As medidas de segurança adotadas pelos Estados Unidos da América (EUA) determinando a identificação de estrangeiros provenientes de alguns Países, entre os quais o Brasil, ferem o princípio da dignidade humana? O que é esse princípio?
As medidas de segurança adotadas pelos EUA têm sua justificativa, segundo notícias, nos recentes ataques terroristas sofridos por aquele País. Entendemos que tais medidas não ferem o princípio da dignidade humana, uma vez que o Estado americano, apenas e tão-somente, está exercendo sua soberania, como podem fazer (e fazem) o Brasil e outros Países, administrando seus aeroportos (portas de entrada de estrangeiros), fiscalizando aqueles que pretendem entrar no País, quer para turismo, trabalho permanente, trabalho temporário, competição esportiva etc.
O princípio da dignidade humana consubstancia-se no respeito ao ser humano quanto à sua liberdade de pensar, vestir-se, locomover-se, ter uma ideologia e um credo religioso ou não ter qualquer convicção filosófica ou espiritual, bem como de manter sua independência para agir dentro dos costumes e padrões morais e éticos que entende que sejam condizentes.
É princípio amplo, abrangendo a própria vida, sob o ponto de vista físico e espiritual. Trata-se de valor constitucional supremo que agrega a unanimidade dos demais direitos e garantias fundamentais do homem (art. 1.º, III, da Constituição Federal). É um sobreprincípio, contemplando a legalidade; a liberdade, em todas as suas formas; a moralidade administrativa etc. Não é obstáculo para o exercício da soberania do Estado, desde que essa soberania seja exercida de acordo com os princípios e regras básicas aceitos pelo mundo civilizado, voltados para a paz, o progresso e o bem-estar da humanidade.
Ora, como outros princípios internacionais são o reconhecimento “da autodeterminação dos povos” e o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”, também colocados em nossa Carta Magna (art. 4.º, III e VIII), tem-se que os Estados Unidos podem agir da forma como agiram.
A fiscalização das fronteiras do Estado, bem como a imposição de regras para entrar no País, estão dentro da competência do Estado, como pessoa jurídica de Direito Internacional Público. Os métodos empregados para inspeção de estrangeiros (identificação digital, fotografia, preenchimento de questionários…), conforme vêm divulgando os órgãos de imprensa, são os tradicionais e não representam ofensa à dignidade humana.
Considerando que o Brasil não registra antecedentes de envolvimento em terrorismo, a que motivo o senhor atribui sua inclusão na lista de Países a terem seus cidadãos identificados pelo Governo americano?
Os EUA não são – ou qualquer outro País, incluindo o Brasil – obrigados a aceitar estrangeiros em seu território. Aceitá-los ou não é decisão da soberania do Estado.
Claro que impor regras para a entrada de não nacionais também é expressão dessa mesma soberania. Poder-se-ia dizer que, agindo assim, o País criaria entraves nos seus relacionamentos internacionais, com eventuais prejuízos políticos e sociais. Por esse mesmo fato, todavia, o Estado arca, logicamente, com as conseqüências da política que emprega em relação a estrangeiros.
Não se duvida ainda (independentemente do caso em análise) de que os interesses do Estado, por vezes, pedem medidas mais duras em relação à imigração ou a todos que transitam em seu território, ainda que temporariamente. É uma questão própria de cada Estado.
Em outras palavras, quando o Estado impõe obstáculos para a livre entrada de estrangeiros, não fere nenhuma regra ou algum princípio internacional, salvo se existir entre um e outro Estado, um tratado internacional ou cláusula convencional regulando a matéria.
Assim, a consideração de que “o Brasil não registra antecedentes de envolvimento em terrorismo” não é suficiente (em termos jurídicos internacionais) para que os EUA se sintam obrigados a desfazer as medidas que tomaram.
Poderíamos dizer que as medidas não são razoáveis, que abalam ou abalariam o bom relacionamento entre Brasil e EUA, nada mais do que isso. É um fato político-administrativo baseado em razões de Estado.
Difícil fazer juízo técnico sobre a atitude norte-americana do nosso ponto de vista injustificável. Os meios de comunicação, entretanto, têm anunciado que os passaports brasileiros são fáceis de ser falsificados, o que é reconhecido por alguns membros do Governo na área federal.
É fato que brasileiros têm sido deportados com documentos adulterados na tentativa de entrar nos EUA (notícia de O Estado de S. Paulo, de 29.1.2004). Há, enfim, uma constatação de que não temos um serviço seguro de identificação, o que poderia ensejar a entrada de terroristas no Brasil e a saída deles do nosso País para outros Estados. Caso isso seja verdade (e há uma ou outra entrevista nesse sentido), constituir-se-ia em motivo para as medidas tomadas pelo Governo americano. Trata-se de mera cogitação, porque não temos qualquer base fática ou jurídica para a resposta.
Particularmente, embora entendamos a legitimidade das medidas governamentais daquele País, consideramos que, em relação ao Brasil, não se revelaram de motivação muito clara, exceção feita às possibilidades mencionadas no parágrafo anterior, não confirmadas oficialmente.
Questiona-se o fato de a decisão do Juiz Federal, Dr. Julier Sebastião da Silva, ter invadido competência exclusiva do Poder Executivo. Pode o Judiciário decidir sobre tal questão?
A decisão judicial não nasceu de uma atitude particular e autônoma do Juiz Federal citado e, enquanto não reformada ou anulada, deve ser cumprida.
