Imaterialidade do bem ambiental. Uma sugestão doutrinária.

Rui Carvalho Piva

RESUMO – Esta sugestão doutrinária no sentido de reconhecer a imaterialidade do bem ambiental significa admitir que o bem ambiental está representado pelo direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e não pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esta é a leitura que o Autor faz do disposto no artigo 225 da Constituição Federal, justificando sua conclusão em duas assertivas: a) a autonomia da relação jurídica em virtude da sua natureza; b) a autonomia dos fundamentos teóricos da responsabilidade em virtude da natureza da relação jurídica. O tema compõe o capítulo 5 da dissertação de mestrado do Autor.

1. Justificativas
A análise do conceito de bem ambiental é um assunto que provoca uma sensação de imperfeição conceitual. A indeterminação de conceitos que ronda o tema da proteção ambiental, notadamente as disposições do artigo 20 da Constituição Federal e dos artigos 2º, inciso I e 3º, inciso V da Lei 6.938/81, sinalizam para a necessidade de um acabamento doutrinário em torno do mesmo. Parece haver uma certa provisoriedade doutrinária a caracterizar o momento atual do conceito de bem ambiental. Quanto à sua natureza jurídica, bem difuso que é, não há dúvidas. O mesmo, no entretanto, não acontece em relação ao seu conceito.
Não temos notícias de que em outros ramos do direito positivo haja a necessidade de convivência entre os conceitos de bens e de recursos, estes significando ou parecendo significar bens de outra natureza capazes auxiliar na proteção daqueles, razão pela qual não parece normal falar-se em bens civis e recursos civis, bens comerciais e recursos comerciais, bens penais e recursos penais e assim por diante.
Esta notável particularidade do Direito Ambiental, em cujo seio haverão de coexistir o bem ambiental e os recursos ambientais , provoca uma urgente necessidade de diferenciar os seus conceitos. É certo que em nosso ordenamento jurídico, mais especificamente na Lei 6.938/81, houve a preocupação de conceituar o que é recurso ambiental e o que é meio ambiente. Não obstante, ao referir-se ao bem de uso comum do povo, a Constituição Federal, em seu artigo 225, não deixou suficientemente claro se o bem ambiental de uso comum do povo é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ou se é o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Aliás, a respeito desta determinação do elemento objetivo do suporte de fato da regra jurídica, Pontes de Miranda já nos esclarecia:
“Quando se está a redigir a regra jurídica e se cogita de determinar o elemento (objetivo) do seu suporte fáctico, ou se alude a objeto (coisa ou objeto não-coisa) que se há de inserir como fato, ou se alude a objeto de direito, isto é, a objeto que já estêve em suporte fáctico de alguma regra jurídica, de modo que a eficácia do fato jurídico, em que se tornou o suporte fáctico, o coloriu (= o fêz objeto de direito).”

Nesta linha de raciocínio, podemos plantar a dúvida, perguntando: Será que o legislador constitucional brasileiro aludiu ao meio ambiente como o objeto a ser inserido como suporte de fato da regra jurídica do artigo 225 ? Ou será que aludiu ao direito ao meio ambiente, um bem jurídico imaterial ?
“Uma vez se admita, e não se pode deixar de reconhecer, que tanto os objetos materiais como os imateriais são suscetíveis de medida de valor, tem-se de aceitar a sua distinção, porque a uns e outros não se pode dispensar tratamento jurídico igual. Nesta ordem de idéias, dizem-se corpóreas as coisas que são objeto de direito, e incorpóreas os direitos que as pessoas podem ter sobre as coisas, sobre os produtos de sua inteligência, ou contra outra pessoa.”

Não estamos sozinhos nesta incerteza. Perceba-a nesta curta frase de José Afonso da Silva:
“O objeto de tutela jurídica não é tanto o meio ambiente considerado nos seus elementos constitutivos.”

Na mesma obra, o ilustre Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, acrescenta:
“A Constituição, no art. 225, declara que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Veja-se que o objeto do direito de todos não é o meio ambiente em si, não é qualquer meio ambiente. O que é objeto do direito é o meio ambiente qualificado. O direito que todos temos é à qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico do meio ambiente. Essa qualidade é que se converteu num bem jurídico. A isso é que a Constituição define como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.” (o destaque em negrito é nosso).

Em sentido contrário, entendendo que o meio ambiente é o bem jurídico protegido, Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues:
“É cediço que a palavra direito possui várias acepções. Definí-las é problema da epistemologia do direito. Neste sentido, pode ser vislumbrado e entendido como norma, faculdade, justo, ciência e fato social. Dependendo da situação que se encontre e do contexto que se insira, poderá culminar com um ou mais significados. Assim, com relação ao art. 225 da CF, podemos dizer que a palavra ali empregada não teve o condão de referir-se ao seu aspecto de justiça., mas ao revés, foi além, no sentido de considerar o objeto ali compreendido (meio ambiente) como um bem jurídico que a todos pertence, isto é, permitindo que independentemente de quem quer seja, possuirá o direito de ter acesso e usufruir deste bem. Entretanto, este direito é ínsito a própria existência do ser, ele não está apto a recusá-lo, até porque não seria possível fazê-lo, dada a sua indivisibilidade. Todavia, queremos colocar que ao dizer que o meio ambiente é (uma afirmação peremptória) direito de todos, significa que como tal este bem jurídico deve ser tratado. Assim por ordem da própria Constituição, elevando-o a condição de um Direito de todos, temos que, em decorrência do princípio constitucional do direito de ação, previsto no art. 5º, XXXV, a todos pertence o direito de buscar no judiciário a proteção deste Direito contra lesão ou ameaça.”

Não obstante, neste ambiente de pesquisas e reflexões, pensamos, pelos motivos que serão adiante expostos, que a opção pelo reconhecimento do direito ao meio ambiente como sendo o objeto do suporte fático da regra jurídica do artigo 225 da Constituição Federal pode representar uma sugestão doutrinária capaz de contribuir para a evolução da boa aplicação da norma ambiental.
Na verdade, foi Tulio Rosembuj, citado pelos Professores Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues com o propósito de reafirmar a distinção entre bem público e bem ambiental (difuso), quem despertou esta nossa idéia de considerar o direito ao meio ambiente como sendo o bem ambiental e, consequentemente, de reconhecer a sua imaterialidade. Confira:
“Os bens ambientais são aqueles citados em primeiro lugar, que têm por finalidade dominante a conservação. São bens imateriais públicos (melhor dizendo) coletivos.”

