podem enviar mensagens, ou conversar interativamente com outras e até mesmo selar contratos, fazer transações. No tempo em que o legislador formulou as leis que regiam o assunto direcionado à correspondência epistolar, não tinha idéia do que fosse ou haveria de ser a Internet. Contudo não deixou de regular as novas tendências que eventualmente poderiam surgir, como segundo exemplo, o fax. Ou seja, a letra mata e o espírito vivifica, a letra diz uma coisa, mas a intenção é outra, a de se enquadrar nos novos moldes evidenciados em nossa atualidade.

Desencadeiam-se assim novos processos e parâmetros, os quais deverão ser seguidos pelo legislador e, por conseqüência, pelos operadores do direito, entre eles, o advogado. Porém, tais parâmetros não poderão fugir do que emana a Lei De Introdução ao Código Civil, decreto-lei N0 4.657, de 4 de Setembro de 1942, tendo no seu art. 50 uma regra basilar aplicada a todas as normas do Direito, quer por si própria ou por analogia:

“Art. 50. Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

Nessa heterogênea complexidade surge a função social do advogado e sua delicada percepção, visando mediar os interesses da eterna dialética entre indivíduo e coletividade, entre utilitarismo e valores. Cabe ao advogado exercer a sua função ético-humanista para preservar o equilíbrio da prestação jurisdicional. O conjunto de normas acima citadas tem o dom de transferir ao advogado uma certa liberdade para que possa exercer o direito de defesa dos interesses a ele confiados. O advogado passa a ser um intérprete da lei e sua real função social, adequando as normas ao caso concreto.

Amiúde os vários problemas no âmbito do judiciário, como a morosidade dos processos por circunstâncias alheias à ação, o direito passa a ser sacrificado ou tardiamente liquidado. Diante desses fatos, cabe ao advogado a luta pela melhor interpretação normativa em face do que seja justo, independente do fato de que o peso da balança da justiça possa pesar para o lado de seu constituinte ou para a outra parte. O espírito da justiça deve prevalecer diante da celeuma, sendo, inclusive, uma salvaguarda para o advogado.

Trata-se de característica fundamental da advocacia, o dinamismo de seus preceitos, com o escopo de acompanhar as constantes evoluções nos diversos campos da atividade humana e na percepção de suas nuanças, no sentido de harmonizar os mais diversos interesses. O advogado, tal como o apóstolo São Paulo, passa a ser um vidente social das normas, como forma de enxergar o que o cidadão leigo não vê. Várias interpretações poderiam ser dadas para cada análise normativa, com o intento algumas vezes de sobrepujar a justiça. O empirismo social é submetido, neste caso, à fria letra da lei, sem a análise profícua de sua real incidência ou o que o legislador almejava.

O advogado bem sabe que existe uma relação inversa e complementar entre a clareza, a precisão das normas e o poder de apreciação dos juízes que as devem aplicar. Quanto menos claros os termos de uma norma, maior liberdade concedida aos intérpretes, maior também a flexibilização da norma, adaptável, muitas das vezes, às circunstâncias menos previsíveis.

Enquanto houver lei, há de existir o advogado para interpretá-la, pleiteando a sua justa aplicação. Ele é o profissional que sabe plasmar a vidência da lei em prol de seu cunho social, recorrendo à jurisprudência, aos princípios gerais do direito e ao bom senso.

A exuberância das leis não é maior do que a exuberância das idéias e dos fatos, o que impulsiona o advogado a seguir em busca da melhor interpretação social das leis e, por conseguinte, atingir a função social da profissão. O advogado deve se inspirar na fonte ética da responsabilidade para atuar em diligência de justiça como forma de paz social.

“A letra mata e o espírito vivifica”, este é um valor incontestável no quadro de uma natureza morta, de uma lei fria e sem vida, que sem a inteligível hermenêutica do advogado poderá rechaçar toda forma de justiça social. Em face disso, não podemos esquecer a doutrina do grande mestre Montesquieu, que nos brindou com o ensinamento da importância da interpretação da lei em face de sua incidência social: (2)

“É preciso que o povo tome conhecimento da ação, e que tome conhecimento dela no momento em que ela foi executada; em um tempo em que tudo fala: o ar, o rosto, as paixões, o silêncio, e em que cada palavra condena ou justifica.”

O Espírito das Leis – Montesquieu

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. FGV, 1997.

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 1999.

PERELMAN, Chaïm, Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 1995.

NOTAS

1. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, pág. 28.

2. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, Pág. 437.

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