Foge, no entanto, à nossa compreensão que tal matéria possa ser estabelecida por sentença. A fiscalização de estrangeiros que chegam ao País (norte-americanos ou não) é de competência do Executivo Federal, no cumprimento da legislação interna. Por certo, pode o Judiciário conhecer e julgar casos específicos, como nas matérias elencadas no art. 109 da Constituição Federal.
Não temos ciência dos exatos fundamentos do pedido da prestação jurisdicional comentada. De qualquer modo, tal decisão repercute interna e externamente, o que faz pensar que essa espécie de decisão seria mais apropriada ao Executivo.
Os caminhos jurídico-processuais podem levar a decisões, embora não ilegais, que repercutem na esfera política e nesse contexto, o julgador deve sopesar os verdadeiros efeitos de sua decisão judicial.
Não se olvide, contudo, de que o Governo brasileiro, ao que parece, acatou-a sem nenhuma discussão no campo processual, transformando-a em atitude político-administrativa, arrimada no acato ao pronunciamento do Magistrado Federal. Nesse passo, entendemos que a questão da competência não mais se põe; o mais concreto e discutível é a atitude governamental.
O chamado “princípio da reciprocidade” foi utilizado como fundamento para o pedido e para a decisão que obrigam a identificação dos cidadãos estadunidenses que entram no Brasil. Em que consiste tal princípio?
O princípio da reciprocidade é invocado como um dos mais antigos no Direito Internacional. Tratados dos séculos XII e XIII dele já se utilizavam para justificar o cumprimento de normas. Tal princípio vem sendo aplicado tanto no caso de respeito às normas internacionais, quanto no de sua violação.
Reciprocidade é medida de igualdade, que tem a finalidade de atingir o equilíbrio, agindo mais numa zona cinzenta entre o fato e o Direito, e possui natureza política.
Fala-se em reciprocidade por identidade ou por equivalência; no primeiro caso, prestações idênticas; no segundo, prestações diferentes, mas de valor comparável.
Outros afirmam a existência de uma reciprocidade real e de uma reciprocidade formal; a primeira, quando o objeto da prestação é individualizado; a segunda, quando o objeto é abstrato e geral.
Tem aspecto positivo quando estimula a concessão de vantagens jurídicas e é negativo quando usado para punir: o aspecto positivo deve prevalecer, caso contrário, teremos o princípio em análise como instrumento de retaliação, de represália.
Por tais motivos, a decisão judicial com base nesse princípio é discutível e causa uma certa insegurança jurídica. Trata-se de uma expressão, para os padrões internos, de “textura aberta” da qual falava o Jurista Genaro Carrió, cujo efetivo conteúdo fica à guisa das interpretações do momento.
No caso concreto, não há dúvida de que americanos e brasileiros estão sujeitos a essa nova realidade. Tais medidas (baseadas no princípio da reciprocidade para o Brasil) não devem passar dos estritos limites de fiscalização válida no exercício da soberania. Somos favoráveis, no entanto, que, mediante negociação entre Governos, sejam revistas.
A decisão do Juiz brasileiro teve repercussão em todo o mundo, o que levou jornalistas a afirmarem que o relacionamento entre Brasil e EUA está cada vez mais difícil. Recentemente, o gesto do comandante americano Dale Robbin Hersh, considerado obsceno pela Polícia Federal, também teve grande impacto, e novamente a imprensa declarou que as relações entre os dois Países enfrentam dificuldades. O Senhor acredita que a aplicação da “reciprocidade” nesse caso ajuda o Brasil a defender seu povo ou terá efeito negativo, com o sofrimento de represálias por parte dos EUA?
São fatos diversos: um, a decisão judicial; outro, o gesto do comandante da aeronave americana. No caso do piloto, a atitude do Governo brasileiro foi pronta, correta e justa (pagamento de multa e determinação de retorno aos EUA), tendo havido pedido de desculpas por parte de representantes diplomáticos (se não me engano).
Não creio que as relações com os EUA fiquem mais difíceis. Há uma diplomacia atuante (de ambos os Países) no sentido de minimizar as eventuais conseqüências políticas indesejáveis. Não é bom para os EUA nem para o Brasil o acirramento dessas questões.
A imprensa tende a dar aos fatos dimensão maior do que realmente possuem. O perigo se encontra nesse aspecto, porque fanáticos, politicamente engajados, existem em todos os lugares.
O Direito Internacional moderno não se compatibiliza com interpretações extremadas e atitudes intempestivas. A aplicação dos princípios internacionais (incluindo o da reciprocidade) ajuda o Brasil nas suas relações internacionais, porque são princípios bons, que devem ser usados politicamente e com intuito de favorecer a criação de benefícios jurídicos recíprocos.
Basta o Governo brasileiro agir com ponderação e razoabilidade nesse episódio e, de certa forma, incentivar ou exigir que os EUA também o façam. A tradição nacional é nesse sentido. A diplomacia brasileira, historicamente, é uma das melhores do mundo e tem sido chamada, desde o tempo do Barão de Rio Branco, para dirimir conflitos. Essa é a nossa vocação.
Não ultrapassando a área jurídica das medidas postas e buscando uma saída futura para a mudança de comportamento político, nada há a temer.
[1] Entrevista publicada no Informativo da Comunidade Jurídica Damásio de Jesus (Newsletter), São Paulo, ano 1, n. 7, 2 fev. 2004.
* Carlos Roberto Husek
Juiz Titular do Trabalho da 2.ª Região, Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP) e do Complexo Jurídico Damásio de Jesus, no qual ministra aulas de Direito e Processo do Trabalho e de Direito Internacional Público e Privado