Imposto sobre Serviços não incide sobre contratos de franquia

Autores: Henrique Napoleão Alves e Eduardo Junqueira Coelho (*)

 

Prática de origem estrangeira, o franchising se caracteriza pelo acordo entre franqueador e franqueado por meio do qual o último passa a usar o modelo de negócio e a marca do primeiro.

A marca é inserida, aí, como parte importante do modelo de negócio e como uma das responsáveis por permitir que o franqueado já obtenha um certo número de clientes (por ela atraídos) logo no início de seu novo empreendimento (SHERMAN, Andrew J. Franchising & licensing: two powerful ways to grow your business in any economy. 3 ed. New York: American Management Association, 2004, p.11-12). O conjunto de direitos dados ao franqueado costuma ser amplo, usualmente abarcando um conjunto de marcas e códigos (logotipo, design, uniformes, etc.) e, em especial, o “know-how”, cuja transmissão se dá por meio de manuais, programas de treinamento e de suporte (SHERMAN, op. cit., p.107).

Em poucas palavras: cuida de espécie de “locação” ou “cessão” de um modelo de negócio, mediante pagamento de valor, enquanto durar o uso ou locação do negócio em questão.

Pelo menos trinta e três países possuem regulação jurídica explícita sobre o franchising, dentre eles o Brasil, que define legalmente a “franquia” como o sistema pelo qual o franqueador cede ao franqueado “o direito de uso de marca ou patente”, “o direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços” e “o direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador” (artigo 2º da Lei 8.955/1994).

A definição legal brasileira é sábia. Sendo “locação” ou “cessão” de todo um modelo de negócio, o franchising pode adquirir inúmeras feições, cada qual com um ou mais elementos da definição legal. Independentemente das variações, há algo comum a todo franchising: os diferentes direitos e atividades envolvidos sempre servem ao fim último de proporcionar ao franqueado a reprodução do negócio concebido pelo franqueador.

O contrato de franquia tipicamente abrange prestações recíprocas de natureza variada. Ambas as partes assumem obrigações de dar e de fazer, todavia indivisíveis, porquanto partes de um todo (a franquia), de uma locação ou cessão de todo um modelo de negócio. Neste sentido, foi compreendido como um contrato que abrange “prestações recíprocas e sucessivas com o fim de se possibilitar a distribuição, industrialização ou comercialização de produtos, mercadorias ou prestação de serviços, nos moldes e forma previstos em contrato de adesão”. (SIMÃO FILHO, Adalberto. Franchising. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1998, p.36, 42). Em sentido semelhante, o Superior Tribunal de Justiça salientou que o contrato de franquia é “formado por vários elementos circunstanciais” (AgRg no Ag 746597/RJ).

No debate sobre a incidência ou não de ISSQN sobre franquia, destacam-se três linhas argumentativas: (1) comparação entre franquia e locação de bem móvel; (2) comparação entre franquia e o conceito constitucional de serviço para fins tributários; (3) exame da questão diante da distinção entre atividade-meio e atividade-fim.

Sobre o ponto (1), argumenta-se que, antes da LC 116, o contrato de franquia deveria ser tributado pelo ISSQN a título de “locação de bem móvel” (item 79 da lista anexa ao Decreto-lei 406/68). Contudo, no leading case sobre interpretação jurídica sobre a incidência do ISSQN (RE 114354/RJ), o Supremo Tribunal Federal assentou que, na cobrança desse tributo, não cabe incluir atividades-meio e não cabe incidência por analogia (o que, aliás, remonta ao clássico acórdão do STF no caso RE 78927/RJ, ocasião na qual Aliomar Baleeiro afirmou a impossibilidade de cobrança do Imposto Municipal sobre Serviços através de ampliação dos itens taxativos da lista por emprego de analogia).

Mais recentemente, em 2014, o mesmo STF, em Plenário, reafirmou os critérios tributários interpretativos da vedação de incidência analógica e a necessidade de respeito aos conceitos de direito privado adotados pelo direito tributário, “na forma do artigo 110 do CTN, à luz da interpretação conjunta do artigo 146, III, combinado com o artigo 155, inciso II e parágrafo 2º, IX, “a”,” todos da Constituição (cf. RE 540829/SP; RE 602295 AgR/RJ).