O incentivo a novas reflexões em torno de um tema atraente e de fundamental importância para a vida e a qualidade da vida das pessoas como é o bem ambiental é uma tarefa da qual não nos desvencilhamos com facilidade. A dificuldade empolga. É assim que também acontece com as coisas boas da vida.
Neste contexto, as detalhadas informações e os comentários sempre vigorosos do Professor Celso Fiorillo a respeito do tema em sua Tese de Livre-Docência em Direito Ambiental representam novas fontes para reflexões. Confira este trecho:
“Já desenvolvemos em estudo anterior raciocínio adaptado ao tema mas sentimos a necessidade, particularmente no contexto do presente trabalho e tendo em vista a enorme contribuição dada pela doutrina italiana no campo doutrinário em face da análise dos direitos metaindividuais, de trazer à colação as importantes lições de CARLO MALINCONICO vinculadas aos bens ambientais desenvolvidas na clássica obra ‘I BENI AMBIENTALI’ na medida em que o autor italiano destaca importante contribuição teórica no sentido de aprofundar o tema dos bens ambientais. Explica Malinconico que a noção tradicional de bem ambiental estaria disposta na lei italiana nº 1497 de 29 de junho de 1939 que delimita o campo de aplicação da noção de bem ambiental a um certo tipo de bem que se distingue muito mais do que em razão das próprias características físicas mas em razão de uma valoração técnico-discricionária de caráter prevalentemente estético ou cultural.”
É a partir desta valoração e, segundo entendemos, a partir das indispensáveis coesão e unidade do sistema jurídico que o conceito do ambiente em seu perfil jurídico apresenta dificuldades, fato este que leva alguns autores italianos a negarem a existência de um conceito jurídico de meio ambiente, posição esta que, de qualquer forma, não faz sentido no direito brasileiro, pois dispomos deste conceito em expressa disposição legal, mais especificamente no inciso I do artigo 3º da Lei 6.938/81, embora este fato não signifique ausência de dificuldades em torno do tema.
Prosseguindo na exposição destes intrigantes momentos da evolução doutrinária do bem ambiental na Itália, o Professor Fiorillo, além de detalhados comentários a respeito de cada aspecto desta mencionada evolução, faz demoradas e justificadas considerações relativas às teorias expostas por Malinconico no sentido de reconhecer ou não no meio ambiente um bem jurídico autônomo em relação aos componentes isolados do ecossistema, concluindo:
“Vimos, através da importante contribuição da doutrina italiana e principalmente em face da análise de Carlo Malinconico a dificuldade de se estabelecer um critério unívoco a respeito do bem ambiental particularmente em decorrência da existência de várias teorias do ambiente como bem jurídico unitário (Teoria da Especificação do elemento unificador no direito subjetivo individual, Teoria do Ambiente como objeto unitário de interesses difusos, Teoria do Ambiente como objeto unitário de planejamento urbano, Teoria do Ambiente como bem público (e portanto do erário) na jurisprudência da Corte de Contas italiana e a Tese da Uniformidade do meio ambiente no que tange ao dano ambiental e teor do art. 18 da Lei italiana nº 349 de 08-07-1986).

Veja a referência feita pelo Professor Celso Fiorillo à última das teorias acima referidas:
“Com a entrada em vigor da Lei nº 349/86, instituída pelo Ministério do Ambiente Italiano, parte da doutrina peninsular – depois de atenta reflexão acerca dos precedentes doutrinários e jurisprudenciais em matéria ambiental – especificou, no seu artigo 18, a norma reconhecedora do valor unificador do meio como bem imaterial. Foi particularmente observado que os pressupostos de tal configuração como bem jurídico autônomo são: a) subsistência de uma disciplina do meio ambiente autônoma e distinta em relação ao regime jurídico dos bens, privados ou públicos, e das res communes omnium que o compõem; b) título jurídico autônomo da proteção do meio ambiente em relação à proteção dos seus componentes; c) a funcionalidade dessa específica disciplina em benefício da coletividade, com o consequente limite ao exercício dos direitos dominiais ou da atividade privada e pública. A norma que contém os necessários requisitos foi reconhecida no artigo 18 da lei instituída pelo Ministério Italiano que, na ótica da reparação do dano, considera como objeto da própria proteção o ambiente globalmente considerado e como sujeito da pretensão indenizatória o Estado: respectivamente objeto e sujeito, diversos daqueles relevantes na tutela dos componentes do ambiente individualmente considerados.”

Ao Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo não parece ser possível concordar com esta tese de importantes doutrinadores italianos e com a decisão da Corte Constitucional italiana que reconheceu (sentença 641 de 30/12/87) no ambiente um bem imaterial unitário constituído de vários componentes, cada um deles capaz de representar objeto de tutela separada. Em meio a respeitáveis argumentos que precisam ser conhecidos por quem quer que pretenda analisar a evolução conceitual do bem ambiental, o ilustre Diretor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo arremata:
“Com tais observações não se pretende contestar a utilidade de uma consideração unitária do ambiente, inclusive sob o perfil jurídico, mas unicamente sublinhar a diversidade conceitual dos fenômenos. Se sobre tal perspectiva de fundo houver acordo, pode-se efetivamente concluir que a questão do caráter unitário do ‘bem’ ambiente arrisca de se tornar mera exercitação dialética.”

Aqui no Brasil, estas pendências doutrinárias devem ser tratadas a partir da norma constitucional do artigo 225 da nossa Constituição Federal, que criou um bem ambiental informado por dois aspectos básicos: ser um bem essencial à sadia qualidade de vida e ser um bem de uso comum de todos.
O que são bens essenciais à sadia qualidade de vida ?
Vamos deixar que o mesmo Professor Fiorillo nos diga:
“A resposta está nos próprios fundamentos da República Federativa do Brasil, enquanto Estado democrático de direito: são os bens fundamentais à garantia da dignidade humana. Referidos bens, por via de consequência, encontram correlação com os direitos fundamentais da pessoa humana apontados no art. 6º da Constituição Federal: o direito à educação, o direito à saúde, o direito ao trabalho, o direito ao lazer, o direito à segurança, o direito à previdência social, o direito à proteção à maternidade, o direito à proteção à infância e mesmo o direito à assistência em face dos desamparados, todos eles já comentados na presente obra.”

E o bem de uso comum ? O que é isto ?
Para elaborar esta resposta, que é da maior importância na admissão da imaterialidade do bem ambiental, vamos buscar na memória as aulas maravilhosas do Professor Goffredo Telles Junior e, na doutrina, o seus escritos de profundo conteúdo.
Corria o ano de 1963. Nas salas de aulas do Primeiro Ano do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ali no Largo de São Francisco, o Professor Goffredo, introduzindo-nos no estudo do direito, transmitia privilegiadas informações a respeito da ordem, muitas delas nascidas da sua erudição, certamente preparando-nos para uma compreensão confortável do significado da ordem jurídica. Falava ele de um local das nossas casas no qual a disposição da mesa e de sua toalha, das cadeiras, dos pratos, dos talheres, dos copos e de outros utensílios permitia ali identificar uma sala de jantar. Um local em ordem.
Em seu O direito quantico, o Professor Goffredo esclarece aquilo que já havia esclarecido em suas aulas:
“A disposição conveniente , que é a disposição em razão de um fim, relaciona, conjuga, liga seres multiplos e diversos, e, portanto, faz, desses seres, partes de um só todo , ou seja, partes de uma unidade. Eis porque podemos também definir a ordem: unidade do múltiplo.”

