Leonardo Castro Maia
Preceitua o art. 408 do Código de Processo Penal que ”se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento.”
Tal dispositivo, desde sua origem, tem suscitado alguma celeuma entre os operadores do direito, particularmente entre aqueles que exercem funções no Tribunal Popular.
A controvérsia refere-se à natureza da decisão judicial (pronúncia), à linguagem ideal a ser utilizada pelo julgador, à competência e à utilização do denominado princípio in dubio pro societate, uma espécie de resposta e contrapeso ao princípio in dubio pro reo e ao marcante favor rei, presenças ofuscantes no processo penal e na ciência penal, vista como um todo.
Primeiramente, cumpre-nos dizer que só pelo fato de haver competência constitucional do júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida – deduzida do próprio texto do Código de Processo Penal e imperativamente determinada pela Magna Carta (art. 5º, inciso XXXVIII) – a interpretação intuitiva, pacificada, indica que o convencimento pelo juiz da “existência de crime”, não passa, em verdade, de convencimento acerca da existência de materialidade, até porque somente o Conselho de Sentença poderia convencer-se ou não da existência do crime. Posto isto, na pronúncia, o juiz analisa a materialidade, os indícios de autoria, dando os motivos do seu convencimento, sendo que esta última parte, da fundamentação, nem precisava ser mencionada no art. 408, ex vi do art. 93, inc. IX da Constituição Federal:
Art. 93.
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;
Nestes termos, não é desarrazoado adicionarmos, ainda, que o Código de Processo Penal Pátrio, instituiu um clássico exemplo de competência funcional pelo objeto do juízo, conforme lição do Prof. Fernando da Costa Tourinho Filho, mencionando concepção de Carnelutti quanto ao Júri (Lecciones, trad. Snetis Melendo, v. 2. p. 298), onde os Jurados têm função diversa da do Magistrado, que completa o Órgão Jurisdicional e o preside. No Júri, o poder de julgar é distribuído a órgãos diversos segundo sua função[1].
Tal divisão de trabalhos, a competência funcional, que segundo Chiovenda se caracterizaria sempre pelos apanágios de absoluta e improrrogável[2], assumiria, entre outras formas, a de “distribuição de funções entre órgãos judiciais de distinto tipo em fases sucessivas do mesmo processo, no mesmo grau, fundando-se na diversidade das funções que os distintos órgãos estão chamados a desempenhar sobre a mesma causa em momentos sucessivos do mesmo processo”.[3]
Sendo assim, é correto afirmarmos e assimilarmos que a matéria apreciada pelo Juiz togado é totalmente distinta da matéria apreciada pelo jurado, não havendo sequer sobreposição em parte da mesma, ou seja, não havendo que se falar ou supor nem mesmo em uma hipotética área cinzenta na qual Juiz e Jurado debruçar-se-iam concorrentemente, até porque, se assim fosse, estaria configurada invasão da competência constitucional do Júri. Resultado: Juiz pronunciante e jurado não decidem a mesma questão.
Tentando limitar as ditas invasões na competência alheia, germinou e cresceu entendimento jurisprudencial no sentido de que o juiz deveria ter cuidado com os termos utilizados ao proferir a pronúncia, de forma que a dúvida fosse sempre resolvida em favor da sociedade aplicando-se, em via inversa ao chavão e à mentalidade do in dubio pro reo – do qual comumente se valia o juiz criminal – o chamado in dubio pro societate, com o mérito de abrandar excessivas demonstrações de passionalidade, de todo detestáveis quando feitas por quem julga, gerando, contudo, permissa venia dos mais hóspedes no assunto, uma incongruência técnico-jurídica.
