Por Lúcio Flávio Siqueira de Paiva
01. Colocação da Matéria
Todos os dias, pessoas – físicas ou jurídicas – vinculam-se umas às outras por intermédio de relações jurídicas, assumindo reciprocamente obrigações positivas (fazer ou dar) ou negativas (não fazer). E o fazem, destaque-se, com o objetivo de criar, modificar ou extinguir direitos. Assim surgem os negócios jurídicos [01].
Essas obrigações assumidas têm um único destino normal e esperado, qual seja, o seu adimplemento. Assim, o artesão que se compromete a fazer uma escultura, deve entregá-la no prazo determinado; a construtora que vende um apartamento na planta, deve entregá-lo na forma e no termo previsto no contrato de compra e venda da unidade habitacional; o empregado que tem contato com informações confidenciais (segredo industrial, por exemplo) da empresa em que trabalha e que assume o dever de guardar sigilo sobre as mesmas, deve abster-se de divulgá-las. Enquanto essas obrigações são devidamente observadas e cumpridas pelos contratantes, os negócios jurídicos formam-se, desenvolvem-se e se encerram de maneira saudável.
Entretanto, não raras vezes a obrigação não é cumprida por aquele que a assumiu. Surge, assim, a inexecução da obrigação, que representa verdadeira patologia do negócio jurídico [02], a provocar severa reação do ordenamento jurídico, que rechaça veementemente tal comportamento, ante a ruptura da harmonia social que o descumprimento das obrigações assumidas provoca.
A própria sabedoria popular ensina: “a obrigação nasce para ser cumprida”. Qualquer resultado diferente representa um desvio na ordem natural das coisas, a provocar, como antes pontuado, o desequilíbrio.
Estudar, pois, a figura jurídica do inadimplemento das obrigações é perscrutar o terreno doentio do negócio jurídico, no que o jurista muito se aproxima do médico: pesquisa as causas da doença, conhece seus efeitos e busca a cura. E o mais curioso: assim como o médico normalmente é consultado quando a doença já se instalou, também se busca o jurista quando a patologia negocial se manifesta.
02. O Adimplemento / Inadimplemento: Visão Clássica x Visão Moderna
Com a evolução do pensamento jurídico e das legislações, também o conceito de adimplemento evoluiu: de uma concepção inicialmente simplista, fundada exclusivamente no princípio da autonomia da vontade (aqui denominada de visão clássica), chega hoje a uma concepção mais complexa e abrangente, que verdadeiramente transcendente a mera vontade dos contratantes.
De fato, o adimplemento sempre foi examinado à luz do cumprimento ou não da obrigação principal; cumprida esta, ter-se-ia por encerrado ciclo obrigacional.
Errado o conceito? Não. Incompleto? Sem dúvida.
Modernamente, o conceito de adimplemento alargou-se para abarcar não apenas a análise do cumprimento da obrigação principal, mas também deveres outros (transparência, confiança e cooperação), ditados não pela vontade dos contratantes, mas sim pelo ordenamento jurídico. Conforme ensinam, com maestria, CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD [03], “para além das obrigações delineadas por seus partícipes, o negócio jurídico é modelado, em toda a sua trajetória, pelos chamados deveres anexos ou laterais, oriundos do princípio da boa-fé objetiva. Enquanto as obrigações principais são dadas pelas partes, os deveres anexos são impostos pelas necessidades éticas reconhecidas pelo ordenamento jurídico, independentemente de sua inserção em qualquer cláusula contratual”.
Ora, se o conceito de adimplemento restou ampliado, para abarcar, além da obrigação principal, também os deveres anexos, também o conceito de inadimplemento alargou-se, de modo que, tanto poderá ocorrer patologia negocial referente à obrigação principal – terreno adequado às tradicionais noções de inadimplemento absoluto e relativo -, quanto patologia negocial relacionada com a inobservância dos deveres anexos – locus da moderna noção de violação positiva do contrato.
