Imunidade tributária do mercado de papel saiu caro demais

Autor: Flávio de Haro Sanches (*)

 

Não é de hoje que diversos setores da atividade econômica foram permeados por criminosos definidos no meio jurídico-tributário como inidôneos. Tais pessoas se revestem de personalidade jurídica, compram ou vendem efetivamente mercadorias, e deixam o fisco, sobretudo estadual, na mão. A consequência para quem transaciona com tais empresas inidôneas tem sido a glosa de créditos quando adquirente de tais empresas, ou a penalidade em percentual sobre o valor da operação quando fornecedor das tais empresas. A solução para quem desconhecia a realidade aqui sintetizada teria sido idealmente alcançada na Súmula 509 do STJ, quando identificado tratar-se de um adquirente ou fornecedor de boa-fé, no entanto, não foi, especialmente para o setor de distribuição de papel.

Beneficiado pela imunidade — e, consequentemente, desonerado dos impostos — o papel destinado à impressão de livros, jornais e periódicos deveria incrementar a difusão da cultura e impedir qualquer limitação à liberdade de imprensa, todos propósitos da Constituição Federal brasileira e motivos de sua diferenciação.

Infelizmente, todavia, a diferenciação tributária e a similaridade ao produto tributado (a desoneração tem a ver com a destinação e não com o produto em si) criaram verdadeiro paraíso para a fraude, com forte impacto na concorrência para as empresas do setor.

Por isso que as iniciativas fiscalizatórias são louváveis e devem ser apoiadas, mas é preciso ter critério. A responsabilidade pelo desvio está na destinação do papel e não na cadeia de produção e distribuição. É a destinação que define a imunidade, então é ela, da mesma forma, que determina a tributação.

O legislador se encarregou, com todo o apoio do setor, de criar o Registro Especial (federal) e o Recopi (estadual), para que as empresas que pretendam operar com papel imune (produção, distribuição ou consumo) sejam previamente fiscalizadas e autorizadas a tanto. Mais, o Sistema Recopi impõe que toda e qualquer operação com dito papel deve, antes de acontecer, ser registrada em volumes e destino. Ainda, que no prazo máximo de até 15 dias deve ser confirmada no sistema da fazenda pelo comprador, caso contrário o Recopi do vendedor e do comprador são bloqueados. E para completar a estruturação do controle, estabelece a legislação que eventual utilização do papel para fins comerciais (não beneficiado pela desoneração) implica no recolhimento dos tributos pelo comprador do papel que tenha dado tal destinação.

Veja-se, as autoridades fiscais autorizam a operação de determinada empresa para a compra de papel imune, atestando-lhe a existência e a capacidade, e supervisionam cada uma das operações registradas no Sistema Recopi. Por fim, podem cobrar quem tenha lhe dado destinação diversa de livro, jornais e periódicos. De se imaginar que este setor, altamente regulado, vive momentos de bonanza.

Ledo engano. Infelizmente, a condução das fiscalizações tem resultado no oposto: pune-se a empresa regular, estrangula-a até que não possa suportar o encargo e o fraudador sai impune em busca de nova oportunidade para delinquir.

Especialmente a Secretaria da Fazenda de São Paulo, na contramão da regulamentação, entende que não apenas o comprador (detentor do Recopi) possa ser responsabilizado, mas, também, seu vendedor. E, pasme-se, porque a empresa compradora (aquela mesma que o fisco autorizou a comprar papel) estaria irregular (inidônea). Letra morta da legislação.

Ao invés de a fiscalização se conformar que uma empresa não tinha ligação com a fraude, e assim logo seguir o rastro de quem efetivamente poderia ser alcançado e punido, a sanha de responsabilizar o contribuinte de boa-fé persiste a qualquer custo. Essa insistência contra legem é danosa ao próprio fisco, que fica sem receber de quem poderia, e enfraquece seu próprio contribuinte, que ao invés de reunir forças na atividade produtiva e geração de novos fatos geradores, acaba perdendo tempo e dinheiro para resolver um passivo que não criou.

Com efeito, não importa o nível de documentos que se apresente à fiscalização, salvo raras exceções, se autua o contribuinte alegando que há pauta de fiscalização e ele dispõe dos meios próprios para se defender. Ocorre que a via administrativa nem sempre tem a sua imparcialidade preservada, o contribuinte não é visto como alguém que fomenta e gera riquezas, mas sempre como potencial causador de um dano ou perda da arrecadação, isso para não beirar um clima de potencial sonegação, com repercussões em esfera criminal que novamente suga capital que poderia ser melhor empregado na atividade produtiva.