Na seqüência, Goffredo afirma que a ordem tem uma razão de ser e esta razão de ser sempre será a causa final para cuja consecução os seres, os elementos múltiplos e diversos, formam uma unidade. A ordem tem matéria e forma. A matéria é constituída de elementos distintos, razão pela qual Santo Thomaz de Aquino, lembrado pelo Mestre das Arcadas, ensinava que “não há ordem sem distinção”. A forma da ordem pressupõe uma disposição dos seus elementos, cada qual ocupando o seu lugar e passando a fazer parte de um todo. E conclui: “… a ordem implica multiplicidade e unidade.”
Estas informações a respeito da ordem levam-nos, obrigatoriamente, a identificar aspectos importantes e indispensáveis que rondam a melhor compreensão que se possa ter da ordem jurídica, tais como fontes jurídicas materiais e formais e sistema jurídico.
E o que é que todas estas referências ao Professor Goffredo Telles Junior e aos seus ensinamentos em torno da ordem têm a ver com a nossa intenção última de analisar esta formidável característica do bem ambiental de ser um bem de uso comum de todos, no contexto desta sugestão doutrinária de reconhecer no bem ambiental um bem imaterial ?
Neste ponto, houve a necessidade de se prevalecer da memória do Doutor Marcio Cammarosano em relação às lições do Professor Goffredo. Estávamos nós almoçando na cidade de Tupã, isto no dia 30 de abril de 1999, onde realizava-se um Encontro Regional de Advogados do Estado de São Paulo. Na parte da manhã, havia ocorrido o pronunciamento do advogado Mario Sérgio Duarte Garcia, a respeito das prerrogativas profissionais do advogados e havia ocorrido o nosso pronunciamento, a respeito da implantação, por nós coordenada, de mais de vinte unidades da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP no interior do Estado. Para o período da tarde, além de outros temas, estava previsto um pronunciamento do Presidente da Comissão do Meio Ambiente da OAB paulista, o referido Doutor Marcio Cammarosano, que sentou-se ao nosso lado durante o almoço. Após usufruir de alegres momentos que o bom humor e a presença de espírito do Marcio sempre proporcionam, perguntamos o que lhe parecia esta idéia de uma sugestão doutrinária que considerasse o bem ambiental como sendo um bem imaterial, um direito ?
Com o cuidado próprio dos estudiosos, com a rapidez dos conhecedores e com a memória dos interessados, a resposta veio pronta. Disse o ilustre Presidente da Comissão do Meio Ambiente da OAB de São Paulo que aquele não era um assunto da sua especialidade, mas que o mesmo lhe trazia à memória uma aula na qual o Professor Goffredo disse que o mais efetivo, o mais significativo e o mais verdadeiro bem de uso comum é a ordem jurídica. É o direito.
Um bem imaterial, certamente.
Se assim for, admitida esta sua imaterialidade, teremos:
Bem ambiental é um valor difuso e imaterial, que serve de objeto mediato a relações jurídicas de natureza ambiental.
Ao propor o conceito de bem ambiental acima, reconhecendo a sua natureza jurídica difusa, propusemos, como foi longamente analisado acima, o reconhecimento de uma natureza exclusiva capaz de identificá-lo. A imaterialidade. Isto faz com que sejamos obrigados a afastar qualquer tipo de bem material da discussão em torno da identificação do bem ambiental. Assim, a questão da natureza pública, privada ou difusa dos lagos, dos rios e outras correntes de água, das ilhas fronteiriças, das praias marítimas, dos recursos naturais, do mar territorial, dos potenciais de energia hidráulica, das florestas, dos animais e assim por diante, tendo presente que estamos exemplificando bens materiais, esta questão, como dizíamos, deixa de interferir na identificação do bem ambiental. O debate não prospera porque a imaterialidade do bem ambiental impede que o identifiquemos em coisas materiais.
Vamos melhorar a argumentação.
Por mais refletidamente e quanto mais procedemos à leitura do disposto no artigo 225 da Constituição Federal, mais lemos o seguinte: todos nós temos direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Como é um direito, é alguma coisa imaterial, incorpórea. É sobre ele, sobre este direito, que incide o vínculo entre pessoas que caracteriza a relação jurídica de natureza ambiental. É este direito que se transforma no objeto mediato desta relação jurídica, para satisfazer mediatamente uma nossa necessidade. Sabemos que todo direito refere-se a interesses e todos os interesses referem-se a bens, bens estes que podem satisfazer as nossas necessidades imediatamente ou só mediatamente, mediante uma seqüência de fenômenos. São direitos sobre direitos.
Ao admitirmos a imaterialidade do bem ambiental, estamos distinguindo o seu conceito do conceito de meio ambiente e do conceito de recursos ambientais. Estamos considerando o direito à qualidade do meio ambiente como o bem ambiental e não o meio ambiente em si ou os recursos capazes de proporcionar-lhe esta qualidade.
Pensamos tratar-se de uma distinção salutar neste momento em que devem ser bem-vindas, para os estudiosos do Direito Ambiental, reflexões tendentes a nele reconhecer particularidades técnicas que correspondam às suas particulares finalidades sociais.
Quando nos referimos a particularidades técnicas, estamos fazendo referência a particularidades dos processos técnicos tendentes à correta aplicação da lei, assunto afeto à técnica jurídica, uma das três divisões do estudo do direito, juntamente com a heurística e com a morfologia. Um destes processos técnicos é a categoria jurídica, aquele quadro onde se agrupam, por afinidade, os elementos da vida jurídica.
Tendo em conta que a relação jurídica é a categoria básica do direito, vamos ver como é que a utilização dos seus elementos podem nos ajudar neste propósito de sugerir uma visão imaterial para o bem ambiental difuso.