Tal constatação é absolutamente indispensável à correta construção de uma adequada teoria do inadimplemento, porquanto descortina para o jurista uma realidade até então desconhecida; promove um total disclosure da dinâmica obrigacional, permitindo que recebam tutela situações que, por envolverem o descumprimento dos até então desconhecidos deveres anexos, ficavam alijados da análise pelo órgão julgador.
É essa visão moderna do adimplemento / inadimplemento que se adota no presente artigo.
03. O Inadimplemento e sua Classificação
Tendo por ponto de partida a clássica visão do adimplemento da obrigação, fulcrada, pois, na análise (apenas) da prestação principal, a doutrina concebeu uma classificação bipartida do inadimplemento: (i) inadimplemento absoluto e (ii) inadimplemento relativo, também denominado mora.
Despertados pela visão moderna do adimplemento, que acresce à prestação principal os deveres anexos ditados pela boa-fé objetiva, a doutrina vem construindo um tertium genus de inadimplemento, qual seja, a violação positiva do contrato.
Imperioso, pois, examinar cada qual.
Por inadimplemento absoluto entende-se um descumprimento tal da obrigação, que a torne desinteressante para o credor, ainda que o devedor se disponha a cumpri-la extemporaneamente. É o caso, tantas vezes citado em doutrina, do bufê, que contratado para servir os convidados do contratante no sábado às 22 horas, chega às 04 da manhã, quando todos já deixaram a festa. Aqui, ainda que o contratado se disponha a cumprir a obrigação, essa tornou-se totalmente desinteressante para ao credor. Eis o inadimplemento absoluto, a ensejar, caso queira o credor, a resolução do negócio jurídico e perdas e danos. Trata-se, nesse caso, de verdadeiro direito potestativo que surge para o credor e, como todo direito potestativo, a parte contrária não pode fazer outra coisa senão sujeitar-se ao exercício do mesmo.
É bem verdade, diga-se de passagem, que a doutrina já vem controlando abusos nessa seara, notadamente nos casos em que o inadimplemento é mínimo. Incumbirá, em casos tais, ao juízo aferir se realmente aquele descumprimento deve ensejar a resolução do contrato ou, ao contrário, reconhecer que por ter a parte implementado parte substancial da avença, deve a mesma ser mantida, remetendo-se o credor a vias outras para a satisfação do seu direito.
Noutro giro, o inadimplemento relativo ou mora dá-se quando, descumprida a obrigação no seu tempo, a sua extemporânea efetivação ainda se mostra interessante ao credor, sendo que seu cumprimento evitará a resolução do negócio jurídico. É o caso do locatário, que tendo a obrigação de adimplir os alugueres até o dia 10 de cada mês, atrasa a prestação, vindo a cumpri-la apenas no dia 20. Ora, o recebimento dos valores, a despeito de extemporâneo, ainda é útil ao credor, configurando-se, assim, a mora, a ensejar o acréscimo de penalidades na obrigação (juros, correção monetária, honorários advocatícios), mas não a resolução do negócio jurídico. A esse conserto da mora, em que o devedor cumpre a obrigação, em que pese a destempo, dá-se o nome de purga da mora, fazendo cessar os efeitos do atraso.
Como antes pontuado, a visão clássica da doutrina concebe apenas essas duas formas de inadimplemento, quais sejam, o absoluto e o relativo. Há, porém, ainda, aquele terceiro gênero mencionado, a violação positiva do contrato, que decorrerá não do descumprimento da prestação principal, mas sim da inobservância dos deveres anexos ditados pelo princípio da boa-fé objetiva.
Mas quais seriam, efetivamente, esses deveres anexos? A doutrina majoritária elenca três:
a)Dever de proteção, assim entendido como dever de acautelar o outro contratante;
b)Dever de informação, consistente na obrigação que os contratantes têm de expor, com transparência, todos os elementos da contratação, to
dos os detalhes, a fim de que realmente possam as partes externar, no contrato, uma vontade livre e real;
c)Dever de cooperação, assim entendido o dever de ambas as partes de atuarem em prol do alcance das finalidades do contrato.