No caso do setor do papel que foi vítima de dezenas de empresas inidôneas, com auge de atuação entre 2011 a 2013, o reflexo é ainda pior, pois na dificuldade de separar quem fez o quê, todos acabam sendo levados para uma vala comum. A Andipa fez importante trabalho de identificação das empresas inidôneas para auxiliar os seus associados a não mais transacionar ou ao menos ter dimensão do que houve no passado. O resultado é alarmante. Verifica-se que mais de 40 empresas se infiltraram e compraram e venderam papel sem recolher tributos, deixando um rastro de destruição. São dezenas de empresas sólidas e reconhecidas no setor que tiveram o mesmo tipo de autuação erroneamente lavrada contra si. Pior. Na época do acontecido era praticamente impossível saber da inidoneidade, pois tais inidôneos ostentavam cadastro ativo nos órgãos públicos, e o mais impressionante, tinha Recopi para trabalhar na cadeia do papel imune.

Epa. Como assim?

Pois é, uma empresa de décadas de atuação no setor tem um trabalho enorme para obter credenciamento que o habilite para trabalhar com papel imune. A legislação deixa claro que no caso de descaminho do papel imune é apenado quem comete o ilícito, mas infelizmente a fiscalização estadual, ao menos de São Paulo, não segue tal regulamentação. Se a legislação paulista fosse clara ou a legislação à luz da Súmula 509 prevalecesse, o erário sofreria menos, pois evitaria: i) perseguir a pessoa errada enquanto ainda seria viável ter o rastro do inidôneo; ii) não levar um bom contribuinte a responder criminalmente; iii) não fazer este contribuinte se defender custosamente, inclusive com elaboração de perícias e pagamento de custas elevadas no Poder Judiciário; iv) e ao final, se tudo correr bem, onerar a fazenda pública com sucumbência de expressão frente ao artigo 85 do novo CPC.

A fraude no setor não era previsível. Em geral tais inidôneos se valiam de algumas atitudes que eram juridicamente aceitáveis, tais como retirada ou entrega com transporte pelo inidôneo, pagamento envolvendo algumas ou várias cessões de crédito ou pagamento em dinheiro, entre outras questões que em esfera administrativa de julgamento são consideradas suspeitas.

Ocorre que esta suspeita, muito que válida e perceptível no retrovisor, não foram o suficiente para evitar o negócio lá atrás. Afinal, livrar-se de realizar o frete é sempre bom para quem foca na compra e venda do papel; ter envolvimento de factoring em razão da situação econômica de muitos é outra coisa amplamente natural e juridicamente legítima no direito comercial; sem contar o pagamento por depósito em dinheiro, que por volta de 2012 não era suspeito tal como o é hoje em dia, até por que não se entregava uma maleta de dinheiro, e sim vinha no extrato do banco que a operação teria sido liquidada em espécie, ou seja, o credor ao invés de achar suspeito teria é que achar bom de não ter amargado uma inadimplência.

Ademais, é difícil suspeitar de um cliente que compra e vende papel, entregando e retirando com naturalidade. Pesquisa-se pelo histórico a situação financeira, de registros em órgãos públicos, mas não há muito mais que se pudesse supor que poderia ser feito.

No contexto paulista é de se dizer que o dever de fiscalizar foi transferido para o contribuinte. Infelizmente, apenas contaram-no que precisaria ser mais “realista que o rei” anos depois de realizar suas operações e que a regulamentação do Recopi não teria qualquer validade. A autorização e o acompanhamento pelo fisco das operações seriam mero penduricalho e não uma segurança para a operação.

Um setor supostamente beneficiado é, hoje, um dos mais complexos para operar. Raro de encontrar um associado Andipa que não tenha se especializado em investigação, cioso ao extremo com conciliação de pagamento, admitindo apenas e tão somente pagamento via boletos. Cessão de crédito apenas se houver prévia diligencia e ainda assim para evitar uma inadimplência. O frete, que seria algo de preferência que fosse contratado pelo parceiro comercial, agora se prefere fazer para evitar desvios no caminho etc.

A mudança de rotinas, com criação de obrigações acessórias novas, passando até mesmo pela normatização do Banco Central quanto à necessidade de emissão de boleto para recebimento de valores, tudo contribui para evitar o que houve no passado, mas é fato que as empresas foram vítimas, tanto quanto o fisco, destas empresas inidôneas.

Ainda assim, o passado assombra e coloca em risco a própria existência das empresas num setor cujos clientes estão desaparecendo pela evolução da tecnologia. São gráficas e editoras que sofrem não apenas com a crise, mas com a mudança mundial do modelo de negócios.

Nesse cenário parece não fazer sentido o fisco dar o tiro de misericórdia em um setor que busca se reinventar. Deve ser imediatamente repensado a forma de autuar e julgar tais contribuintes. Se há Recopi a presunção é de que a pessoa era idônea. Se um auto de infração não alega e constada a má-fé de um contribuinte, ele não poderia ser mais tarde, em sede de órgão de julgamento, assim considerado. A boa-fé se presume e a fiscalização deveria melhor se utilizar do ideal que motivou a Súmula 509, ao invés de contra ela se insurgir indiretamente.

 

 

 

Autor: Flávio de Haro Sanches  é sócio tributário do CSMV Advogados. Eespecialista em Direito Tributário pelo IBET e em Imposto de Renda de Empresas pela APET. Ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas da Secretaria de Negócios da Fazenda do Estado de São Paulo.


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