2. A autonomia da relação jurídica em virtude da sua natureza
Com a intenção deliberada de envolver o leitor na aura esclarecedora que a relação jurídica proporciona a quem quer que queira entender o direito e a aplicação das suas normas, vamos refletir um pouco.
Para criar uma imagem facilitadora da compreensão e da importância da relação jurídica, poderíamos invocar a idéia de um quadro negro em uma sala de aula. Ele representaria o ordenamento jurídico como um todo. Suas previsões normativas, suas expectativas, propósitos, anseios e tudo o mais que possa beneficiar as pessoas e proteger os bens que representam os seu interesses. A partir do momento em que um fato valorado concretiza uma das suas previsões, um fato denominado jurídico, surge a relação jurídica. Imagine-a como um espaço iluminado no centro do quadro negro. Um retângulo, um quadrado, um triângulo, um círculo, ou o quer que seja. Um espaço iluminado e visível, chamando a atenção. É aí, nestes limites, que se realiza o direito enquanto previsão concretizada. Tudo o mais permanecerá negro. Hipóteses previstas, imagens turvas do conhecimento do direito positivo à espera da concretização. Á espera da luz. Ao palco iluminado da relação jurídica só têm acesso aqueles interessados na previsão normativa concretizada. Na sua feição coletiva, pública ou privada, trata-se de um local reservado para pessoas determinadas, ou não, que ali comparecem acompanhadas de seus bens e de suas obrigações. Ali, realiza-se o direito. Ali, identificam-se os sujeitos ativo e passivo e os objetos imediato e mediato.
Perceba que é um local privativo.
No espaço reservado para o sujeito ativo de uma relação que se instala em decorrência da concretização da norma constante do artigo 240 do Código Penal, o crime de adultério, nunca estará a mulher do vizinho, um marido fiel. Quem estará ali é a mulher do marido adúltero. Ou o marido da mulher adúltera, outra hipótese possível. Na posição de sujeito passivo, nunca estará o padre da igreja católica, a quem não é permitido o casamento e a quem, por via de conseqüência, não se outorga a condição de cônjuge. Como objeto imediato de uma tal relação jurídica, a prestação que se impõe ao sujeito passivo, jamais poderemos identificar, por exemplo, uma obrigação de entregar coisa certa, porque a obrigação imposta aos cônjuges pela norma penal do artigo 240 é o dever de fidelidade. Finalmente, como objeto mediato desta mesma relação jurídica, não poderemos considerar um bem de nossa propriedade, um relógio, por exemplo. Menos ainda o direito de todos a um meio ambiente qualificado, porque o bem jurídico protegido por esta mesma norma é um outro bem imaterial, o direito à fidelidade imposta pelo casamento em defesa da família.
Por que é que em uma tal relação jurídica não são aceitos, como seus elementos, sujeitos de direitos estranhos às previsões normativas do artigo 240 do Código Penal e objetos de direito estranhos às mesmas previsões ?
Isto acontece porque esta relação jurídica decorre de um fato jurídico que concretiza uma norma de natureza penal, natureza esta que se lhe incorpora, bem como a todas as outras relações decorrentes da concretização positivamente valorada de normas de natureza penal, razão pela qual podemos conferir-lhes a denominação relações jurídicas de natureza penal.
São relações jurídicas que vamos considerar autônomas, distintas, pela escolha que o legislador, ao elaborar as regras jurídicas de uma determinada natureza, faz dos termos ali previstos e dos objetos ali determinados como sendo capazes de servirem de suporte fático de sua incidência.
É da maior importância atentarmos para esta colocação, na medida em que ela permite determinarmos o lugar das diferentes relações jurídicas no sistema de direito, conhecermos com mais propriedade o ramo do direito a que elas pertencem e, como conseqüência, aprimorarmos a operação do direito no sentido de bem aplicar as normas jurídicas.
Sem explicitar um tal raciocínio, mas sinalizando em sua direção, veja o que escreveu Pontes de Miranda:
“O conjunto de regras jurídicas sôbre determinada relação jurídica diz-se instituição jurídica. A apresentação esquemática da instituição, em torno da relação jurídica, dá-lhe o perfil e ao mesmo tempo serve à comparação das instituições, de que se extraem conhecimentos sôbre o ramo de direito a que pertencem.”

