SÃO PAULO — Uma das grandes discussões sobre os rumos da Internet, e da vida virtual em geral, trata de um tema bem antigo do direito, que é a questão da identidade do indivíduo e o como esta tem importância legal no sentido de prova de autoria, seja para determinar direitos, obrigações, responsabilidades.
Historicamente, o ordenamento jurídico tem cumprido um papel de equilibrar as relações sociais, que possuem natureza conflitante em sua essência, uma vez que o direito de um vai até aonde começa o direito de outro. Determinar estes limites éticos e legais em ambientes eletrônicos é o grande desafio do direito digital atual, principalmente considerando que mudamos o modelo de soberania, que deixa de ser de fronteiras físicas para fronteiras informacionais, assim como mudamos o conceito de testemunha, que são cada vez mais máquinas.
O direito muda conforme a sociedade muda, sob pena de se distanciar da realidade, tornar-se obsoleto, ineficaz. E é por isso que o debate de idéias, especialmente de projetos de lei que possam refletir a necessidade de proteção das pessoas e instituições desta nova era, é tão importante.
É o que estamos observando, com a polêmica criada em torno do projeto de lei substitutivo ao PLS 76/2000, PLS 137/2000 e PLC 89/2003, parecer, do senador Eduardo Azeredo, que tem como foco aprimorar diversos aspectos da legislação penal pátria, trazendo a baila novas condutas, até então não tipificadas adequadamente em nosso Código Penal vigente, como a de “criar vírus de computador”, entre outras.
Antes de qualquer avaliação ou critica ao projeto de lei e ao que está sendo proposto, é preciso refletir sobre que bem jurídico deve ser protegido afinal. Ou seja, deve a Internet permanecer anônima, que é o que vem desenhando sua natureza de liberdade até então? Ou o anonimato, como já se demonstrou em outros momentos de nossa evolução como civilização humana, é prejudicial e deve estar dosado e limitado a exceções como denúncia, ou proteção de fonte de imprensa, conforme reza a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso IV, que corretamente garante o direito a liberdade de expressão, mas proíbe o anonimato?
Se devemos proteger as pessoas, de maneira geral, no momento em que um indivíduo é vítima de um ilícito em ambiente eletrônico e não consegue obter uma prova jurídica de autoria do infrator, há insegurança jurídica estabelecida, principalmente porque isso não é uma situação de exceção, mas é a regra que tem sido válida na Internet.
As leis são feitas para dar o norte, estabelecer o bom senso, aquilo que deve ser praticado pela coletividade, mesmo quando restringe direitos ao indivíduo, mas em prol da proteção de um bem maior. Portanto, não se pode confundir a proteção da liberdade, com a garantia de anonimato, que favorece, conseqüentemente, a prática de ilícitos e crimes. Principalmente no Brasil, em que a falta de educação em ética faz com que as pessoas só tenham determinadas regras de conduta se houver lei e punição, e se a última é certa de ocorrer. Ou seja, a sensação de impunidade alimenta o comportamento pouco ético e ilegal que temos observado no mundo virtual, e no real também!
Apresentar uma identificação em determinadas situações não é um direito, é uma obrigação do indivíduo, não apenas no Brasil como em outros ordenamentos jurídicos. Quer seja portar o RG consigo, apresentar um passaporte em situação de fronteira física internacional, portar a carteira de habilitação ao dirigir, ter a certidão de nascimento para atos civis como casamento, entre outros. Se as relações estão migrando para a Internet, então também a necessidade de identidade digital.
Precisamos considerar que tudo tem sua evolução, seu aprimoramento, inclusive a Internet, que começou sendo um ambiente principalmente informacional, de pesquisa e coleta de informações, o que ainda é uma forma de uso bem grande da mesma, veja os buscadores e sua importância. Depois evoluiu para ser um ambiente de relacionamento, através de mecanismos de comunicação, como é o e-mail, o chat, o messenger, o blog, a comunidade, ao mesmo tempo que também evoluiu para um ambiente transacional e de negócios, que vai desde o internet banking à lojas virtuais e diversos serviços que existem on-line, de flores a fotos.
