Igualdade federativa e preferências da União na questão dos portos

Autor: Thiago Cássio D’Ávila Araújo (*)

 

A origem histórica do inciso III do artigo 19 da atual Constituição Federal é, no nosso regime federalista, o artigo 8º da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, de seguinte redação:

“Artigo 8º. É vedado ao governo federal criar, de qualquer modo, distinções e preferências em favor dos portos de uns contra os de outros estados”.

À União não caberia, portanto, que criasse distinções e preferências entre osportos dos estados. O dispositivo inspirava-se na Constituição dos Estados Unidos da América, na Cláusula 6, Seção 9, do Artigo Primeiro:

No Preference shall be given by any Regulation of Commerce or Revenue to the Ports of one State over those of another: nor shall Vessels bound to, or from, one State, be obliged to enter, clear, or pay Duties in another[1] [Nenhuma preferência será concedida por qualquer legislação comercial ou fiscal aos portos de um estado sobre os de outro; nem poderá um navio, procedente de um estado ou destinado a um estado, ser obrigado a aportar ou pagar verbas de trânsito ou alfândega em outro estado][2].

Tem-se, aí, a Port Preference Clause, uma exceção ao poder geral do Congresso americano de legislar sobre comércio, contido na Cláusula 18, da Seção 8, do mesmo Artigo Primeiro da Constituição americana.

Ocorre que a Suprema Corte dos EUA flexibilizou a Port Preference Clauseem vários julgamentos do século XIX, anteriores à promulgação da primeira Constituição brasileira republicana e federativa, entendendo que caberia ao Congresso americano estipular, ele próprio, quando uma obstrução de navegação deveria ser considerada contrária ao ordenamento jurídico, não se configurando tal situação em obras de melhoramento da navegação. Os casos Pennsylvania v. Wheeling & Belmont Bridge Co. (1856); Gilman v. Philadelphia (1865); The Clinton Bridge (1870) e, também, South Carolina v. Georgia (1876), são exemplos do quanto aqui afirmado.

Gilman v. Philadelphia (1865) não é um caso de discussão específica sobre aPort Preference Clause, mas sobre os poderes do Congresso americano de legislar sobre comércio, o que, no entender da Suprema Corte, compreende o controle, para este propósito, e na extensão necessária, de todos os rios navegáveis dos Estados Unidos que sejam interestaduais, o que inclui necessariamente o poder de mantê-los abertos e livres de qualquer obstáculo à navegação colocados pelos estados ou terceiros, cabendo ainda, ao Congresso americano, determinar quando seus plenos poderes devem entrar em atividade, para regulações e sanções que devam ser providenciadas[3].

Entretanto, Gilman v. Philadelphia foi um caso relevante para a fundamentação da decisão da US Supreme Court no caso South Carolina v. Georgia (1876). Além disso, a ideia exposta em Gilman v. Philadelphia já havia sido apresentada, aí sim, com expressa análise da Port Preference Clause pela US Supreme Court, no caso Pennsylvania v. Wheeling & Belmont Bridge Co (1856)[4].

No caso South Carolina v. Georgia (1876), tem-se que o Congresso americano fez previsões orçamentárias de verbas a serem usadas sob administração do ministro da Guerra (secretary of War) para melhoramentos no Porto de Savannah. Ocorre que o rio Savannah (Savannah River), de fronteira entre os estados da Geórgia e Carolina do Sul, deveria ser igualmente livre para navegação dos cidadãos de ambos os estados, por acordo firmado entre os mesmos em 1787.

O estado da Carolina do Sul argumentava que as obstruções à navegação no rio feriam a Port Preference Clause, porque eram atos do Congresso americano interferindo em questão portuária referente a dois Estados.

Assim, em South Carolina v. Georgia, a US Supreme Court afirmou que o Congresso americano tem o poder de fechar um de vários canais em corrente navegável se, em seu entendimento (isto é, do Congresso), a navegação do rio será melhorada. A corte acrescentou ainda que uma obstrução factual não é, sob o Direito, uma obstrução ilegal[5].

Não há dúvidas de que o entendimento mais importante foi fixado pela US Supreme Court em Pennsylvania v. Wheeling & Belmont Bridge Co. (1856), quando afirmado que, mesmo com a Port Preference Clause, “o poder de estabelecer os portos de entrada e desembaraço pelos estados foi abandonado e deixado para o Congresso”[6].

Desse modo, o entendimento já era, no julgado de 1856, o de que ao Congresso americano caberia estabelecer os portos de entrada (“entry”) ou desembaraço (“clearance”). A vedação estaria em que o Congresso americano não poderia direcionar os navios, para que pagassem taxas alfandegárias em um estado, quando se dirigiam ao outro (prejudicando este), ou para que obtivessem a documentação de desembaraço de um estado quando saíssem de outro (prejudicando este). Contudo, estabelecer os portos de entrada e desembaraço, em si, não seria inconstitucional, não violaria a Port Preference Clause, seria atribuição que os estados entregaram ao Congresso na formação da federação.