Acontece que é comum um mesmo fato jurídico dar origem a mais de uma relação jurídica. Isto é verdade, mesmo porque as regras jurídicas, criadas para dar proteção a interesses das pessoas vinculados a bens, são criadas a partir da visão dos diversos ramos do direito, para atender interesses que ora são privados, ora são públicos e ora são coletivos, aí incluídos os difusos, de especial interesse neste trabalho. De qualquer forma, respeitada esta divisão morfológica do direito positivo, é possível dizer que um mesmo fato jurídico pode dar origem a relações jurídicas de distintas naturezas jurídicas. Podemos dizer também que fatos jurídicos decorrentes de atividades ou condutas de uma mesma pessoa ou de pessoas atuando em torno de interesses comuns podem dar origem a relações jurídicas das mais diversas naturezas jurídicas.
Veja um exemplo disto.
João e Antonio constituíram uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada, cujo objetivo é comercializar peças e componentes de equipamentos mecânicos e prestar serviços técnicos de construção, manutenção e operação de usinas de compostagem de lixo. No contrato de constituição da sociedade, ficaram estabelecidos os diversos direitos e obrigações dos sócios, de acordo com a prática corrente neste tipo de contrato. Levaram o mencionado contrato para registro na Junta Comercial do Estado sede, São Paulo, e inscreveram a empresa no cadastro geral dos contribuintes do Ministério da Fazenda, no cadastro estadual dos contribuintes do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços e no cadastro municipal dos contribuintes do imposto sobre serviço de qualquer natureza. Registrado o contrato na Junta Comercial, nasceu e adquiriu personalidade jurídica uma pessoa jurídica de direito privado, nos precisos termos do disposto nos artigos 16 e 18 do Código Civil Brasileiro. Submeteram-se às demais exigências da legislação administrativa, dando cumprimento às mesmas.
Utilizando parte do capital integralizado, a empresa constituída por João e Antonio adquiriu um terreno urbano, contratou uma empresa construtora do ramo da engenharia civil para elaborar o projeto e administrar a construção de um prédio para servir de sede da empresa, adquiriu diretamente os materiais de construção e concluiu a construção. Na seqüência, a empresa contratou empregados, adquiriu peças e componentes de equipamentos mecânicos de usinas de compostagem de lixo, passou a comercializá-los e a prestar serviços de manutenção em diversas destas usinas, administradas por também diversas Prefeituras Municipais.
A empresa constituída pelo João e pelo Antonio progrediu, gerou impostos, recolheu-os aos cofres públicos, obteve resultados e aplicou-os no próprio negócio.
As atividades da empresa prosseguiram e, finalmente, ela venceu uma concorrência pública aberta por um Município para construção de uma usina de compostagem de lixo urbano e exploração dos serviços públicos municipais de coleta, transporte e processamento do mesmo lixo, através da técnica da compostagem, em regime de concessão, por um prazo de 25 anos.
Dos fatos acima descritos, podemos inferir que o João, o Antonio e a empresa por eles constituída envolveram-se em diversas relações jurídicas, ou seja, praticaram atos de vontade, espécies do gênero fato jurídico humano voluntário, que os vincularam a efeitos jurídicos próprios de cada um dos atos praticados, efeitos estes prévia e abstratamente previstos em norma.
Pois bem, o João, o Antonio e a empresa constituída são sujeitos de direito. Um direito que, sabemos, deve estar previsto em norma e que, sempre e sempre, sem exceções, tutela um interesse. Quando conseguimos, através daquele exercício intelectual representado pela utilização dos processos técnicos indispensáveis para realizar o direito, determinar a natureza do interesse tutelado pela norma, estaremos determinando a natureza da relação jurídica.
O que fizeram João e Antonio quando contrataram a constituição da empresa ?
Estabeleceram uma relação jurídica da qual resultaram direitos e obrigações recíprocos. Tais direitos e tais obrigações, não há dificuldades para a identificação, são de ordem privada e são concernentes ao João, ao Antonio, aos seus bens e às suas relações.
Qual é a norma que tutela esses interesses ?
É o Código Civil, tanto na sua parte geral quanto na sua parte especial. Por exemplo: artigos 1º , 2º , 16, 17, 18, 35, 82, 1.363, 1.375, 1.395.
Assim sendo, podemos dizer que a norma, neste caso específico, tutela interesses de natureza privada e que, consequentemente, a relação jurídica que vinculou o João e o Antonio também é de natureza privada. Estreitando a classificação, uma relação jurídica de natureza civil.
Aparentemente, as normas civis que validam a relação jurídica de natureza privada estabelecida entre João e Antonio não conflitam com as normas dos outros subsistemas jurídicos de natureza infraconstitucional e, além disto, encontram amparo em princípios, direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, em direitos sociais e em disposições legais de ordem genérica previstos na Constituição Federal. A livre iniciativa pretendida com a constituição da empresa representa um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º , inciso IV e artigo 170), a propriedade é um dos direitos fundamentais (artigo 5º e inciso XXII) e a liberdade de livre associação, no mais amplo dos seus sentidos, é plena (artigo 5º , inciso XVII).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, na trajetória das relações jurídicas decorrentes de atos praticados pela empresa, podemos identificar relações de natureza consumerista, disciplinadas pelo Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (contratação da construtora, aquisição de material de construção, prestação dos seus próprios serviços, comercialização de peças de reposição), de natureza trabalhista, disciplinadas pela Consolidação das Leis do Trabalho (contratação de empregados), de natureza tributária, disciplinadas pelo Código Tributário (geração dos impostos decorrentes das suas atividades), de natureza administrativa, disciplinadas pela legislação esparsa correspondente (registro da empresa na Junta Comercial, contratação de serviços e obras junto às Prefeituras) e, agora objeto mais próximo do presente trabalho, podemos identificar relações jurídicas de natureza ambiental, assim qualificadas em decorrência da natureza difusa e ambiental dos interesses tutelados pelas normas respectivas.
Assim acontece, por exemplo, quando a empresa passa a prestar serviços de manutenção em usinas de compostagem de lixo, a fornecer peças de reposição para os equipamentos das mesmas, a construir e operar a usina de compostagem de lixo urbano e a coletar e transportar o mesmo lixo. Em todos estes casos, é possível dizer que a empresa poderia ser o sujeito passivo de eventuais relações jurídicas em cuja posição ativa, de sujeito ativo, estariam os detentores do poder que emana do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, vale dizer, estariam todos, estaria o povo.
O objeto imediato destas relações seria a obrigação que decorre do respeito ao direito que todos têm a um meio ambiente equilibrado, obrigação esta imposta a todos e, no caso específico do exemplo de que se trata, imposta à empresa, que não poderá, por exemplo, nos termos genéricos da norma constitucional, produzir, comercializar e empregar técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (Constituição Federal, artigo 225, § 1º , inciso V). O objeto mediato, por sua vez, seria direito ao meio ambiente equilibrado, o bem jurídico imaterial de uso comum de todos e essencial à sadia qualidade de vida.
Como se vê, podemos investigar cada caso concreto e, com o auxílio de processos técnicos, conceitos e categorias, por exemplo, podemos identificar a natureza da relação jurídica, que é, como dito, a categoria básica do direito. Acontece que nem sempre ou quase nunca os fatos jurídicos desencadeiam o estabelecimento de relações jurídicas tão pedagogicamente separadas e qualificadas por suas naturezas como aqui foi exposto. O mesmo acontecimento (fato jurídico em sentido amplo) pode desencadear relações jurídicas das mais diversas naturezas e suscitar impasses quanto à norma a ser aplicada.
É neste momento que, talvez enfadonha mas necessariamente, repetimos que a operação do direito com especial destaque para a relação jurídica se faz imprescindível.
Considerar a autonomia das relações jurídicas também.
E, neste ponto, a distinção entre bem ambiental e recursos ambientais, como foi proposta, pode representar um pressuposto indispensável para que esta consideração se efetive.
Numa tal linha de raciocínio, a da autonomia, um bem jurídico de natureza privada não pode integrar uma relação jurídica de natureza ambiental, difusa. Pelo menos, na condição de bem jurídico ambiental, de objeto mediato desta relação jurídica. Da mesma forma, o bem de natureza ambiental não pode integrar uma relação jurídica de natureza privada.
Vejamos o que acontece com a floresta, por exemplo. A boa doutrina jurídica aqui no Brasil afirma que a sua natureza, por força do disposto no artigo 1º da Lei 4.771/65, é a de um bem de interesse comum. Logo, é bem ambiental. Não obstante, é a mesma Lei que estabelece:
Artigo 9º – “As florestas de propriedade particular, enquanto indivisas com outras, sujeitas a regime especial, ficam subordinadas às disposições que vigorarem para estas.” (o destaque em negrito é nosso).
Seria possível entender que o legislador quis dizer que a sujeição a regime especial imposta pelo dispositivo em questão refere-se “às florestas, bens ambientais difusos, situadas em propriedade particular”. Mas, uma tal interpretação continuaria a esbarrar em outras disposições legais que tratam do assunto e que se referem expressamente a florestas de propriedade particular e pública, tais como os artigos 6º, 16º e 19º, da mesma Lei. O § 2º do artigo 3º, por seu vez, refere-se a florestas que integram o patrimônio indígena.
Com o advento da Lei 6.938/81, as florestas e demais vegetações de preservação permanente foram transformadas em estações ecológicas e em reservas ecológicas. Surge o Decreto 89.336/84 e com ele um esclarecimento: as estações ecológicas só podem ser criadas em propriedades públicas e as reservas ecológicas em propriedades particulares ou públicas. No § 2º do artigo 1º, ficou estabelecido: “As Reservas Ecológicas serão públicas ou particulares, de acordo com a sua situação dominial.”
Toda a legislação infraconstitucional que se segue permanece fazendo referências à natureza pública ou privada das estações, reservas e áreas de proteção ambiental.
A propósito, quando nos referimos às estações e às reservas ecológicas como sendo espaços ambientais especialmente protegidos, devemos ressaltar uma observação de fundamental importância, que diz respeito a uma noção geral de direito indispensável para as reflexões em torno da questão ambiental. Diz o Professor Santoro-Passarelli, nesta observação a que nos referimos:
“O espaço não é objeto, mas simples meio em que se encontra o objeto do direito, meio necessário para a existência e exercício deste; meio, que se é mais evidente na propriedade imóvel, é na realidade necessário em qualquer relação jurídica.”

