Autor: João Marcos Braga (*)
Após o recesso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal analisará a Ação Declaratória de Constitucionalidade 43, em que o Partido Ecológico Nacional (PEN) ventila a constitucionalidade do Artigo 283 do Código de Processo Penal.
Nessa ação constitucional, o STF terá a oportunidade de fazer as pazes com a história da teoria do delito. Digo isso porque as premissas metodológicas assentadas no julgamento do HC 126.292/SP se encontram, data venia, atrasadas em mais de um século na evolução do conceito de culpabilidade.
A tradição anglo-americana separa o momento de afirmação da culpabilidade do da imposição da pena, nesse contexto, a pena seria uma entidade autônoma, dissociada da culpabilidade[1]. De outro lado, na tradição europeia, em que se firmou o Ordenamento Jurídico brasileiro, a pena é a consequência jurídica do delito e a culpabilidade é o elo entre os dois fenômenos, crime e pena. Modernamente, pode-se dizer que a culpabilidade é o limite e a medida da pena.
Entretanto, nem sempre, na história da dogmática penal, a culpabilidade se projetou sobre a pena, limitando-a. O sistema causal, hoje sintetizado no denominado sistema Liszt-Beling, ao formular a teoria psicológica da culpabilidade, entendia ser essa uma categoria descritiva — empírica — do elemento subjetivo do crime, não comportando qualquer espécie de graduação. De acordo com esse paradigma científico, a culpabilidade seria integrada pela: 1) imputabilidade; 2) pelo dolo; e 3) pela negligência, representando o vínculo psicológico (subjetivo) entre a conduta e o resultado. A afirmação do vínculo psicológico entre o autor e o delito resultava de uma mera constatação de que o agente, imputável, havia atuado com dolo ou com culpa, a sua essência era composta exclusivamente de elementos empíricos sujeitos a um juízo puro de cognição. De outro lado, o vínculo causal — objetivo — estaria definido no âmbito do injusto. Assim, a estrutura dogmática do delito limitava-se à descrição dos vínculos objetivos e subjetivos entre a conduta e o resultado, empiricamente verificáveis na realidade[2].
Na regência do positivismo criminológico, típico dessa fase embrionária da teoria do delito, a graduação e a medida da pena ocorreriam a partir dapericulosidade do agente, seguindo os parâmetros de referência utilizados no positivismo etiológico e incorporados na teoria do direito penal por meio da dogmática da pena[3].
Mais tarde, a partir do neokantismo e de forma inaugural na obra de Reinhard Frank, foram agregados à base empírica do sistema Liszt-Belingelementos normativos, retratando a culpabilidade como um juízo de valor sobre o comportamento injusto, concluindo em uma reprovabilidade jurídica imposta ao autor pelo fato praticado[4]. É com a publicação de Sobre a Estrutura do Conceito de Culpabilidade, ainda no início do século XX, (1907), que a culpabilidade passa a ser entendida como reprovabilidade e, assim, ocorre a viragem normativista da categoria [5]. É essa situação que permitirá a projeção da culpabilidade sobre o fenômeno da pena.
Ao distanciar-se do modelo naturalista, a teoria do delito procurou um fundamento autônomo, próprio das ciências do espírito, capaz de garantir ao injusto e à culpabilidade formas de interpretação da realidade a partir de determinados valores para além da limitação meramente descritiva dos fenômenos empíricos[6]. A reprovabilidade, instituída por Frank, consubstancia peça central da projeção da culpabilidade sobre a pena, consolidando, na dogmática jurídico-penal, o elo entre a teoria do delito e a teoria da pena[7]. Posteriormente, a partir da obra de Goldschmidt[8], a reprovação passou a ser detalhada como infração a uma norma específica de dever¸ consubstanciada em um juízo sobre as características defeituosas da ação. Essa segunda contribuição possibilitou importante desenvolvimento ao conceito normativo, reforçando a função instrumental como juízo de valor. A última consequência do conceito normativo é apresentada por Freundenthal[9], como o reconhecimento da inexigibilidade de comportamento adequado à norma como causa geral de exclusão da penal.
É com o advento do finalismo, teoria adotada na reforma do Código Penal pela Lei 7.209/84, que a culpabilidade ganha o caráter mais radical quanto ao afastamento de todo e qualquer elemento empírico na formulação do conceito desse elemento do delito. Trata-se da teoria normativa pura, que, como bem lembra Juarez Tavares, buscou “excluir desse juízo— culpabilidade — qualquer base empírica, concebendo a culpabilidade como um puro juízo de valor, decorrente de enfoques categoriais e realizado sobre o poder agir de outro modo” [10]. O resultado do processo de normatização é a consolidação do juízo de culpabilidade como juízo de valor (reprovabildiade), como reprovação do sujeito que, embora na situação concreta pudesse agir conforme a expectativa do direito, optou pelo ilícito.
O finalismo compreende que os enunciados sobre a culpabilidade seriam consequência da ordem jurídica e não, propriamente, do fato injusto, este último já caracterizado no âmbito da tipicidade e da antijuridicidade. Nesse contexto, a culpabilidade passa a ser um juízo de valor sobre o comportamento injusto, concludente de uma reprovabilidade jurídica imposta ao autor do fato praticado. Em face disso, a culpabilidade não seria mais somente um objeto a ser constatado, mas também a ser criado[11].