Incongruência encontrada hoje por todos os cantos, em julgados, considerações doutrinárias, tal como a lançada pelos inigualáveis Adriano MARREY, Alberto Silva FRANCO e Ruy STOCO, na obra Teoria e Prática do Júri, aos Juízes – “é aconselhável, por outro lado, que dê a entender, sempre que surja controvérsia a propósito de elementos do crime, que sua decisão, acolhendo circunstâncias contrárias ao réu ou repelindo as que lhe sejam favoráveis, foi inspirada no desejo de deixar aos jurados o veredicto definitivo sobre a questão, a fim de não subtrair do Júri o julgamento do litígio e todos os seus aspectos”[4] (grifo nosso) – que, mesmo inspiradas, pelo objetivo de limitar um pré-julgamento, surtiram o péssimo efeito de “legitimar” uma constante e indevida interferência na competência do Júri, em razão de encerrarem sempre a idéia de existência de dúvidas (dubio) e controvérsias enfrentadas pelo Juiz Pronunciante que se resolveriam em favor da sociedade.
No mesmo sentido encontramos a lição do professor Mirabete[5], que declara em seu livro, o seguinte, in verbis:
“A sentença de pronúncia, portanto, como decisão sobre a admissibilidade da acusação, constitui juízo fundado de suspeita, não o juízo de certeza que se exige para a condenação. Daí a incompatibilidade do provérbio in dubio pro reo com ela. É a favor da sociedade que nela se resolvem as eventuais incertezas propiciadas pela prova. Há inversão da regra in dubio pro reo para in dubio pro societate. Por isso, não há necessidade, absolutamente de convencimento exigido para a condenação, como a de confissão do acusado, depoimentos de testemunhas presenciais etc. Entretanto, os indícios de autoria não se confundem com meras conjecturas, porque aqueles são sensíveis, reais, ao passo que estas, muitas vezes fundam-se em criação da imaginação, não provada, e portanto insuficiente para a pronúncia. Indícios extremamente frágeis, vagos, imprecisos, não legitimam essa decisão.” – concluindo ainda – “Tratando-se de pronúncia, ou seja, de juízo de admissibilidade, as qualificadoras só podem ser excluídas quando manifestamente improcedentes, sem qualquer apoio nos autos, vigorando aqui também, o in dubio pro societate” [grifo nosso].
Indaga-se, contudo: que dúvidas seriam essas que demandariam a aplicação de um especial princípio (in dubio pro societate)? E aqui está o ponto nodal que procuramos desatar, já que, segundo pensamos, a alegação, muitas vezes lançada pelo Julgador na sentença, de que há dúvida quanto à autoria, para depois, lançando mão do aludido princípio, enviar os autos aos Senhores Jurados, além de ir de encontro à técnica, fulminaria (fulmina!) de morte qualquer tese do Ministério Público, transmudando-se aquela dúvida em arma letal para a Defesa rematar uma absolvição, em grande parte dos julgamentos.
Concluímos tal fato, apesar das lições dos doutos, como única verdade, em um ambiente altamente controvertido, da premissa de que nenhum Juiz pode decidir, enquanto houver dúvida quanto à matéria de sua competência, sob pena de expedir uma sentença imperfeita, ensejadora de embargos de declaração, inclusive.
Analisando os embargos de declaração o eminente professor José Carlos Barbosa Moreira chega a comentar que foi acertadamente suprimida (pelo art. 535, inc. I, na redação da Lei nº8.950) a alusão, constante do texto primitivo do Código de Processo Civil, à “dúvida”, que jamais pode existir na decisão, mas apenas ser gerada por ela, em razão da obscuridade ou da contradição[6] (algo que ainda não ocorreu no processo penal, sempre atrasado).
Constata-se o que já é sabido de todos, que não pode o Juiz imiscuir-se na função de Jurado e manifestar-se sobre o mérito da causa.
Destarte, quando o Código menciona que o Juiz apreciará a existência de indícios de autoria, ele não quer dizer que o Juiz apreciará uma fração do fato e, da mesma forma, ele não quer dizer que o Juiz apreciará um pouco daquilo que eventualmente será analisado pelos jurados, não! Não pode, então, o Magistrado afirmar que o fato está quase provado, ou que há dúvidas sobre o fato e por isso envia-o ao Tribunal Popular. Se o fizer, estará julgando-o, ainda que declare o contrário.