Sendo assim, a floresta não poderia integrar as relações jurídicas de natureza ambiental, na condição de seu objeto mediato, porque este lugar está reservado para o bem jurídico de natureza ambiental, que é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Deve, como já dissemos, ser considerada como um fator de preservação da qualidade ambiental e, nesta condição, representar um recurso ambiental capaz de assegurar a preservação do direito à qualidade do meio ambiente, este sim, o bem jurídico difuso e imaterial, objeto mediato das relações jurídicas desta natureza.
Por todas estas razões, estabelecer a diferença entre bem ambiental e recurso ambiental, admitindo a autonomia da relação jurídica, pode representar uma evolução no sentido da boa aplicação da norma ambiental.

3. A autonomia dos fundamentos teóricos da responsabilidade em virtude da natureza da relação jurídica
Este é o outro aspecto que nos parece muito importante para justificar esta visão imaterial do bem ambiental.
Vamos analisar o seguinte acontecimento:
O SENHOR ELPÍDIO LOURENÇO MARTINS, VIGIA DA EMPRESA SGS DO BRASIL S.A., ENTROU EM CONTATO COM UMA PASTILHA DOTADA DE RADIOATIVIDADE, QUE FOI COLOCADA NA GARAGEM DA EMPRESA APÓS A SUA UTILIZAÇÃO, E SOFREU DANOS EM SUA SAÚDE COMO CONSEQUÊNCIA DESTE CONTATO. OCORREU UM ACIDENTE DECORRENTE DE ATIVIDADE NUCLEAR.
Diante deste acontecimento, de reconhecida relevância jurídica, vamos exercitar uma operação do direito. Para tanto, haveremos de localizar no ordenamento jurídico a norma ou as normas representativas da previsão abstrata que teria sido concretizada com o acontecimento positivamente valorado envolvendo o Senhor Elpídio.
O conhecimento mínimo da legislação que se exige dos operadores do direito permite identificar um acontecimento envolvendo atividade nuclear.
Nesta sua função de ordenar as relações sociais com base na integração normativa de fatos e valores, a realização do direito pressupõe a utilização de processos técnicos, ou seja, pressupõe a utilização de um conjunto de procedimentos, digamos intelectuais, indispensáveis para a subsunção do caso concreto positivamente valorado pela regra geral e abstrata da norma jurídica. Dentre eles, o conceito.
Vamos, pois, em busca do conceito de atividade nuclear.
O átomo é um sistema energeticamente estável, formado por um núcleo que contém nêutrons e prótons, cercado de elétrons. Todas as substâncias são formadas de átomos.
Quando a estabilidade do núcleo é rompida, com a eliminação do elétron, ele se transforma em um átomo com excesso ou com falta de carga elétrica negativa, ou seja, ele se transforma em um íon, emitindo ou liberando uma Radiação Ionizante, que é uma energia radioativa produzida no núcleo do átomo, que se propaga de um ponto a outro no espaço ou em um meio material. Sob a forma de partículas ou sob a forma de ondas eletromagnéticas. Quando um átomo, pelos motivos acima mencionados, está produzindo energia, diz-se que ele está em radioatividade. Está emitindo energia sob a forma de partículas ou sob a forma de ondas eletromagnéticas. Está em atividade nuclear.
Poucos elementos existentes na natureza são radioativos, dentre eles o urânio e o rádio . A título de curiosidade, lembre-se: um grama de rádio proporciona uma quantidade de energia igual a que é desenvolvida pela combustão de 300 quilogramas de carvão mineral.
Pelas mãos de Frédéric Joliot e de sua mulher, Irene Curie, filha de Marya Sklodowska Curie ( a Mme. Curie), surgiram os primeiros elementos radioativos produzidos artificialmente (fósforo-30 e nitrogênio-13). Isto, em 1934.
A radiação ionizante pode ocorrer natural ou artificialmente.
Ao lado de sua utilização econômica, fonte de energia elétrica que pode ser, a radiação adequadamente utilizada pode destinar-se ao uso medicinal, no tratamento do câncer e da AIDS, além dos exames para diagnósticos realizados através dos aparelhos de raio X e de outros mais sofisticados que compõem o arsenal dos equipamentos da moderna Medicina Nuclear.
Por outro lado, são bastante conhecidos os efeitos provocados por sua inadequada utilização na saúde das pessoas e no meio ambiente, notadamente o perigo representado pelos resíduos radioativos.
A energia radioativa, como se sabe, pode ser armazenada. Uma vez consumida, deixa resíduos nas embalagens e o contato humano com estas espécies de “detritos”, um acidente radioativo como se diz, pode resultar em danos amargos.
Foi o que aconteceu com o senhor Elpídio Lourenço Martins, que pegou e ficou por algum tempo com a pastilha dotada de radioatividade que estava na garagem da sua empregadora, a SGS do Brasil S.A..
Fixemos o conceito de atividade nuclear proposto e bem proposto pelos Professores Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues no sempre citado Manual de direito ambiental e legislação aplicável:
“Por atividade nuclear podemos entender toda aquela que promova, direta ou indiretamente, a liberação de radiação ionizante, independentemente da finalidade a que se destina”.

