Incapacidades naturais, arbitrárias, legais e a condição jurídica do índio brasileiro

O artigo aborda a condição jurídica do índio face ao NCC e as recentes iniciativas governamentais na área previdenciária para protegê-los.

Gisele Leite

Os silvícolas são considerados relativamente incapazes e sujeitos a um regime especial que foi regulamentado inicialmente, pelo Decreto 5.484, de 27/6/1928, que distinguiu entre os silvícolas nômades, aldeados e os pertencentes civilizados.

É importante lembrar a lição de Caio Mário da Silva Pereira que a regra é a capacidade, e a incapacidade é exceção. Somente por exceção e expressamente decorrente de lei, é que se recusa ao indivíduo a capacidade de fato.

Alguns doutrinadores distinguem entre as incapacidades naturais das arbitrárias ou puramente legais, as primeiras decorrentes de um estado físico ou intelectual da pessoa, as segundas ditadas por uma organização técnica das relações jurídicas (Planiol, Ripert et Boulanger).

Toda incapacidade é legal, e inerente da indagação de sua causa próxima ou remota. Não se confunde incapacidade com a proibição legal estipulada a certas pessoas para certos negócios jurídicos, com, por exemplo, proíbe-se ao tutor de adquirir bens do pupilo, a venda de bens de ascendentes aos descendentes, sem o expresso consentimento dos demais descendentes. Tais casos são impedimentos que não traduzem incapacidade.

Seguindo a orientação doutrinária germânica e suíça, o direito pátrio prevê a incapacidade como resultante da coincidência da situação de fato em que se encontra o indivíduo, é a capitis deminutio definida em lei.

Nossos silvícolas legítimos donos da terra brasilis foram dizimados por nossos descobridores e colonizadores, foram expulsos da orla litorânea e pouco a pouco empurrados para o interior. E lá esquecidos à própria sorte.

A educação do índio brasileiro é muito diferente da atual cultura brasileira, sendo mesmo salutar que o legislador pátrio crie um sistema de proteção, daí os considerar como relativamente incapazes.

Em 1967, o SPI, o Serviço de Proteção aos Índios foi extinto, e criada a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). A lei 6.001, de 19/12/1973 dispõe sobre o Estatuto do Índio em seu art. 18 caput dispõe in verbis: “As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade, indígena ou pelos silvícolas”.

O mesmo diploma legal ainda estabeleceu em seus artigos 44, 45 e 46 que as riquezas do solo e do subsolo, nas áreas indígenas só podem ser exploradas pelos silvícolas com exclusividade (grifo nosso).

A posse de tais terras é regulada pela legislação vigente e o Ministério do Interior através de órgão competente dará assistência aos índios e representará os interesses da União, como proprietária do solo, mas a participação e a renda da referida exploração reverterá em benefício da comunidade indígena e constituirá fontes de renda indígena.

A concessão de licença para pesquisa ou lavra a terceiros na salvaguarda do patrimônio indígena, estará condicionada a prévio entendimento com o órgão de assistência ao índio.

O corte de madeira nas florestas indígenas em regime de preservação permanente está condicionado à existência de programas ou projetos para o aproveitamento das terras respectivas na exploração agropecuária.

Em terras indígenas é vedada a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária ou extrativa (art. 18 § 1º Lei 6.001/73).

Já o art. 33 do mesmo diploma legal afirma que o índio integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares adquirir-lhe-á a propriedade plena.

Com a ressalva no parágrafo único de não se aplicar às terras do domínio da União, e as áreas reservadas de que trata o Estatuto do Índio e nem às terras de propriedade coletiva do grupo tribal.

Mais adiante, o art. 38 do mesmo estatuto determina que as terras indígenas são insucapíveis e sobre elas não poderá recair desapropriação, salvo o previsto no art. 20.

Nas transações e negócios, os silvícolas devem necessariamente ser assistidos pelos funcionários do FUNAI. Refere-se ainda à matéria o Decreto-Lei 736, de 06/04/1936, o Decreto 10.652, de 16/10/1942, a Lei 6.001, de 19/12/1973(estatuto do índio), e o Decreto 76.999, de 08/01/1976.

Pelo Novo Código Civil, a capacidade do índio será regulada por lei especial (parágrafo único do art. 4º). Aliás, o mesmo artigo prevê ineditamente como também relativamente incapazes em seu inciso II os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; Houve a incorporação do Dec. 24559/34 e do art. 1.185 CPC que prevêem a interdição total ou parcial.

Segundo Washington de Barros Monteiro o parágrafo único do art. 6º do CC coloca os silvícolas sujeitos ao regime tutelar, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país.

Aliás, a expressão regime tutelar leva-nos a crer na absoluta incapacidade do índio quando claramente o declara como relativamente incapaz sujeito à necessária assistência da FUNAI, isto até que não demonstre estar integrado completamente à civilização.

Deste modo, a incapacidade relativa do índio é provisória ou resolúvel posto que à medida que conviver socialmente poderá vir a ser plenamente capaz.

Na verdade, além da proteção jurídica conferida por nosso ordenamento legal, o índio brasileiro que vive 502 anos de exclusão e, hoje não somos nem capazes de saber quantos eles são.

A Previdência Social e FUNAI tentam ampliar benefícios extensíveis ao povo indígena a fim de minimizar o status de miséria e de dificuldade de acesso a saúde pública e, ainda às repartições previdenciárias para requerer aposentadorias e demais benefícios pertinentes.

Bom, mas para que possamos ajudá-los pelo menos precisamos saber quantos são e aonde encontrá-los, a FUNAI realizará brevemente um novo recadastramento dos indígenas.

Quem sabe assim poderemos dedicar-lhe algum respeito e consideração… Ao primeiro e genuíno dos brasileiros. A propósito, comemorar em 22 de abril o descobrimento do Brasil não será meio surrealista! Ou um senil ufanismo?

Em 1988 a Constituição Federal do Brasil assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Também suas manifestações culturais indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos étnicos do processo civilizatório nacional estão igualmente protegidas.

Ao índio é reconhecido o direito a organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários das terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-as, proteger e fazer respeitar os seus bens.

As terras tradicionalemtne ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, e subsolo nela existentes. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

É vedada a remoção de grupos indígenas exceto em caso de catástrofe ou no interesse da soberania nacional, após deliberação do Congresso Nacional. Teve assento por lá o Cacique Juruna que ficou famoso por portar um gravador para guardar as promessas dos brancos…

Os atos jurídicos produzidos pelos indígenas são nulos e extintos de efeitos jurídicos, principalmente se versarem sobre ocupação, o domínio e a posse das terras e, ainda da exploração das riquezas naturais lá existentes, se realizados sem a indispensável assistência da FUNAI.

E, por derradeiro, o art. 232 da CF/88 estabelece a legitimidade dos índios e de suas comunidades e organizações para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.

No entender de Silvio Rodrigues a incapacidade relativa dos silvícolas interessa mais ao direito público que ao direito privado, ex vi o Capítulo VIII do título VIII da Constituição Federal de 1988.

É importante ressaltar que o silvícola é o brasileiro de civilização primitiva, não aculturado merece proteção especial da União e regulada sua capacidade por estatuto próprio.

A denominação genérica de silvícola serve a todos os povos que habitavam a América pré-colombiana e seus descendentes não aculturados, aliás, a palavra significa literalmente habitante da selva.

Sinceramente esperemos que a selva de pedra não coloque em extinção definitiva o maior representante de nossas raízes, o silvícola.

Gisele Leite é professora de Direito no Rio de Janeiro

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