Existe uma controvérsia muito grande quanto à incidência ou não do ISS na operação de leasing de veículos, conhecida como de arrendamento mercantil. Veremos que as três posições da jurisprudência acerca do tema não esgotam essa matéria bastante complexa, principalmente, se atentarmos para a realidade do chamado arrendamento mercantil, existente no mercado consumidor, traduzida por uma deturpação conceitual, que transforma o leasing em compra e venda a prazo.
Alguns autores entendem que o contrato de leasing tem por traço fundamental a operação de financiamento e não a utilização temporária do bem, fato que o torna distinto do contrato de locação de bens móveis, incluída no item 52 da lista de serviços anexa ao DL 406/68, com a redação dada pelo DL 834/69. Sustentam que, por tais razões, as empresas que operam com arrendamento mercantil estão invariavelmente vinculadas a uma instituição financeira. É a tese defendida, por exemplo, por Sampaio de Lacerda para quem o leasing constituiria uma operação financeira. (O leasing e a sua aplicação no campo do direito aeronáutico, RF, 250/425). Outros, analisando o conteúdo fático do negócio, afirmam a existência de um fator preponderante, qual seja, a locação de bens móveis, advogando a incidência do ISS. Perfilham esse posicionamento, dentre outros, Garcia Hilário (RF-250/70/5) e Luiz Mélega para quem o leasing é um caso particular de locação de bens móveis (RF-250/89/98). Finalmente, existe uma terceira corrente que defende a sua tributação pelo ISS apenas a partir do advento da Lei Complementar n. 56, de l5 de dezembro de l987, sob a afirmativa de que o arrendamento mercantil foi expressamente incluído na lista de serviços, no item 79.
Esses três entendimentos foram acolhidos pela jurisprudência de nossos tribunais, como veremos a seguir.
1 – Pela incidência
a) “ISS. Arrendamento mercantil de coisas móveis (leasing). Incidência do Imposto sobre Serviços. Subsunção à categoria prevista no item 52 da Lista. Razoável o entendimento de que a prestação habitual, pela empresa de serviço consubstanciado no arrendamento mercantil (leasing) de bens móveis, está sujeito ao ISS, em correspondência a categoria prevista no item 52 da lista. Recurso Extraordinário não conhecido.”
(RE 106047-6-SP, STF – la. T., Rel. Min. Rafael Mayer, in RTJ-ll6/8ll). No mesmo sentido: RE 107.864-2-SP, in RTJ-117/1349 e RE 108.665-3-SP.
b) “ISS – Operações de Leasing – Arrendamento mercantil complexo. O arrendamento mercantil (leasing) é de natureza complexa, preponderando a locação de bens móveis, perfeitamente enquadrável no Decreto-Lei 406/68, lista de serviço, item XVIII. O arrendamento, sua repercussão econômica, a contraprestação pelo serviço prestado constituem o fato gerador do imposto de competência dos municípios sobre serviços de qualquer natureza. Recurso provido”.
(Resp 14716-SP, STJ, lª. T. Rel. Min. Garcia Vieira, v.u., DJ de 3/2/92, p. 446) No mesmo sentido, dentre outros: Resp 61-SP, DJ 4.12.89, p. 17878 e Resp 5.438-SP, v.u., DJ 18.3.91, p. 2778.
c) “Serviços de qualquer natureza – Contrato de arrendamento mercantil – Leasing – Conceito – Fato preponderante da locação de bens móveis – Sujeição ao tributo – Improcedência da ação declaratória. Recurso provido – Voto vencido”.
( lº. TACSP, 5a. C, in JTACSP l05/92). No mesmo sentido, dentre outros os acórdãos insertos na: RT-593/l39 e RT-598/109.
2) Pela não-incidência
a) “Tributário. Imposto sobre serviços. Contrato de leasing ou arrendamento mercantil. Não-incidência do tributo. O leasing ou arrendamento mercantil é contrato típico, de características próprias, embora adotando peculiaridades de outras avenças. Não podendo ser incluído na categoria de contrato locatício de bens móveis, na operação de leasing não incide o imposto sobre serviços. Recurso especial conhecido e provido”.
(STJ – 2ª.T -Resp 322-SP, Rel. Min. Hélio Mosimann, v.u., DJ 26.11.90, p. 13768). No mesmo sentido, dentre outros: Resp 341-SP, DJ 23.3.92, p. 3466; Resp 2732-SP, DJ 25/11/91, p. 17039; Resp-SP 2646, DJ 3/2/92, p. 450.
b) “Tributário. ISS. Contrato de “leasing”. I – Esta Colenda Corte, a partir do julgamento dos embargos de divergência no recurso especial n. 2732-SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, se posicionou no sentido de que sobre os contratos de “leasing” não incide imposto sobre serviços, motivo por que é um contrato típico, não relacionado na “lista de serviços” taxativa, anexa ao Decreto-Lei n. 406/68. II – recurso desprovido”.