Os critérios adotados pelo STF levam à conclusão da impossibilidade de incidência tributária da franquia como se “locação de bem móvel” fosse; afinal, a tese contrária desconsideraria a relação entre meio e fim própria da franquia e das múltiplas atividades e direitos que podem lhe compor, promoveria analogia entre locação de bem móvel e a vária prática da franquia e, por fim, equipararia institutos diferentes (locação e franquia), contrariando, assim, o respeito constitucional e infraconstitucional aos conceitos de direito privado adotados na seara tributária.

De toda sorte, mesmo se fossem afastados os critérios do STF mencionados até aqui, a incidência a título de locação de bem móvel ainda assim esbarraria no entendimento afirmado pela mesma Corte Constitucional em sede de Súmula Vinculante (ref. Súmula Vinculante  31).

Quanto ao ponto (2), nos mesmos termos do entendimento consubstanciado na Súmula Vinculante 31, o STF também afirmou a existência de um “conceito constitucional de serviço que provém do direito privado”, cujo núcleo consiste em obrigação de fazer (cf. RE 602295 AgR/RJ; RE 446.003-AgR; AI 623.226-AgR). Em linhas gerais, o fato gerador do ISS enquadra-se no conceito de serviço, prestado com autonomia, na mesma linha da definição do Código Civil já revogado, no seu artigo 1.216, constante do artigo 594 do Código Civil atual.

A franquia, no entanto, não se amoldaria a tal conceito, por ser contrato que envolve prestações recíprocas de natureza variada. Ambas as partes assumem obrigações de dar e de fazer, indivisíveis porquanto partes de um todo, a franquia, a cessão de um modelo de negócio (que, de sua parte, evidentemente não pode ser reduzido a um fazer).

Esse mesmo entendimento já foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em inúmeras oportunidades (AgRg no Ag 746597 / RJ; AgRg no Ag 581593 / MG; REsp 222246 / MG; REsp 189.225; etc.), e coincide com a forma pela qual a doutrina examinou a questão, ao afirmar que o conceito constitucional de serviço tributável abrange “a) as obrigações de fazer e nenhuma outra; b) os serviços submetidos ao regime de direito privado não incluindo, portanto, o serviço público (porque este, além de sujeito ao regime de direito público, é imune a imposto, conforme o artigo 150, VI, “a”, da Constituição); c) que revelam conteúdo econômico, realizados em caráter negocial – o que afasta, desde logo, aqueles prestados a si mesmo, ou em regime familiar ou desinteressadamente (afetivo, caritativo, etc.); d) prestados sem relação de emprego – como definida pela legislação própria – excluído, pois, o trabalho efetuado em regime de subordinação (funcional ou empregatício) por não estar in comércio.” (BARRETO, Aires F. ISS – Não incidência sobre Franquia. Revista de Direito Tributário, n. 64, p.216, 221).

Em relação ao ponto (3), em muitas ocasiões diferentes ao longo do tempo, o mesmo STF logrou afirmar e reafirmar que não pode haver incidência de ISSQN em relação às chamadas atividades-meio (AI 601009 AgR / MG; RE 114.354; RE 108.665; RE 105.844; RE 97.804; etc.); o mesmo ocorreu no âmbito do STJ (v.g., AgRg no AREsp 445726 / RS; REsp 883254/MG; AgRg nos EDcl no AREsp 48.665/PR; AgRg no REsp 1.192.020/MG; REsp 883.254/MG; etc.).

O contrato de franquia tem como atividade-fim a cessão de um modelo de negócio (do qual a marca é um dos itens importantes), para o qual concorrem uma multiplicidade de atividades de ambas as partes. Desmembrá-lo para fins tributários equivale a violar a distinção entre atividade-meio e atividade-fim e da intributabilidade da atividade-meio no âmbito do ISSQN, consagrada em diferentes decisões dos tribunais superiores. Além disso, contraria a unicidade que o contrato de franquia caracteristicamente confere à diversidade de relações jurídicas que congrega (e a proteção especial dada aos conceitos de direito privado pelo artigo 110 do CTN).

 

 

 

 

Autores: Henrique Napoleão Alves é advogado sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. É também professor universitário e doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UFMG.

 Eduardo Junqueira Coelho é mestre em Economia pela UFV e sócio conselheiro do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados.


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