Quando quaisquer desses deveres anexos restar descumprido, haverá a denominada violação positiva do contrato, que poderá render ensejo a pedido, pela parte inocente, da resolução do contrato ou mesmo, segundo os já citados CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD, à oposição da exceção de contrato não cumprido.
Poder-se-ia objetar a essa construção doutrinária que essa espécie de inadimplemento não se encontra prevista na lei. Aqueles que assim concluem, entretanto, o fazem esquecendo-se que o artigo 422 do Código Civil abraça, generosamente, o princípio da boa-fé objetiva e, por conseguinte, abraça também os deveres anexos decorrentes dessa mesma boa-fé. Não é à toa que o Enunciado n◦ 24 do Conselho da Justiça Federal assevera: “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.
A jurisprudência dos tribunais pátrios, a seu turno, já começa a acolher a tese da violação positiva do contrato, aplicando na resolução de casos concretos esse tertium genus de inadimplemento.
O exame de alguns julgados paradigmáticos auxiliará na exata compreensão da violação positiva do contrato.
Cite-se, pois, em primeiro plano, o Recurso Inominado n◦ 71000603332 da Terceira Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul. Nessa demanda, alega a Autora que locara um stand junto aos organizadores de determinada feira, ocasião em que lhe foi informado pelos locadores que no máximo entre 18 e 20 pontos de venda seriam objeto de locação. Entretanto, segundo a Autora, quando da realização da feira, mais de 80 stands encontravam-se em funcionamento, o que reduziu drasticamente seus lucros. Requereu, assim, a reparação de danos por esse descumprimento de promessa contratual. Em seu voto, o Juiz Relator, Dr. EUGÊNIO FACCHINI NETO, aplicou a tese da violação positiva do contrato, asseverando:
“Por óbvio que uma coisa é interessar-se em locar um stand em um evento do gênero, tendo apenas outros 20 concorrentes. Coisa bem diversa é saber que haveriam outros 80 concorrentes.
É crível, assim, a versão da autora de que não teria se interessado na locação, caso soubesse que haveria um número tão grande de stands locados. Ainda que não houvesse a afirmação inicial, enganosa, de que haveria um número reduzido de stands, impunha-se aos requeridos prestar a informação aos interessados quanto ao número de stands que se pretendia instalar. Trata-se do dever instrumental, anexo ou lateral, de informar ao outro contratante todas as circunstâncias que possam influir no processo de tomada de decisão de contratar ou de fixação das cláusulas do contrato.
Não houve propriamente inadimplemento contratual dos requeridos, pois locaram os stands e efetivamente os dispuseram aos locatários. Trata-se, porém, do fenômeno denominado de violação positiva do contrato, instituto que não configura nem mora, nem adimplemento, mas adimplemento defeituoso por não cumprimento de deveres anexos, laterais, decorrentes do princípio da boa-fé, em sua função de proteção ou tutela.”
Em outro julgamento interessante, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação Cível n◦ 400.430-4/3-00, de relatoria do Eminente Des. Ariovaldo Santini Teodoro, julgou procedente o pedido de resolução contratual, com retorno das partes ao status quo ante, em função da violação ao dever anexo de informação. Nesse caso concreto, foi firmado entre as partes litigantes um contrato de compra e venda de um restaurante, constando do contrato que as vendedoras asseguravam que o estabelecimento encontrava-se em perfeito estado de legalidade e livre de quaisquer ônus, inclusive dívidas. Contudo, quando as compradoras tomaram posse do estabelecimento descobriram, além de diversas dívidas não mencionadas pelas vendedoras, a inexistência de alvará da municipalidade autorizando o funcionando do restaurante. O Egrégio TJSP, ao examinar o caso em grau de recurso de apelação, entendeu que seria dever (anexo) das vendedoras o expresso esclarecimento das compradoras quanto às dívidas pendentes, bem como com relação à falta de alvará de funcionamento, e, assim sendo, violaram, as vendedoras, o dever lateral de informação. Ao reconhecer, o tribunal, a violação positiva do contrato (ainda que no acórdão não tenha o órgão julgador expressamente utilizado essa denominação), determinou a resolução do contrato com o retorno das partes ao status quo ante.