(Resp 328, 2ª T., Rel. Min. Jose de Jesus Filho, DJ 24/5/93, p. 9989)
c) “Arrendamento mercantil ou leasing. Não-incidência do ISS. Incabível sua inclusão no item 52 da lista do Decreto-lei 406/68, como locação de bens móveis. O arrendamento mercantil ou leasing é categoria que não se confunde com a locação de bens, por expressiva diferenciação entre ambos. Descabe generalização que inclui leasing no item 52 da Lista Anexa ao Decreto-lei 406, com a redação do Decreto-lei 834/69.”
(lº. TACSP, in Repertório IOB Jurisprudência l/596). No mesmo sentido, dentre outros, os seguintes julgados do lº. TACSP insertos na: RT-62l/ll9, JTACSP-99/9l, JTACSP-l05/92, JTACSP-l08/l32 e RT-598/207.
3 – Pela incidência somente após a LC 56/87
a) “Tributário. ISS. Arrendamento mercantil. (Leasing). O ISS só passou a incidir sobre as operações de leasing a partir da vigência da LC n. 56/87, quando o arrendamento mercantil passou a figurar na lista de serviços anexa ao DL n. 406/68- Recurso conhecido e provido”
(Resp 9155-SP, STJ, 1ª T., Rel. Min. César Asfor Rocha, DJ 30/8/93, p. 17270). No mesmo sentido, Resp 28467-SP, DJ 30/8/93, p. 17274; e Resp 5438-SP, DJ 14/8/95, p. 23971.
b) “Arrendamento mercantil – Leasing – ISS – Incidência somente após o advento da Lei Complementar 56/87, que expressamente o incluiu no item 79 da nova lista de serviços tributáveis – Contrato típico que antes da referida norma não se incluía na tributação reservada à locação de bens móveis da lista a que se refere o art. 8º. do Dec-lei 406/68. Inadmissível, por falta de previsão legal, a incidência do ISS nos contratos de arrendamento mercantil anteriormente ao advento da Lei Complementar 56/87, que expressamente o incluiu no item 79 da lista de serviços tributáveis, não podendo tais ajustes típicos ser enquadrados, antes da referida norma, na tributação reservada à locação de bens móveis da lista a que se refere o art. 8º. do Dec-lei 406/68”.
( lº. TACSP – 2a. C, in RT-629/l47).
Aparentemente, a tese da incidência do ISS a partir do advento da Lei Complementar nº 56/87 estaria pacificada. Contudo, o problema não é tão simples assim. Para o perfeito equacionamento desta questão impõe-se a correta definição, em termos de direito positivo, do que seja leasing para verificar se aquilo que a lei denominou de serviço tributável caracteriza, de fato, prestação de serviço. Não basta a simples previsão na lista da LC nº 56/87, mesmo porque, essa lei complementar padece do vício formal de inconstitucionalidade. De fato, está escrito no Diário do Congresso Nacional do dia 02.12.87, secção 2, p. 3.468, que o respectivo projeto de lei complementar, por acordo de lideranças, foi submetido ao Plenário simbolicamente, com o que afrontou o então vigente art. 50 da Emenda n. 1/69, correspondente ao art. 69 da Carta Política de 1988. Na ausência de quorum específico e qualificado não há que se falar em lei complementar. Não pode, também, o referido diploma legal subsistir como lei ordinária na medida em que veicula matéria expressamente reservada à lei complementar. Trata-se de diploma natimorto. Não há e nem pode haver possibilidade de suprimir-se o requisito constitucional por acordo de lideranças. A Carta Magna não conferiu aos congressistas tal faculdade.
É importante lembrar, outrossim, que a expressão serviços de qualquer natureza, com que foi contemplado o exercício do poder tributário municipal, não chega a permitir que o Município crie serviços por ficção jurídica. O que não é serviço não pode a lei, complementar ou ordinária, dizer que o é. E o leasing não se confunde com a locação de bens móveis. Nesta existe a circulação de serviço, isto é, venda de bem imaterial, qual seja, a venda do direito de usar e gozar da coisa locada, por um prazo determinado. Na locação de bem móvel imprescindíveis a presença de três elementos essenciais: a entrega da coisa locada ao locatário para o seu uso e gozo; a temporariedade da cessão de uso e gozo, e, finalmente, o preço, traduzido por renda ou aluguel.
O leasing é um contrato típico, formado com elementos retirados de outros contratos tradicionais como de locação de bens móveis, de compra a prestações, de mútuo etc., que lhe atribui características peculiares. O leasing, conhecido como arrendamento mercantil, é um negócio jurídico realizado entre pessoa jurídica, na qualidade de arrendadora, e pessoa física ou jurídica, na qualidade de arrendatária, e que tenha por objeto o arrendamento de bens adquiridos pela arrendadora, segundo especificações da arrendatária e para uso próprio desta. Esse contrato envolve, necessariamente, uma operação de financiamento para aquisição de veículo, máquina, equipamento ou imóvel pela arrendadora, bem como, a opção de compra pelo arrendatário ao final do prazo contratual (parágrafo único do art. 1º e art. 5º da Lei nº 6.000/74). Sem o investimento a que se obriga o arrendante e sem a cláusula de opção de compra pelo valor residual, a ser exercitada pelo arrendatário, no final do prazo contratual, não há que se falar em leasing.
