Maria Luiza Quaresma Tonelli
advogada, licenciada em Letras e em Filosofia pela UFRN, especialista em Filosofia
Hermenêutica é um vocábulo derivado do grego hermeneuein, comumente tida como filosofia da interpretação. Muitos autores associam o termo a Hermes, o deus grego mensageiro, que trazia notícias. Hermes seria o deus, na mitologia grega, capaz de transformar tudo o que a mente humana não compreendesse a fim de que o significado das coisas pudesse ser alcançado. Hermes seria um “deus intérprete”, na medida em que era a entidade sobrenatural dotada de capacidade de traduzir, decifrar o incompreensível.
O termo hermenêutica ingressou na teologia protestante substituindo a expressão latina ars interpretandi (= a arte da interpretação). Como doutrina da arte da interpretação, a hermenêutica se relacionava, na Antigüidade grega, à gramática, à retórica e à dialética e sobretudo com o método alegórico, para permitir a conciliação da tradição (os mitos) com a consciência filosoficamente esclarecida. Mais tarde, a arte da interpretação foi assumida por teólogos judeus, cristãos e islâmicos, além de ser aplicada a interpretação do Corpus iuris canonici na tradição da jurisprudência (1). Isso mostra que a hermenêutica, já entendida como a arte da interpretação, se tornava presente cada vez que a tradição entrava em crise, sobretudo na época da Reforma Protestante.
A hermenêutica é um dos temas polêmicos da filosofia contemporânea, uma vez que tradicionalmente a filosofia se ocupa com a descoberta das essências, entendendo-se aqui essência como verdade, como aquilo que pode ser cognoscível. Hans-Georg Gadamer, em sua obra Verdade e Método, assevera que a hermenêutica não é um método para se chegar à verdade e que o problema hermenêutico não é, por sua vez, um problema de método. Segundo Gadamer a hermenêutica não seria uma metodologia das ciências humanas, mas uma tentativa de compreender as ciências humanas. Em Verdade e Método Gadamer afirma que a compreensão das coisas e a correta interpretação não se restringe à ciência, mas à experiência humana, principalmente no que se refere ao fenômeno da linguagem como experiência humana de mundo. Assim, no que se refere à hermenêutica jurídica, Gadamer procurou descobrir a diferença entre o comportamento do historiador jurídico e do jurista diante de um texto. Seu interesse estava em saber se a diferença entre o interesse dogmático e o interesse histórico se constituía numa diferença unívoca. Conclui que há uma diferença:
“O jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado. O historiador jurídico, pelo contrário, não tem nenhum caso de que partir, mas procura determinar o sentido da lei na medida em que coloca construtivamente a totalidade do âmbito de aplicação da lei diante dos olhos. Somente no conjunto dessas aplicações torna-se concreto o sentido de uma lei.(2).
Para o jurista, segundo Gadamer, a compreensão histórica é um meio para se chegar a um fim. Se o historiador do direito tem que enfrentar culturas jurídicas passadas no seu trabalho de interpretação da lei (sem ter diante de si nenhuma tarefa jurídica, pretendendo apenas averiguar o significado histórico da lei), o juiz, por sua vez, tem que adequar a lei transmitida às necessidades do presente, pois trata-se a aplicação da lei uma tarefa prática. Isso não significa que o juiz em nenhum momento não tenha que assumir a posição de historiador. Pelo contrário, ao interpretar a lei, para concretizá-la, o juiz tem que fazer uma tradução necessária da lei, mesmo que essa tradução seja nos moldes de uma mediação com o presente. Tanto no caso da hermenêutica teológica como na jurídica uma condição que torna possível a compreensão seria, segundo Gadamer, a pertença à tradição. “A pertença do intérprete ao seu texto é como a do ponto de vista na perspectiva que se dá num quadro” (3). Isso significa que para que seja possível uma hermenêutica jurídica os membros de uma comunidade jurídica têm que estar todos vinculados igualmente a essa comunidade. Poder-se-ia afirmar que o mesmo ocorre quando se espera que os membros de uma comunidade moral, para que compartilhem do mesmo ethos, tenham que estar necessariamente vinculados a essa comunidade, não pela lei, mas pelos sentimentos morais, que seriam a expressão desse ethos (modo de ser). Não significa que estarem vinculados às respectivas comunidades, os membros de uma comunidade jurídica e os membros de uma comunidade moral, estejam atrelados a uma dogmática jurídica ou moral. Significa que essa vinculação, ou seja, essa pertença, é o que possibilita uma hermenêutica jurídica no sentido de uma interpretação bem próxima daquilo que se concebe como consenso.