Os efeitos de tais atividades, aí incluídos o manuseio e a destinação dos resíduos, repercutem diretamente no meio ambiente. Seja para proporcionar os reconhecidos benefícios que delas decorrem, seja para constatar os riscos que delas podem advir.
Sendo assim, é obrigatória e prioritária a invocação do artigo 225 da Constituição Federal, ponto de partida para o entendimento das demais disposições legais aplicáveis à matéria.
A mesma Constituição Federal, agora tratando de competência material, estabelece:
Artigo 21 – Compete à União:
………
XXIII – explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:
a) toda atividade nuclear em território nacional será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;
b) sob regime de concessão ou permissão é autorizada a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas, industriais e atividades análogas;
c) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa.
No que se refere à competência constitucional para legislar sobre energia, o fato de ser ela privativa da União (Artigo 22, IV), não impede a competência concorrente dos Estados, Distrito Federal e Municípios para legislar, por exemplo, sobre controle da poluição (Artigo 24, VI), sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente (Artigo 24, VIII), presente o disposto nos incisos I e II do artigo 30 da mesma Constituição Federal, a respeito da competência legislativa municipal.
Registre-se a competência constitucional do Congresso Nacional para “aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares” (Artigo 49, XIV) e a obrigação do Poder Público de manter serviços públicos adequados, sejam eles prestados diretamente, sob o regime de concessão ou de permissão ( Artigo 175, § único, IV).
É indispensável mencionar, por sua efetiva função esclarecedora, a cronologia dos diversos diplomas legais que tratam das atividades nucleares mencionada pelos Professores Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues no referido Manual :
Lei 4.118/62 – Dispõe sobre a Política Nacional de Energia Nuclear, cria a Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN e dá outras providências.
Decreto-Lei 51.766/63 – Aprova o regulamento para a execução da Lei 4.118/62.
Lei 6.189/74 – Altera a Lei 4.118, modificando a competência da CNEN.
Decreto-Lei 75.569/75 – Dispõe sobre a estrutura básica da CNEN.
Lei 6.453/77 – Dispõe sobre a responsabilidade civil por danos nucleares e a responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades nucleares.
Decreto-Lei 1.809/80 – Institui o Sistema de Proteção ao Programa Nuclear Brasileiro.
Decreto 85.565/80 – Regulamenta o Decreto-Lei 1.809/90
Lei 6.902/81 – Dispõe sobre a criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental.
Lei 6.938/81 – Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente.
Decreto 88.351/83 – Regulamenta as Leis 6.902 e 6.938/81.
Estabelecido que foi o conceito de atividade nuclear ( é toda aquela que promova a liberação de radiação ionizante), podemos identificar, nas disposições constantes das letras “a” (atividade nuclear), “b” (radioisótopos: átomos que se identificam com o elemento químico radio) e “c” (responsabilidade) do inciso XXIII do artigo 21 da Constituição Federal, previsões legais abstratas capazes de, juntamente com as outras disposições constitucionais e infraconstitucionais mencionadas, serem concretizadas pelo ocorrido com o Senhor Elpídio.
Já vimos que um mesmo fato pode fazer nascer relações jurídicas de distintas natureza jurídicas. Hipoteticamente, podemos pensar em relações jurídicas de naturezas jurídicas ambiental, civil, trabalhista, penal, consumerista, tributária, etc. Não custa repetir: determinar a natureza jurídica de uma instituição é determinar-lhe o lugar no sistema de direito.
No acontecimento concreto que envolveu o Senhor Elpídio, agora considerado efetivamente como um fato jurídico, se analisarmos as outras categorias resultantes da relação jurídica que nasceu em decorrência dele, ou seja, os sujeitos e os objetos da relação jurídica, poderemos identificar responsabilidades estranhas ao que se pode entender por responsabilidade ambiental.
Vamos examinar esta questão.
Comecemos com a fixação do conceito de duas das mais tradicionais formas gerais do Direito. O direito objetivo, que é a norma posta e o direito subjetivo, que é o poder que advém da norma. Estabelecido através da norma um determinado direito objetivo, o surgimento do direito subjetivo daí decorrente, ou seja, do poder que advém desta norma, depende de alguma coisa. Ele não surge do nada. Depende de um acontecimento juridicamente relevante, que é o fato jurídico. É este fato que faz surgir o poder que advém da norma. Acontece que este mesmo fato jurídico faz nascer, ao mesmo tempo, um direito subjetivo e uma relação jurídica, ou várias relações jurídicas.
O detentor deste direito subjetivo será, certamente, o sujeito ativo da relação jurídica. Por outro lado, aquele a quem se impõe, através da norma, a sujeição a este poder, será o sujeito passivo desta relação. Aí está, sob os aspectos da titularidade do direito e da subordinação ao comando imposto pela norma, respectivamente, o primeiro dos elementos da relação jurídica, também denominado categoria. Aí está o sujeito do direito. Aí estão os sujeitos da relação jurídica, o ativo e o passivo.
Continuando a enfrentar a questão das relações jurídicas de distintas naturezas jurídicas, podemos dizer que o objeto imediato de uma relação jurídica é a obrigação imposta ao sujeito passivo desta mesma relação. Vamos repetir, porque isto é muito importante: o objeto imediato de uma relação jurídica é a obrigação imposta ao sujeito passivo desta mesma relação jurídica. E o objeto mediato ? O objeto mediato da relação jurídica é um bem. Um bem que pode ser, por exemplo, material ou imaterial, público, privado ou coletivo em sentido amplo, aqui incluídos os difusos. Aí está, sob os aspectos imediato e mediato, o objeto da relação jurídica.
Vamos retomar o acontecimento que envolveu o Senhor Elpídio, tendo em vista as possíveis relações jurídicas que este acontecimento juridicamente relevante pode fazer nascer, e procurar identificar sujeitos e objetos destas possíveis relações jurídicas, atentos para a necessidade de dar contornos precisos à relação jurídica que possa ser caracterizada como sendo de natureza ambiental.
Neste sentido, vamos repetir: determinar a natureza jurídica ambiental de uma dada relação jurídica, importa em determinar o seu lugar no espaço reservado para normas ambientais no ordenamento jurídico.
Onde encontrar no ordenamento jurídico uma norma de direito objetivo ambiental que o acontecimento que envolveu o Senhor Elpídio transformou em direito subjetivo ambiental ?
Vamos ter presente o artigo 225 da Constituição Federal.
Pergunta-se: A colocação, no recinto da garagem da empresa SGS do Brasil, da pastilha contendo resíduo radioativo, sem qualquer das providências capazes de impedir a presença deste resíduo no meio ambiente, concretizou a hipótese de dano ao equilíbrio ecológico do meio ambiente ?
Certamente.
Sendo assim, aquele acontecimento fez nascer uma relação jurídica na qual, mediante uma análise bastante simples do artigo 225 da CF e de outros dispositivos constitucionais já mencionados, identificam-se os seguintes elementos: Sujeito ativo – Todos; Sujeito passivo – SGS e o Poder Público; Objeto imediato – a obrigação dos sujeitos passivos de defenderem e preservarem a qualidade do meio ambiente; Objeto mediato – o bem ambiental imaterial e difuso que é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Diante da natureza de uma tal relação jurídica, que vinculou todos à SGS e ao Poder Público, um vínculo entre pessoas que tem como ponto de incidência uma obrigação e um bem jurídico, a responsabilidade dos sujeitos passivos pelo dano causado será uma responsabilidade de natureza ambiental, uma responsabilidade em face do dano ou da ameaça de dano ao bem ambiental. Esta responsabilidade, como já vimos no item 4.4. deste trabalho, tem particulares fundamentos teóricos. Impõe-se, por exemplo, a teoria do risco integral e afasta-se a idéia da culpa. O § 1º do artigo 14 da Lei 6.938/81 e o § 3º do artigo 225 da Constituição Federal não deixam margem para dúvidas. Discute-se o cabimento das excludentes de responsabilidade, tais como caso fortuito, força maior, proveito de terceiro. licitude da atividade e culpa exclusiva da vítima.
Especificamente quanto ao dano ambiental decorrente de atividade nuclear, o rigor dos particulares fundamentos teóricos da responsabilidade daí decorrente aumenta. As discussões doutrinárias em torno do princípio poluidor-pagador, tal como expostas no mencionado item 4.4. deste trabalho, perdem o vigor diante do dano decorrente de atividade nuclear. A letra ‘c’ do inciso XXIII do artigo 21 da Constituição Federal diz o que já estava dito.
Sempre vigoroso e lúcido em suas reflexões sobre temas jurídicos, o Professor Celso Fiorillo tem uma sugestiva interpretação para a inclusão deste dispositivo no texto constitucional. Um dispositivo rigorosamente desnecessário em face do conjunto de disposições constitucionais relativas à responsabilidade ambiental. Em uma de suas providenciais interferências nos debates que aconteciam nas salas de aulas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o jovem e experiente Professor de Direito Ambiental, diante da análise deste dispositivo, afirmou: “É assim para que não haja sequer discussão doutrinária.”
E se fossemos operar o direito sob o ponto de vista da norma de natureza civil que subsumiu o acontecimento positivamente valorado, transformando o direito objetivo civil nela posto em poder (direito subjetivo) que dela advém ?
Neste caso, os elementos desta nova relação jurídica, nascida em decorrência do mesmo fato jurídico, estariam assim caracterizados: Sujeito ativo – Senhor Elpídio; Sujeito passivo – SGS; Objeto imediato – a obrigação do sujeito passivo de não causar prejuízo a outrem, sob pena de reparar os danos; Objeto mediato – o bem material móvel, civil, representado pelo valor pecuniário da indenização.
Na verdade, foi sob este aspecto que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo apreciou o caso do Senhor Elpídio. Mesmo porque, foi sob este aspecto que a questão lhe foi submetida.
Veja o que decidiu o Tribunal:
“ACORDAM, em Terceira Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, negar provimento ao recurso. Correta se mostra a respeitável sentença, a qual analisou de maneira incontornável a prova realizada. Em primeiro lugar, nota-se que, em seu depoimento pessoal, o autor confirmou que encontrou a pastilha dotada de radioatividade na garagem onde prestava serviços e a testemunha Severino Adelino, que com ele trabalhava disse que, embora ele fosse vigia, tendo acontecido ‘um acidente radioativo’, e ‘o autor por não ter instrução daquilo pegou a pastilha radioativa’ com a qual ficou por algum tempo (fls. 189). As outras testemunhas não negam o fato, mas ficou claro que ‘não havia orientação para que tomassem cuidados’ (fls. 91). Não importa que a vítima fosse simples vigia, porque se houve acidente com material radioativo, a obrigação da empresa – trata-se de questão da mais elevada responsabilidade – era a de instruir e proteger os seus empregados. Ainda que tenha ela insistido em suas razões na existência de instruções aos empregados, a realidade é que se isso aconteceu o foi de forma deficitária, pois não seria concebível admitir-se que alguém, mormente empregado antigo, manuseasse material radioativo com iminente perigo para sua saúde. O instinto de conservação e a proteção ao próprio corpo são características imanentes da personalidade humana e, se o autor tivesse sido bem orientado, o acidente, por certo, inexistiria. A culpa, assim, está caracterizada e foi bem apreendida pelo douto Magistrado. As verbas acessórias são corretas. Negam provimento ao recurso.”

