Autores: Alexandre Coutinho da Silveira e Fernando Facury Scaff (*)
Dias atrás, quando comentamos com nosso sócio Jorge Alex Athias, responsável pela área de direito ambiental do escritório, que o Estado do Rio de Janeiro havia instituído a cobrança de ICMS tendo por fato gerador a operação de extração de petróleo, o comentário bem-humorado foi: E quem emitirá a Nota Fiscal? Deus?
Essa frase lembrou-me o Samba da Benção, de Vinícius de Moraes, o qual só acreditaria que existisse mais de uma vida se fosse provado “com certidão passada em cartório do céu, e assinado em baixo: Deus. E com firma reconhecida!” Desculpem os leitores, mas a situação é realmente tragicômica.
Brincadeiras à parte, o assunto é muito sério e possui enormes implicações econômicas, envolvendo não apenas a cobrança de ICMS sobre a área de extração de petróleo, objeto inicial da legislação carioca, mas envolvendo todas as operações relativas à atividade primária da economia. Caso validada esta norma, nada impediria que fosse criada uma incidência de ICMS entre a jazida de minério e sua atividade extrativa. Ou na colheita da soja. Pensem só na imagem: uma colheitadeira, daquelas toda automatizada, que ceifa de um lado e joga o produto debulhado no outro, entre estas duas fases, no meio daquela máquina, surge um aparelho de Emissor de Cupom Fiscal (ECF) para arrecadar o ICMS. A pergunta nem é “onde iremos parar?”, mas “onde chegamos?”
Nos últimos momentos de 2015 o Estado do Rio de Janeiro surpreendeu com a publicação de duas leis tributárias diretamente voltadas à atividade petrolífera. São elas (i) a Lei 7.183, que pretende fazer incidir o ICMS sobre “operação de circulação de petróleo desde os poços de sua extração para a empresa concessionária”[1] — de maneira que os movimentos do petróleo extraído, inclusive sua só extração, tornam-se fatos geradores do tributo; e (ii) a Lei 7.182, que cria a Taxa de Controle, Monitoramento e Fiscalização Ambiental das Atividades de Pesquisa, Lavra, Exploração e Produção de Petróleo e Gás (TFPG), que se pretende uma Taxa para remunerar a atividade estatal de fiscalizar a atividade petrolífera quanto ao cumprimento da legislação ambiental.
Ambas as normas se revelam juridicamente precárias. Queremos, ainda que sinteticamente, apresentar os principais pontos que assim indicam. Concentremo-nos no ICMS, deixando a Taxa para outro artigo.
Para ir direto ao ponto: o ICMS incide sobre a operação de circulação de mercadorias. E na extração do petróleo, e suas movimentações posteriores antes da alienação, não há circulação — ao menos não circulação jurídica. Como bem aponta Carrazza, “[o ICMS] deve ter por hipótese de incidência a operação jurídica que (…) acarrete a circulação da mercadoria, isto é, a transmissão de sua titularidade (…) só pode ser exigido quando comerciante, industrial ou produtor pratica um negócio jurídico que transfere a titularidade de uma mercadoria”, de maneira que “não se pode considerar ocorrido o fato imponível do ICMS”[2] “em momento anterior à ocorrência da operação mercantil”. Por isso mesmo a Súmula 166 do STJ há muito afirma não incidir o tributo na transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.
É o que ocorre na extração mineral e petrolífera. Não há uma operação de circulação jurídica que autorize a exigência do ICMS. Embora as jazidas de petróleo sejam da União, os barris só existirão após extraídos. Não se pode falar que há uma “transmissão do domínio dos barris”.
Como destaca Floriano de Azevedo Marques Neto, “o bem público (jazida) não é alienado ao particular, mas apenas objeto de um direito de exploração que implica na outorga de um uso privativo”, o que “não afeta a propriedade da União sobre os bens imóveis não extraídos”[3].
O particular, portanto, explora a jazida e obtém, originariamente, o domínio do barril de petróleo — por isso mesmo a legislação (9.478/1997) fala emprodução de petróleo (extração de uma jazida), e não em “compra”, “aquisição” ou algo similar. Vale lembrar mesmo que o art. 176, em relação aos minérios, trata da “propriedade do produto da lavra”, ao passo em que os “recursos minerais” (jazidas) são de propriedade da União. Serámercadoria (e não mais recurso mineral) apenas após extraído, produzido.
É relevantíssima a ressalva de Marco Aurélio Greco: ao permitir que o particular explore a jazida, o Estado brasileiro não lhe está transferindo nada. Se ele, ao final, é proprietário daquele barril de petróleo, não o foi por conta de uma operação mercantil negocial; foi, sim, por sua própria exploração, esta que foi permitida pelo Estado brasileiro[4].
E mesmo que assim não fosse, criar uma incidência para o ICMS seria aceitar que a União vende petróleo ao particular, o que notadamente não é verdadeiro. Petróleo não é, para a nação, um bem do comércio. As jazidas estão intrinsecamente ligadas ao interesse nacional, à segurança energética. Não é de se deixar passar em branco o relevantíssimo papel que o domínio sobre os recursos minerais exerce sobre a noção de soberania. O controle sobre as fontes de energia é fundamental ao livre desenvolvimento das nações, evitando dependência tecnológica, impulsionando a produção interna, e atuando também na saúde macroeconômica do país[5]. Assim é que a vinculação dos recursos minerais com a soberania já foi reiteradamente afirmada, com destaque para a Resolução da ONU 1.803/1962 e para a Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, de 1974.