Em paralelo, passou também a ser um ambiente de vítimas fáceis, que acreditam em tudo que está na Internet, que respondem ao e-mail de qualquer um, clicam em qualquer link, passam seus dados de modo indiscriminado. E, por isso, atraiu a mente criminosa, oportunista, golpista, que vai atrás da riqueza, que agora está on-line, já que tudo são dados, do dinheiro à própria identidade.
É por isso que chegamos a este momento tendo que repensar o modelo. Afinal, a Internet pode ser segura? Tecnicamente, o protocolo IP pode dar esta garantia? E o usuário da Internet pode ser realmente identificado, para garantir as relações e obrigações que ele mesmo gera neste ambiente, bem como coibir a prática criminosa?
Sim, tudo isso pode ocorrer, e não é uma discussão entre liberdade total ou burocratização. É uma questão de atualização do próprio direito frente à realidade tecnológica da sociedade. Não é porque os serviços gratuitos da Internet cresceram e estimularam a adesão de usuários vendendo anonimato, que novamente reiteramos que não é liberdade, pois a liberdade de expressão significa responsabilidade de expressão, ou seja, podemos dizer e fazer o que quisermos, navegar com quem quisermos, mas respondemos pelo que fazemos se isso gerar dano a outrem.
É claro que toda regulamentação gera conflitos de interesse. Afinal, se há custos para passar a coletar os dados de identidade dos internautas e guardá-los para fins de prova, então quem paga a conta? Devem ser os provedores, o governo, o internauta? O beneficio gerado é concreto, social e coletivo, e deve ser feito. Agora como fazer?
O projeto de lei ainda não é o ideal, uma vez que deveria determinar etapas evolutivas neste processo, além de acompanhar a tendência européia exigindo inicialmente a padronização dos formulários e a coleta obrigatória de dados capazes de determinar com maior objetividade a identidade e a sua guarda, por no mínimo dois anos. E isso para todas as empresas que, de algum modo, permitam ou tornem disponível o acesso à rede ao usuário, sejam provedores de acesso, de e-mail, de conteúdo, de serviços, de voip, de inclusão digital. A propósito, em São Paulo, as lan houses e cyber cafés já estão obrigadas a regras ainda mais rígidas, com apresentação física de documento e guarda por cinco anos.
A proposta determina e exige que haja coleta de dados verdadeiros, e que isso possa ser atestado, o que em princípio é bem difícil de ser feito, e também caro. Talvez apenas com o uso maciço de certificação digital. Assim como impõe a prática de crime para quem não o cumprir. É preciso chegar a um denominador comum, capaz de ser aplicável, eficaz —que não é o estágio em que estamos, sem regras para guarda de prova eletrônica— nem dar um salto repentino para a monitoração total que pode ser inviável.
Em outros aspectos, há melhorias, mas ainda há lacunas, como no crime de furto, uma vez que se a pessoa fizer “CRTL C, CRTL V” no dado —levar, mas deixar— não estaria subtraindo coisa alheia móvel, já que não há indisponibilidade. Dizer que dados são passíveis de subtração, isso é claro, assim como a energia, mas é preciso afastar a dúvida quando ocorre a situação do “levar, mas deixar”. O mesmo para a situação de criar vírus, uma vez que o uso de terminologia como arquivo malicioso seria mais abrangente.
Podemos dizer que o maior benefício do projeto de lei é estar promovendo o debate de um tema tão importante para o próximo estágio de evolução da Internet, seja ela 2.0, 3.0, ou o que for. Pois não podemos continuar agindo sem ética e sem leis, não importa em que estágio estivermos de humanidade.
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Patricia Peck é advogada especialista em direito digital, sócia do escritório Patrícia Peck Pinheiro Advogados e autora do livro “Direito Digital”, editora Saraiva