Neste caso, o artigo 159 do Código Civil, combinado com o inciso III do artigo 1.521 do mesmo diploma legal, como o próprio Acórdão deixa claro, subsumem o acontecimento.
Como vimos, estas relações jurídicas de distintas naturezas jurídicas incorporam elementos (sujeitos e objetos) que sinalizam para diferentes titularidades e obrigações.
No que se refere à responsabilidade, que é o que nos interessa mais diretamente neste momento, podemos perceber que os seus fundamentos teóricos guardam autonomia em virtude da natureza da relação jurídica.

4. Conclusão
Sempre que formos refletir e tirar conclusões em torno da imaterialidade do bem ambiental, esta reflexão e estas conclusões devem ser antecedidas de um convencimento indispensável: o conceito de bens jurídicos evoluiu e foi envolvido pelos ideais sociais que se pretende ver definitivamente integrados ao sentido de evolução do direito. A visão patrimonial, egoística e individual, que vinha caracterizando os ordenamentos, deverá dividir o espaço jurídico reservado para as pessoas com propósitos humanos, desprendidos e metaindividuais. Os valores jurídicos que se incorporam aos interesses existentes em torno dos bens estão diferentes. Precisamos estar atentos a esta informação.
Em decorrência destas novas idéias, não tão novas, uma necessidade se impõe. Para proporcionar um adequado entendimento e evitar confusões desnecessárias, o tema bem ambiental sugere o estudo concomitante dos institutos jurídicos da propriedade e da responsabilidade. Este estudo permite o encaminhamento de idéias capazes de integrar, sem desgastes, as espetaculares particularidades do bem ambiental no contexto do sistema jurídico.
Por falar em espetaculares particularidades, nada mais espetacular do que esta novidade de fazer com que a proteção jurídica conferida a um determinado bem necessite da preservação de bens jurídicos de outras naturezas, denominados, na legislação ambiental, recursos ambientais.
Em função destas especiais particularidades e incentivados por elas, oferecemos esta sugestão doutrinária representada pela admissão da imaterialidade do bem ambiental. Uma sugestão ainda não acabada e que reflete este reconhecido não acabamento das construções doutrinárias em torno do bem ambiental.

Bibliografia
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. O direito de antena em face do Direito Ambiental no Brasil. Tese de Livre-Docência em Direito Ambiental. Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito. São Paulo: PUC, 1999.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e legislação aplicável. São Paulo: Max Limonad,1997.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1974.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado.
SANTORO-PASSARELLI, F.. Teoria geral do direito civil. Trad. Manuel de Alarcão. Coimbra: Atlântida , 1967.
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2ª ed., 3ª tir., São Paulo: Malheiros, 1998.
SOBREIRA, Vera Lúcia Mikevis. Dano nuclear. Monografia produzida para crédito na disciplina Direito Ambiental I, da Sub-área Direitos Difusos e Coletivos do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/SP, sob orientação do Professor Doutor Celso Antonio Pacheco Fiorillo, 2º semestre de 1997.
TELLES JR., Goffredo. O direito quantico. 6ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1985.

RUI CARVALHO PIVA é Mestre e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/SP. Advogado e Professor.

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