A proibição da Port Preference Clause não seria a discriminação individual entre portos, mas a discriminação entre estados, isto é, entre os portos de estados e, precisamente, naquele caso, “não meramente a discriminação entre os portos de Pittsburgh e Wheeling, mas a discriminação entre os portos de Virgínia e aqueles da Pensilvânia”[7].

Do artigo 8º da CF/1891 para o inciso I do art. 17 da Constituição de 1934, constata-se que (artigo 17, I) é vedado não apenas à União, mas também aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, a criação de preferências em favor de uns contra outros estados. Evolução da Port Preference Clause. E tal se constata também na Constituição de 1937, alargando-se a vedação de instituição de preferências em favor de uns contra outros municípios (artigo 32, “a”, redação original), mantida pela Constituição de 1946 (artigo 31, I) e, igualmente, pela Constituição de 1967 (artigo 9º, I)[8].

Até aí, do histórico constitucional extrai-se que não se impunha proibição à União de que instituísse preferências ou distinções em seu próprio favor, ou ao menos tal não se apresentava como uma cláusula genérica deste tipo de proibição.

Um (aparente) problema surgiu com a Emenda Constitucional 1, de 17 de outubro de 1969, que editou o novo texto da CF/1967 (por alguns tida como “Constituição de 1969”), com este dispositivo:

“Artigo 9º. À União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios é vedado:

I – criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público interno contra outra”.

O dispositivo é em tudo igual à vedação de criação de “preferências entre si”, do inciso III do artigo 19 da atual Constituição. Por isso, é pertinente ainda hoje o entendimento fixado pelo STF no Recurso Extraordinário 80.045, julgado em 1976, de que é constitucional a criação de preferências do crédito tributário federal sobre o crédito tributário estadual, em relação à massa falida. Estavam em discussão o artigo 157 da Lei 3.807/60 e artigo 25 do DL 66/66 e artigos 186 e 187, parágrafo único, do CTN de 1966, em face do acima citado artigo 9º, I, da CF/69. Prevaleceu o voto divergente do ministro Rodrigues Alckmin, com seguinte trecho, sobre o artigo 9º, I, da CF/69:

“Creio, pois, que o exato sentido da norma é o de impedir que se criem desigualdades entre o Distrito Federal e os estados, oudesigualdades entre municípios, favorecendo a alguns em detrimento de outros, colocados no mesmo plano em face da Constituição.

Dar-lhes, porém, prioridade em concurso creditório, dados os diferentes níveis em que se situam, no sistema constitucional, a União, os Estados e os Municípios, não põe em risco a igualdade na federação, que o texto visa a preservar”. (grifos nossos)

O entendimento do STF, do RE 80.045, foi mantido após a CF/88: “A vedação estabelecida pelo artigo 19, III, da Constituição (correspondente àquele do artigo 9º, I, da EC 1/69) não atinge as preferências estabelecidas por lei em favor da União[9].

Assim, a vedação do inciso III do artigo 19 da CF/88 quanto à criação de “preferências entre si” é de alcance mitigado, no tocante à União, que pode ter preferências estabelecidas para si em face de outros entes federados,inclusive por lei ordinária, quando tais, em vez de atentarem contra a federação, contribuírem para seu fortalecimento e, claro, se harmonizarem com a Constituição Federal.

O mMinistro Leitão de Abreu, no voto do RE 80.045, referiu-se a uma “supremacia da União”. Recentemente, o ministro Teori Zavascki afirmou que “é da natureza do federalismo a supremacia da União sobre os Estados-membros”[10], justificável dizer, porque a União resulta da própria criação da federação e existe em razão desta.

São exemplos desta supremacia a própria preferência do crédito tributário da União, no artigo 187 do CTN, ultimamente com redação da LCP 118/2005, o artigo 29, da Lei 6.830/80 e a Súmula 563 do STF[11]; como também a vedação implícita da desapropriação ascendente, no parágrafo 2º do artigo 2º do DL 3.365/41, de constitucionalidade reconhecida pelo STF já após a CF/88[12].

Recordemos, então, que o sentido do inciso III do artigo 19 da CF/88 não é o de estabelecer uma igualdade absoluta entre a União e demais entes federados, mas proibir que a União estabeleça distinções injustificadas entre os demais entes federados de mesma categoria, indevidamente favorecendoestados contra estados, ou municípios contra municípios, em hipóteses para as quais não haja previsão constitucional específica (como há, por exemplo, para que a União promova a redução de desigualdades regionais, CF, artigos 43, 3º, III e 21, IX) ou que comprometam a federação, o que não é o caso, ainda por exemplo, das preferências de créditos tributários que, além de existirem há décadas, servem à unidade federativa, exatamente por meio das atividades da União, preferências que, ademais, harmonizam-se com o histórico legislativo constitucional referente às derivações brasileiras daPort Preference Clause.

 

 

 

 

Autor: Thiago Cássio D’Ávila Araújo é procurador federal da Advocacia-Geral da União, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).


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