De fato, em ambos os julgados citados, não houve, propriamente, inadimplemento da obrigação principal: no caso do aluguel do stand, foi esse devidamente disponibilizado; quanto ao restaurante, a posse e propriedade foram efetivamente transferidas às compradoras. Todavia, conquanto adimplidas essas prestações principais, em ambos os casos restaram desatendidos deveres laterais, que a despeito de não entabulados expressamente no contrato (no caso do aluguel do stand não passou de promessa quando das tratativas negociais), são ditados pela máxima da boa-fé objetiva.
Vale destacar que os dois julgados são recentes – o primeiro do ano de 2009 e o segundo de 2008 – e demonstram que a violação positiva do contrato passa a ter ampla acolhida pelos tribunais pátrios, deixando, pois, de ser uma tese puramente teórica para ganhar aplicação prática na resolução de controvérsias contratuais.
Outrossim, esses mesmos julgados demonstram a extrema utilidade dessa terceira categoria de inadimplemento, na exata medida em que, com o reconhecimento da violação positiva do contrato como forma de inadimplemento dos deveres anexos ditados pela boa-fé, o direito passa a tutelar situações de descumprimento contratual que, até então, encontravam-se carentes de reconhecimento. Aliás, não fosse a violação positiva do contrato, será que a locatária do stand conseguiria sucesso em sua demanda indenizatória? É certo que não, pois o demandado arguiria inexistir qualquer inadimplemento de sua parte.
04. À Guisa de Conclusão
O presente artigo, a despeito de breve, procurou traçar um perfil atual da importante figura do inadimplemento, percorrendo a noção clássica, em que apenas a obrigação principal era levada em consideração para fins de aferição do descumprimento do contrato, até chegar-se à noção moderna, em que, por força dos ditames do princípio da boa-fé, é levada em conta também a observância aos deveres anexos de informação, cooperação e proteção.
Restou evidenciado que a clássica divisão do inadimplemento em absoluto e relativo (mora), justamente por força do reconhecimento da existência de deveres que suplantam as obrigações entabuladas pelas partes, mostra-se insuficiente para a solução adequada de diversos casos. Daí a necessidade de se reconhecer o tertium genus da violação positiva do contrato, como forma de possibilitar o controle jurisdicional não só do inadimplemento da prestação principal, mas também desses deveres anexos de conduta.
Aliás, a produção doutrinária e jurisprudencial mostra que a categoria da violação positiva do contrato deixou de ser uma mera teoria acadêmica para ganhar força viva nos julgados, e o que é mais importante, com sua aplicação o Judiciário passa a tutelar situações de inadimplemento de obrigações laterais que, antes, passavam ao largo da tutela jurisdicional, causando, não raro, enormes injustiças.
Sobretudo, o reconhecimento doutrinário e jurisprudencial de institutos como a violação positiva do contrato demonstra a vigência de um novo padrão ético no trato contratual: mentir para o outro contratante se
mpre foi considerado ilícito pelo direito; omitir não. Agora, a omissão também é repugnada, notadamente porque o dever de informação e transparência impõem a sua observância, mormente antes da contratação.
Sem dúvida, mais uma contribuição do festejado princípio da boa-fé objetiva ao direito contratual.
*Lúcio Flávio Siqueira de Paiva
advogado em Goiânia (GO), sócio do Escritório Gonçalves, Macedo, Paiva S/S, professor substituto de Processo Civil da Universidade Federal de Goiás, professor efetivo de Processo Civil e Prática Cível da Universidade Católica de Goiás, professor da Escola Superior de Advocacia de Goiás e da Escola Superior da Magistratura de Goiás, professor de cursos preparatórios para concursos públicos