Daí que, observada a carga de interesse público e soberania relacionadas à atividade de produção de petróleo, cabe afastar completamente a hipótese de se tratar de uma operação mercantil, passando a visualizá-la, antes, como uma atividade de caráter público – afinal, para que possa haver a lavra/extração, é necessária expressa, especial e específica autorização do poder público. Não sendo operação mercantil, não há ICMS.
Em síntese: não há operação de circulação de mercadoria porque não háoperação, não há circulação e não há mercadoria. Não pode haver incidência do ICMS. Assim como não incide o imposto quando o sujeito retira o fruto da natureza, nem quando pesca o peixe, nem quando obtém a madeira cortando a árvore. Já imaginaram? Se ainda houvessem laranjeiras, nobairro de laranjeiras na cidade do Rio de Janeiro, o Estado poderia criar uma incidência de ICMS de cada fruta que fosse retirada da árvore. O mesmo vale para outros locais, igualmente belíssimos, como a cidade das mangueiras, Belém do Pará. Aqui em São Paulo não há pé de frutas nas calçadas… pior para o Alckmin, que não pode criar essa incidência.
Cabem ainda três breves observações:
Primeira. A exação trazida pela Lei 7.183 reprisa o que já se havia tentado fazer através da chamada “Lei Noel”, Lei 4.117/2003 (apresentada pelo deputado estadual Noel de Carvalho) que previa a incidência do ICMS sobre “operação de extração de petróleo”, sendo fato gerador a “extração do petróleo, quando a mercadoria passar pelos Pontos de Medição da Produção”, e tendo por base de cálculo “o preço de referência do petróleo”. O tema gerou diversos debates, preponderando claramente a noção de que tal tributação seria inconstitucional. A matéria foi levada ao STF através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.019, que ainda espera julgamento. Há Parecer da Procuradoria-Geral da República pela procedência da ação; assim como parecer do ministro aposentado do STF Carlos Mário da Silva Velloso, no mesmo sentido. Em síntese: o que o Estado do Rio de Janeiro está tentando fazer é o mesmo que era feito anteriormente acerca de guerra fiscal. Revogava-se a lei e estava extinta a ADIn. Porém o STF mudou seu entendimento acerca desse jeitinho jurídico de fazer as coisas, e deve julgar, no mérito, tanto a ADI 3.019, quanto esta nova Lei, contrafação daquela sub judice.
Segunda. Sustenta-se que a incidência de ICMS sobre a exploração de petróleo foi explicitamente debatida na Assembleia Constituinte. Mais: que a própria razão de ser dos royalties (que beneficiam em grande parte o Estado onde está localizada a jazida, seja em seu território direto, seja na projeção estabelecida pelas “linhas geodésicas ortogonais que se estendem ao mar) se daria interfederativamente como uma compensação. Então, a inclusão do §1º do artigo 20 na CF/88 seria justificada pela decisão política de cobrança de ICMS sobre petróleo (e seus derivados) no Estado de destino — e não no Estado de origem (CF, artigos 155, § 2º, X, b). Tal posição foi defendida, especialmente pelo então ministro do STF Nelson Jobim, em pelo menos duas oportunidades: quando do julgamento do MS 24.312;[6] e no julgamento do RE 198.088[7]. De fato, análise das atas do processo constituinte demonstra que ocorreu um “acordo político” no sentido exposto por Jobim[8].
Não se quer aqui sustentar que uma interpretação de cunho tão somente histórico deva preponderar ou se sobrepor a outros métodos hermenêuticos. Longe disso — de fato não acreditamos que assim seja[9]. Mas, em se tratando de elemento presente neste debate, deve ser considerado — afinal, diz-se que a Lei 7.183 estaria a corrigir “resultados danosos” trazidos pela exigência do tributo no destino[10].
Terceira. Vale considerar que a alteração proposta pela Lei, tributando o movimento da jazida até o particular explorador, teria sérios impactos na partilha do ICMS entre Municípios (quota-parte; divisão pelo critério do Valor Adicionado Fiscal – VAF). No presente, os municípios onde se dá a exploração são desproporcionalmente beneficiados por este critério, já que se considera que a “mercadoria” entrou no estabelecimento do particular pelo valor zero, então “agregando” todo o seu preço (diferente do município que sedia uma fábrica, por exemplo, já que seus insumos entram pelo valor de compra, daí que o “agregado” é o valor de venda menos o de compra). Com sensível alteração nas expectativas fiscais dos Municípios, este aspecto do tema deve ser enfrentado.
Enfim, deixemos Deus fora disso. Ele já tem problema demais para resolver. Minério e petróleo só dão uma safra, e no local por Ele estabelecido. Não será demais exigir que Ele ainda emita nota fiscal para quem extrai ou explora petróleo?
Autores: Alexandre Coutinho da Silveira é advogado do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados
Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.