A este propósito, a impressão que se tem – e é a idéia sugerida pelos autores da Teoria e Prática do Júri, de acordo com a passagem transcrita acima, e por inúmeros outros renomados autores – é que o Juiz, verificando que há dúvida, só envia a causa para o Júri pela simples observância de um princípio (in dubio pro societate), sendo que, se o fato fosse de sua própria competência, havendo a dúvida, o resultado seria diverso: a absolvição, talvez.
Ora, o jurado julga o crime doloso contra a vida porque existe o princípio do in dubio pro societate ou porque a Constituição assim determina? A questão é de apreciação de prova e de formação de convencimento do Juiz Pronunciante ou de fixação de competência?
Deduzimos que a dúvida mencionada pelos doutos e no próprio nome do princípio não poderia ser sobre a existência de crime, ou melhor, sobre o mérito, já que mesmo se pudesse ser concebida tal controvérsia na mente do Juiz Pronunciante, não teria maior legitimidade (leia-se competência) para se manifestar sobre a mesma da de um Juiz do Trabalho, v.g., já que segundo a Constituição, somente os membros do Conselho de Sentença poderiam dirimi-la.
Então, a melhor técnica revela que o magistrado, não precisa aplicar qualquer princípio especial ou tentar enviar esta ou aquela impressão aos jurados, devendo se contentar com a sua matéria, prova da materialidade e indícios de autoria, valendo dizer que, na verificação desses elementos, inclusive, não poderá ter dúvida, mas certeza. De duas uma: ou admitimos que as dúvidas e controvérsias mencionadas infinitas vezes nas decisões, referem-se diretamente ao mérito, fugindo ao juízo de admissibilidade e invadindo a competência do Júri, o que não pode ser tolerado, devendo ser alterado o entendimento jurisprudencial; ou entendemos que as dúvidas e controvérsias dizem respeito aos próprios indícios de autoria e prova da materialidade, opção que indica que o referido entendimento jurisprudencial é contra legem, já que neste caso o juiz não poderia pronunciar o processado, até porque impossível fundamentar tal decisão e formar um juízo de admissibilidade, na dúvida.
Na prática podemos até imaginar o exemplo no qual o Juiz, analisando os autos constata, eventualmente, haver dúvida sobre a consumação de crime, nada obstante possa aquilatar a existência de indícios de autoria e prova da materialidade, constatando-as, igualmente. No exemplo, como não é de sua competência o julgamento do crime contra a vida, deve abstrair-se, segundo a Lei, de fazer qualquer comentário a este respeito, apontando, por outro lado, os aludidos indícios e pronunciando o réu, ponto final. Se, por acaso, tiver dúvida, também sobre os indícios, não pode pronunciar, devendo impronunciar, fundamentadamente, o que lhe será permitido, sem qualquer invasão da competência alheia. Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio aplica-se às qualificadoras.
De qualquer forma, como conclusão final, verifica-se que não há aplicação do princípio in dubio pro societate na fase de pronúncia, não havendo necessidade prática ou justificativa técnica que autorize sua aplicação.
Noutras palavras, não há privilégio para a sociedade nem desprestígio para o réu, há apenas um juízo de admissibilidade que, como todo outro, só será positivo se presentes os seus pressupostos, in casu: certeza sobre a existência da materialidade e indícios de autoria do fato.
Leonardo Castro Maia é Promotor de Justiça, titular da 10ª Promotoria de Justiça de Governador Valadares, com atribuições para os expedientes da 2ª Vara Criminal de Governador Valadares e Tribunal do Júri e ex-aluno da Faculdade de Direito de Campos.
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[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 19ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1997.
[2] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Traduzido por Paolo Capitanio Campinas. Bookseller. 1998. p. 224.
[3] CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barviery. Campinas: Bookseller, 1999. p.127.
[4] MARREY, Adriano; FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Ruy. Teoria e Prática do Júri. 6ª Edição. São Paulo: RT. 1997. p. 222.
[5] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 7ª Edição. São Paulo: Atlas. 1997. p. 480/481.
[6] BARBOSA MOREIRA, José Carlos, O Novo Código de Processo Civil. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Forense. 1997. p. 154.