Três hipóteses podem ocorrer no final do prazo contratual, por decisão unilateral do arrendatário: a) tornar-se o arrendatário proprietário do bem arrendado, mediante o pagamento do valor residual previamente estipulado; b) devolução da coisa arrendada; c) renovação do arrendamento por um preço inferior ao do primeiro período de arrendamento.
Logo, somente no final do prazo contratual é que se tornará possível a ocorrência do fato gerador do ISS. Em havendo opção de compra ensejará operação de circulação de mercadoria, isto é, ocorrerá o fato gerador do ICMS (art. 116, II do CTN) descabendo cogitação de ISS.
Assim, data venia, falece de rigor jurídico os posicionamentos da doutrina e da jurisprudência, que defendem a tributação do leasing, pelo ISS, levando em conta o que denominam de aspecto preponderante da locação de bens móveis, como que antecipando o advento da condição que iria definir o fato gerador do ISS. Se o fisco estadual fizesse o mesmo em relação ao ICMS estaria deflagrada a guerra tributária entre as duas esferas impositivas. Realmente, se o Município pode presumir o não-exercício da opção de compra nada impediria de o Estado-membro presumir o contrário. E assim o conflito estaria instaurado. Para que se tenha por ocorrido o fato gerador de um imposto é imprescindível a subsunção do fato concreto à hipótese legal, o que afasta a teoria da preponderância da locação de bens móveis.
Todavia, o fato mais importante é a constatação de que os chamados “contratos de arrendamento mercantil”, em sua esmagadora maioria, marcaram contratos de compra e venda a prazo. Fizemos essa constatação quando tivemos oportunidade de analisar inúmeros contratos da espécie, em função da alteração da política cambial, que afetou profundamente o equilíbrio econômico daqueles contratos. Em todos eles constavam cláusula obrigando o arrendatário a pagar o valor residual juntamente com as prestações do arrendamento. Era seguinte a redação dessa cláusula padrão: A obrigação da ARRENDATÁRIA de pagar o Valor Residual é autônoma, absoluta e indiscutível, e deverá ser cumprida mesmo que a ARRENDATÁRIA não opte pela compra dos Bens”.
Ora, esse fato descaracteriza o arrendamento mercantil regido pela Lei nº 6099/74. Irrelevante a sua denominação formal, se o exame do conteúdo fático do negócio está a revelar uma compra e venda a prazo. Seria o mesmo que denominar o IPMF de CPMF para tentar fugir da proibição do art. 167, IV da CF.
Por isso, recentemente, a Quarta Turma do STJ decidiu que a cobrança antecipada do valor residual de um contrato de leasing descaracteriza o acordo, que deixa de ser uma forma de arrendamento e passa a ser compra e venda a prazo de um bem (Resp 160448-RS, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar). Em sentido contrário decidiu a Terceira Turma do STJ: O pagamento antecipado do chamado Valor Residual Garantido (VRG), não se descaracteriza o contato de leasing, menos ainda o transforma em contrato de compra e venda a prestações (AGA 175562-RS, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ de 7-12-98, p. 83). Na verdade, o princípio da livre pactuação, implícito nessa última decisão, não pode implicar alteração de determinados conceitos incorporados pelo direito positivo. Nem mesmo o legislador tem a liberdade de inovar conceitos universalmente aceitos, porque integrados à Teoria Jurídica. Não se pode admitir, por exemplo, venha o legislador denominar de compra e venda um contrato em que falte o seu elemento essencial, que é o preço, ou, sem que esteja presente o efeito que lhe é próprio, qual seja, a transmissão da propriedade da coisa vendida. Em Direito nem tudo pode ser resolvido através de denominações, sob pena de provocar o desmoronamento do edifício jurídico.
Concluindo, na operação de leasing, por se tratar de contrato típico, não caracterizador de prestação de serviço, só poderá ser tributada pelo ISS no final do arrendamento sem o exercício da opção de compra. Exercitado o direito de compra, ou, constando do contrato o pagamento obrigatório e antecipado do valor residual, caracterizado estará a operação de compra e venda a ensejar incidência do ICMS. Duplamente irrelevante a inclusão do leasing na lista de serviços pela LC n. 56/87: primeiramente, porque a lei não tem o poder de criar um serviço por ficção, sendo certo que a própria jurisprudência atual reconhece não se confundir com o serviço de locação de bens móveis; em segundo lugar, porque a citada lei complementar é de inconstitucionalidade manifesta, por ter sido aprovada por votos de liderança, sem o quorum específico e qualificado.
*Kiyoshi Harada
Diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de direito administrativo, tributário e financeiro, ex-procurador-chefe da consultoria jurídica da procuradoria-geral do município de São Paulo (SP)