por Laércio José Loureiro dos Santos
A constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 1º, III o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Também estabelece a Carta de 1988 em seu artigo 3º, IV, o princípio da promoção do bem comum, sem discriminação de qualquer espécie.
Outra regra jurídica de nossa Carta Federal pertinente à utilizacão de células-tronco é a vedação constitucional ( art. 5º,III) de tratamento desumano e degradante.
Também o direito à vida é albergado pela Carta de 1988 em seu artigo 5º “caput”.
Preliminarmente, o que seria vida sob a ótica jurídica?Qualquer manifestação biológica seria vida sob a ótica constitucional? Evidentemente que não.
O conceito jurídico de vida surge da interpretação sistemática da Constituição, num somatório do princípio da dignidade com o conceito de vida meramente biológica.
O saudoso professor Montoro ensina em seu livro Introdução à Ciência do Direito (Ed RT, 1972, pág. 165) que o conceito de Justiça não se aplica aos animais que, por definição não são sujeitos de direito.
Assim, explica o professor que “…Em sentido próprio, não tem sentido falar-se em valores morais em relação aos animais. Os conceitos de bem, justiça, dignidade escapam a vida animal”.
É impossível discordar do professor Montoro sem que adentremos à hermenêutica do ridículo. Mas alguém discordaria, lembrando das leis que protegem animais e a flora e que são posteriores à obra do consagrado autor.
Ora, a flora e a fauna são protegidas pelo simples motivo de que a existência do homem na Terra só é possível se existirem animais e plantas para a manutenção do ecossistema! Não se trata de defesa “dos direitos silvestres”, mas simples questão de sobrevivência. Nenhuma árvore poderá pleitear indenização por desmatamento, e nem um bem-te-vi poderá processar alguém por dano moral! As plantas e animais, evidentemente, não são sujeitos de direito, mas meros objetos.
Portanto, o primeiro parâmetro jurídico para o inicio da discussão sobre células tronco é a vida sob o aspecto humano e não a vida em todas as suas formas. Se a vida é humana, decorre logicamente que é a vida digna, pois o diferencial entre os seres humanos e os animais é exatamente que aqueles são norteados por valores e não apenas por instintos. Assim, o valor primordial é o valor dignidade que permeia o próprio conceito de vida sob a ótica humana e não meramente fisiológica.
O conceito de dignidade, exclusivo do conceito humano de vida, é de difícil delimitação, mas nem por isso impossível de ser delineado. Na filosofia do Direito, Genaro Carrió (Notas Sobre Derecho Y lenguaje, Ed Abeledo Perrot) discorre sobre os conceitos indeterminados em que existe luminosidade intensa, outros que estão na obscuridade e outros na zona cinzenta do conhecimento. Para enxergarmos o conceito, portanto, poderíamos utilizar a figura do escuro e do claro, utilizando-se conceitos que, mesmo de difícil conceituação, ficam “iluminados” pelo conceito antagônico.
Assim, o conceito de felicidade pode ser melhor delineado com o seu contraponto infelicidade, o de tristeza com o de alegria e assim por diante. O melhor antônimo jurídico da dignidade, seria o conceito de indignidade (que na Constituição é cristalizado tanto no conceito de tortura quanto no conceito de tratamento desumano e degradante).
O que seria tortura? A melhor definição seria o da Lei Federal nº 9.455/97 (que estabelece o crime de tortura) complementada pela Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (Ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989).
Tanto uma regra quanto outra estabelecem o “sofrimento físico ou moral” como tortura.
Ora, a negligência consistente em deixar de utilizar células tronco para tratamento de patologias,a principalmente aquelas que causam dor, é sem duvida tortura e tratamento desumano e degradante e como tal deve ser abolida.
Destaque-se que os tratados, nos termos do artigo 5º, §2º da Constituição Federal, fazem parte de nosso ordenamento como regras de direito e garantia individual.
Desta forma, o meio médico deve utilizar-se de células-tronco e qualquer outro conhecimento humano para abreviar a dor sob pena de torturar o paciente e imputar-lhe tratamento desumano e degradante. Deve utilizar sob pena de ser negligente ou até mesmo imperito em relação a seu paciente.
Da mesma forma, não pode eximir-se da utilização de tal técnica sob pretexto religioso, já que isso configuraria a odiosa “discriminação religiosa” também vedada por lei e por convenção internacional ratificada pelo Brasil.
Ademais, conforme afirmado pelo procurador da República João Gilberto Gonçalves Filho em Ação Civil Pública proposta para impor obrigação de não fazer consistente em não criar obstáculos à utilização de células-tronco, só há que se falar em vida quando houver formação neurológica. Não há, nesta fase, formação neurológica e, nem mesmo biologicamente, há vida a ser preservada.
Assim, a utilização de uma forma de pensamento religioso dentre os inúmeros possíveis e a adoção deste parâmetro pessoal-religioso do médico ocasionando a dor e o sofrimento desnecessários configuram a modalidade de tortura em razão de discriminação religiosa. Que autoridade tem um médico para adotar um pensamento religioso — dentre vários — e escolher justamente aquele que causa dor ou sofrimento? O fato de que parte das religiões é contra o uso de células-tronco não autoriza o médico a adotar tal preceito da religião.
Ademais, foram necessários 359 anos (1633-1992) para que Galileu Galilei fosse absolvido por cléricos que permaneceram, este tempo todo, no obscurantismo. Eles que continuem — sozinhos — achando que o sol gira em torno da Terra e que a vida gira em torno de sua religião!
O fato é que a Lei Federal nº 9.434/97 estabelece a possibilidade de utilização de partes de tecidos e órgãos para transplante e tratamento, o que corrobora a interpretação da licitude da pratica de utlização de células- tronco.
Também o Código de Ética médica proíbe a negligência do médico e reitera a vedação da discriminação em seu artigo 47 e da tortura em seu artigo 49.
Desta forma, a utilização de células-tronco e lícita e necessária sob pena de enterrarmos o principio da dignidade da pessoa humana e elevarmos a tortura a instrumento de atividade médica. O próprio Hipócrates estaria sendo vilipendiado em seu túmulo!
Laércio José Loureiro dos Santos é advogado, sócio do escritório Loureiro dos Santos – Advogados Associados, mestre em direitos difusos pela PUC/SP e professor de Direito Processual Civil na Universidade Paulista (Unip).