Incentivar “cultura da doação” aproxima o Estado e a Sociedade

Autora: Luma Cavaleiro de Macêdo Scaff (*)

 

Se em tempos mais antigos o ato de doar dinheiro estava ligado à benevolência, hoje, em tempos modernos, a doação se transforma em um importante instrumento estratégico para reafirmar os compromissos entre Estado e Sociedade no intuito de promover o bem estar social.

Em tempos de crise, enquanto não faltam projetos sociais e pessoas carentes de direitos mínimos, também existem pessoas dispostas a doar dinheiro para causas sociais. Recentemente, em junho de 2017, Bill Gates doou US$ 4,6 bilhões, uma fração de sua fortuna para a Fundação Bill & Melina Gates, instituição de caridade utilizada por ele e por sua esposa para administrar seus esforços filantrópicos[1]. Outro exemplo é a instituição sem fins lucrativos Médicos Sem Fronteiras que apresenta o sistema de micro-doações como uma das principais fontes de financiamento[2], com destaque para a recente campanha “ativistas do sofá” que transformou likes no Facebook em doações[3].

Outra modalidade de promover esse financiamento privado para fins sociais é o crowdfunding[4] que se apresenta como uma alternativa na busca de recursos financeiros privados por meio de uma plataforma administrada por empresas que gerenciam as doações.

No Brasil, essa “cultura da doação” ainda é bastante tímida, talvez por desconhecimento ou pelo emaranhado de normas que regulamentam a matéria. Em 2016, foi publicada uma pesquisa sobre doação no Brasil realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) em conjunto com o Gallup[5] que, dentre outros dados, concluiu que mais da metade da população brasileira fez pelo menos uma doação em dinheiro no ano de 2015, sendo 46% delas para organizações da sociedade civil.

É possível verificar essa iniciativa em algumas empresas tais como a Natura, que através, de um sistema de cupons de compras faz uma doação[6]. Outra prática muito comum na região amazônica é a criação de associações, fundações e outros institutos do Terceiro Setor que recebem doações de mineradoras como formas de parcerias no fomento social.

Se olharmos para países onde os cidadãos se percebem como parte dos problemas locais — e das soluções —, doar se torna um valor social tangível. De acordo com a pesquisa acima mencionada, nos Estados Unidos, por exemplo, o volume de doações é de aproximadamente 2% do PIB, enquanto no Brasil é de 0,23%[7]. Desse modo é preciso compreender quais os mecanismos fiscais existentes nos Estados Unidos capazes de incentivar a doação que possam ser importados e adaptados à realidade brasileira.

Incentivar essa “cultura da doação” aproxima o Estado e a Sociedade por meio da Responsabilidade Social na busca de criar estratégias de autosustentabilidade para que instituições sem fins lucrativos consigam gerar projetos de renda própria.

Compreender que existe uma área de interseção entre o Estado, o Empreendedorismo Social e o Terceiro Setor nos levou a identificar uma figura híbrida que envolve aspectos civilistas como o contrato de doação e também elementos do direito financeiro e tributário tais quais as renúncias fiscais. É a “Doação de Direito Público” que se refere ao dinheiro privado que é destinado por ato de mera liberalidade às finalidades sociais mediante leis de incentivo que geram ao doador determinada vantagem financeira. Em outras palavras, o financiamento privado que gera implicações orçamentárias na construção do bem estar social. Diante disso, três questionamentos merecem destaque:

1. Quem é o doador?;
2. Como funciona a Doação de Direito Público?;
3. Quais os benefícios fiscais para o doador?

Em primeiro, é preciso perguntar: quem é o doador?

Esta é bastante simples: somos pessoas. Os investidores sociais são pessoas físicas e jurídicas que disponham de uma parcela do seu patrimônio, bens móveis ou imóveis, para destinar ao social em ato de mera liberalidade. Em geral, quando conversamos sobre doações a ideia difundida é de milionários e de grandes somas de valores, mas o contrário é de grande importância, o sistema de micro e de pequenas doações.

Em segundo, como funciona a Doação de Direito Público?

Veja que a doação pura e simples prevista no artigo 538 do Código Civil é contrato no qual uma pessoa, por mera liberalidade, transfere parte do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. Outra forma comum é a doação moral ou doação condicionada que é aquela realizada com encargos. Por exemplo: somente realizo a doação de parte do meu patrimônio se a destinação for o abrigo de crianças carentes.

Para a Doação de Direito Público, o particular doa dinheiro privado por meio de uma das leis de incentivo, seja para projetos escolhidos pelo Estado ou para fundos financeiros administrados por entes estatais, obtendo uma modalidade de renúncia de receita[8]. A despeito da liberdade de doar, no caso brasileiro, as leis de incentivo estão estritamente vinculadas à determinada área da atuação, logo, há uma relativização da gratuidade. Se a intenção é realizar uma doação para o fomento do direito à cultura, o doador está adstrito a Lei Rouanet, logo, aos projetos selecionados pelo Ministério da Cultura e publicados em edital próprio ou deve direcionar a doação aos fundos financeiros geridos pelo próprio ente estatal.

Essas leis de incentivo desenham estruturas direcionadas para as seguintes áreas de que dispõe o doador para a doação enquanto investimento estratégico: Estatuto Criança e Adolescente (Lei 8.069/90), Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), Lei do Audiovisual (Lei 8.685/93 e Lei n. 9323/96), Lei Rouanet (Lei 8.313/91), Lei do Desporto (Lei 11.438/06) e Lei da Saúde (Lei 12.715/12). Esses mecanismos financeiros e administrativos ainda podem se apresentar um pouco mais complicados porque acompanham o federalismo fiscal brasileiro.

A doação apresenta impactos civis, pois se transmuta em um contrato, mas também gera impactos financeiros no orçamento público à medida que gera uma medida de compensação financeira que, regra, representa um benefício fiscal — daí sua peculiaridade.

A Doação de Direito Público se apresenta como um mecanismo jurídico que busca contribuir para a cultura da doação na qual o indivíduo possa se reconhecer enquanto parte dos problemas e como ente capaz de solucionar, ainda que em parte, as questões do dia a dia.

Sobre o tema, a obra Doação de Direito Público e Direito Financeiro* analisa quais os mecanismos existentes vantajosos ao investidor social que deseje contribuir para a “cultura da doação”, traçando um estudo comparativo entre o Brasil e os Estados Unidos. Esse livro é resultado da pesquisa de doutorado em Direito mediante orientação do professor doutor Regis Fernandes de Oliveira na Universidade de São Paulo.

* O lançamento da obra ocorre no dia 21 de setembro de 2017 às 19h na VII Conferência da Advocacia do Estado do Pará no hall do Teatro Maria Sylvia Nunes, na Estação das Docas, na cidade de Belém (PA).

 

 

 

Autora: Luma Cavaleiro de Macêdo Scaff  é advogada. Doutora em Direito Financeiro na Universidade de São Paulo. Mestre em Direitos Humanos na Universidade de São Paulo. Professora na Universidade Federal do Pará.

 


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