Para Gadamer, a interpretação da lei é simplesmente uma tarefa criativa. A compreensão, todavia, é a mola mestra da interpretação. Como afirma Lenio Luiz Streck, citando Fernandez-Lago, “(…) a hermenêutica jurídica é uma proposta de descrever as condições reais do intérprete e não uma oferta de critérios ou métodos científicos” (4).
Levando-se em conta que a Hermenêutica pode ser definida como a arte da interpretação, deduz-se, obviamente, que hermenêutica é compreensão. A Hermenêutica Jurídica seria então a compreensão que daria o sentido à norma. Isso quer dizer que na norma ou no texto jurídico há sempre um sentido que não está explicitamente demonstrado para que possa ser alcançado de forma essencialista. Poderíamos nos arriscar a dizer que isso se aproxima um pouco da idéia kantiana de fenômeno e coisa-em-si. A norma jurídica seria não o que Kant chamou de noumenon (coisa-em-si) que é incognoscível (5), mas o fenômeno, tendo em vista que a norma é algo que para ser conhecido, no sentido da interpretação, tem que haver, diríamos, uma construção desse conhecimento. Isso significa que o conhecimento da norma passa pela compreensão da mesma, não como um exercício de mera apreensão da dogmática jurídica, mas da interpretação criativa, crítica, onde o sujeito, determinado por sua cultura será capaz de dar conta da interpretação/hermenêutica como processo de compreensão do Direito.
Nesse sentido, podemos dizer que a hermenêutica jurídica, como arte da interpretação jurídica, é um processo de construção e re-construção. A relação sujeito-objeto na interpretação jurídica, portanto, não é uma relação meramente contemplativa, onde a dogmática jurídica se apresenta como verdade absoluta, quase como verdade revelada, mas uma atividade subjetiva, onde o sujeito tem papel ativo, mesmo se considerando que grande parte da interpretação só pode ser realizada a partir de conceitos previamente estabelecidos pela tradição na qual o sujeito está inserido, ou jogado, conforme diria Heidegger (6).
Deste modo, ao interpretar uma norma jurídica, o jurista (sujeito) terá a compreensão desse objeto, desse fenômeno jurídico, mediante um instrumento que irá proporcionar essa compreensão. Tal instrumento é a linguagem. Note-se, entretanto, que a linguagem, como instrumento para a compreensão e interpretação não é um terceiro elemento, um ente à parte nessa relação sujeito-objeto, mas condição de possibilidade de interpretação da norma jurídica.
À guisa de conclusão, pode-se dizer que a concepção da hermenêutica jurídica como interpretação, como processo de construção e re-construção, implica na luta pela criação de condições de possibilidade de um ensino jurídico de qualidade para a formação de uma verdadeira consciência ético-jurídica. É a única possibilidade de realização da função social do Direito.
Notas:
1. Cf. Apel, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I : Filosofia analítica, Semiótica, Hermenêutica, pp. 328-329.
2. Cf. Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, p. 483.
3. Cf. Hans-Georg Gadamer, p. 448.
4. Cf. Lenio Luiz Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 187.
5. Kant, na Crítica da Razão Pura, afirma que só podemos conhecer os fenômenos, a essência, ou coisa-em-si, é incognoscível. Sobre a coisa-em-si só podemos pensar a respeito, jamais conhecê-las.
6. Para Heidegger o pensamento se estrutura na realidade.
Bibliografia Consultada:
Apel, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I. São Paulo: Edições Loyola, 2000
Eco, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997.
Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 1997
Kant, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989
Rorty, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.
Streck, Lenio Luiz. Hemenêutica Jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 1999.