Autora: Betina Treiger Grupenmacher (*)
Foi aprovado pelo Senado no dia 14 de dezembro de 2016 projeto de lei que introduz significativas alterações na Lei Complementar 116/03, razão pela qual tem sido nominado como “reforma do ISS”.
Além da fixação da alíquota mínima e de outras tantas inovações, como por exemplo, a definição do local da prestação para os contratos de leasing e a introdução do subitem 6.02 “outros serviços de transporte municipal” — o que poderá alcançar o transporte de passageiros por veículos habilitados pelo Uber —, merece especial atenção o acréscimo do subitem 1.09 à Lista de Serviços, que introduziu os contratos de streaming como passíveis de incidência de ISS, o qual restou assim redigido: 1.09 – Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS).
É fato que a alteração da lista de serviços para introduzir a cessão do conteúdo de vídeo, imagem e som, se deu em razão da insatisfação das empresas concessionárias de TV por assinatura, em face do baixo custo dos contratos relativos ao Netflix, ao Spotify e outros similares, com consequente prejuízo à competitividade no setor. Ocorre, no entanto, que ao atender aos reclamos das empresas de TV por assinatura e diante da possibilidade de incremento de arrecadação para os municípios, o Poder Legislativo Federal introduziu uma vez mais regra inconstitucional no sistema.
Não temos qualquer dúvida de que os contratos de streaming não se subsumem à definição de serviço para fins de incidência de ISS e, portanto, não se inserem na materialidade do referido imposto.
Segundo o que se depreende com segurança da regra atributiva de competência, constante do artigo 156, inciso III da Constituição Federal, os Municípios só podem instituir ISS sobre prestações de serviços que caracterizem obrigações de fazer, já que as obrigações de dar e os serviços de transporte e de comunicação estão insertos na competência impositiva dos Estados.
A compreensão de que o ISS só pode incidir sobre obrigações de fazer, nunca sobre as obrigações de dar está, inclusive, sedimentada no âmbito do STF[1]. Não bastasse o entendimento da nossa Corte Constitucional, a doutrina também é unânime no mesmo sentido. Merece referência a definição de serviços para fins de incidência de ISS ofertada por Marçal Justem filho, que assim se manifesta: “Prestação de esforço (físico-intelectual) produtor de utilidade (material ou imaterial) de qualquer natureza, efetuada sob regime de Direto Privado, que não caracterize relação empregatícia”.[2]
O streaming é um mecanismo de distribuição de dados por meio de pacotes. As informações distribuídas não são armazenadas pelo usuário que recebe a mídia a ser reproduzida. Portanto, não há serviço enquanto obrigação de fazer de natureza física ou intelectual, desempenhada sob regime de direito privado, nos contratos em questão.
Trata-se, como inclusive se verifica da própria redação do subitem em análise, de disponibilização sem cessão definitiva do conteúdo nele descrito. É extreme de dúvidas que as cessões de direitos não se equiparam às prestações de serviços. São, definitivamente, duas realidades jurídicas absolutamente distintas. Em relação à primeira, qual seja a cessão de direitos, não há previsão constitucional de cobrança de quaisquer impostos. O que queremos dizer é que o constituinte não contemplou entre as competências impositivas federais, estaduais, municipais e distritais, a cessão de direitos, como passível de incidência tributária. Assim, para que algum imposto pudesse ser cobrado em relação à remuneração dos contratos de streamig, a única hipótese viável seria o exercício, pela União, de sua competência residual, em razão da qual, atendidos os requisitos previstos no artigo 154, inciso I da Constituição Federal, um imposto sobre cessão de direitos poderia ser cobrado. No entanto, na ausência de lei complementar federal instituidora de tal exação, não há possibilidade de que a cessão de direitos seja objeto de tributação pelas pessoas políticas de direito público.
Ressalvamos ainda que os contratos de streaming não se subsumem também à materialidade do ICMS-Comunicação, uma vez que não há relação comunicativa entre o cedente e o cessionário, ou seja, entre a empresa que disponibiliza o conteúdo e o assinante que o contrata. Acreditamos que tal premissa se aplica por igual às empresas concessionárias de TV por assinatura, cujo contrato, igualmente, não contempla a prestação de serviço de comunicação, já que o cessionário (assinante) não se comunica com a empresa contratada para transmissão de programação televisiva, apenas recebe os sinais com o conteúdo contratado.
Embora a tecnologia empregada na transmissão de conteúdo nas TVs por assinatura seja distinta daquela relativa ao streaming, pois na primeira os dados são transmitidos por cabo ou micro-ondas e na segunda por fluxos de informações transmitidas pela rede mundial de computadores, o objeto dos contratos é o mesmo, qual seja, a disponibilização de áudio, vídeo e imagens, razão pela qual tanto uma como outra não se inserem quer na materialidade do ICMS quer na do ISS.
A propósito e afinal, pensamos que, inclusive, nenhuma das hipóteses de cessão de direitos contempladas na lista de serviços anexa à Lei complementar 116/03, poderia ser alvo da incidência de ISS, em face dos fundamentos até aqui apresentados, ou seja, de não se subsumirem ao conceito constitucional de serviços para fins de incidência do referido imposto os “serviços” descritos nos subitens; 1.05[3] que alcança as cessões de direitos de uso de programas de computação, 3.02 relativa à cessão de direito de uso de marcas e sinais de propaganda[4], 15.08 no que concerne à cessão de contratos de crédito e 15.09 quanto à cessão de direitos[5].
Autora: Betina Treiger Grupenmacher é advogada, professora associada de Direito Tributário da UFPR, pós-doutora pela Universidade de Lisboa, doutora pela UFPR e visiting scholar pela Universidade de Miami.