A partir da década de 70 do século passado, a culpabilidade passou a ser percebida como o limite e a medida da pena. É bem verdade que essa concepção, decorreu do embate entre o naturalismo (teoria psicológica), neokantismo (teoria psicológica-normativa) e ontologismo-fenomenológico (teoria normativa)[12]. É a partir do modelo teórico proposto por Roxin que a moderna teoria da culpabilidade ganha nova roupagem, ela deixa de ser um juízo compreensivo dos elementos subjetivos do tipo, segundo a tradição causal, tampouco se constitui num juízo de reprovabilidade, conforme a teoria normativa e o finalismo[13]. Passa a ser um juízo de responsabilização sobre a motivação do agente.
A ampliação do sentido dogmático de culpabilidade para a ideia de responsabilidade e a harmonização desse com as perspectivas político-criminais, tal como proposto por Roxin, agrega as distintas funções de limitação e de graduação da pena. Se a teoria normativa pura, definida a partir da ideia de retribuição, firmava parâmetros inegociáveis de retribuição, no sentido de que a pena deveria corresponder exatamente ao grau de culpa, ao incorporar as perspectivas preventivas, Roxin opera uma readequação da culpabilidade às novas diretrizes político-criminais. Nesse novo contexto, é possível se concluir que: 1) o juízo de culpabilidade está sempre associado a uma determinação da responsabilidade com base na necessidade da pena[14]; 2) se a pena é desnecessária para fins preventivos, não deverá ser imposta [15]; 3) se o fato é de pequena gravidade, ainda que não seja insignificante, a pena pode ser extinta [16]; 4) se as condições fáticas do art. 59 do Código Penal são favoráveis ao réu, a pena deve ser reduzida abaixo dos limites fixados pela culpabilidade[17].
A Constituição da República de 1988, ao afirmar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, presta integral adesão aos pressupostos assentados desde o século passado — a partir da obra de Frank —, segundo os quais a culpabilidade não é um juízo empiricamente constatado, conforme previa o modelo Liszt-Beling, mas sim um juízo criado pelo Poder Judiciário a partir da autonomia do indivíduo e do grau de lesão ao bem jurídico referenciado na norma.
Somente após o trânsito em julgado é que a pena poderia ser imposta ao indivíduo, até esse momento, deveria prevalecer o princípio da presunção de inocência. É que, como dito antes, a culpabilidade e a pena são indissociáveis na tradição do Direito Penal brasileiro, sendo que aquela é o exato limite dessa. Como a culpabilidade apenas é consolidada com o exaurimento do exercício da jurisdição, a pena também deveria ficar condicionada a esse marco temporal.
Antecipar a formação do juízo de culpabilidade à análise do processo em segundo grau, sob o fundamento de que as circunstâncias fáticas estariam definidas, parece ter como pressuposto que a culpabilidade é um elemento constatável empiricamente, segundo o qual o agente agiu com dolo ou culpa. Ocorre que essa premissa se encontra atrasada em mais de cem anos de evolução na teoria do delito, sobretudo porque modernamente a culpabilidade é entendida como um juízo normativo acerca de uma conduta humana analisada judicialmente.
Pode-se dizer que o princípio da culpabilidade, tal como concebido pela dogmática penal de hoje em dia, é um importante instrumento de proteção do indivíduo frente ao poder do Estado, notadamente porque esse princípio:a) restringe a responsabilidade penal apenas ao autor do delito; b) afasta a possibilidade da incidência da sanção penal quando inexistente um vínculo subjetivo; c) excluí a responsabilidade pelo resultado[18]; d) diferencia e valora graus de responsabilidade distintos[19]; e) garante a proporcionalidade da pena em relação à ação lesiva do bem jurídico. Conclui-se que a partir da perspectiva moderna, a culpabilidade passou a ser o limite e a medida da pena, esse elemento consubstancia-se hoje num juízo de valor sobre a motivação do agente, firmado a partir da verificação concreta do nível de acesso que o sujeito teve às regras que impõem condutas.
Esses elementos limitadores do poder punitivo não se encontravam presentes na antiga teoria causal. Entretanto, a partir do conceito normativo de culpabilidade, que perdura até hoje, esse juízo passou a estar submetido a uma análise mais depurada, de maneira que a culpabilidade é uma etapa significativa de proteção ao autor frente ao poder de intervenção do Estado[20].
Nesse contexto, é possível se concluir que parece historicamente atrasada, sob o ponto de vista da evolução da teoria do delito, a conclusão firmada, pelo STF, no HC 126.292/SP, de que os juízos firmados em primeiro e segundo grau, por serem soberanos na delimitação dos fatos do caso, são suficientes para a imposição da pena ao indivíduo.
A moderna teoria da culpabilidade é essencialmente normativa e o conteúdo dos argumentos judiciais que a afirmam devem ser controlados pelos órgãos judiciais superiores, sobretudo para que os espaços abertos pelas circunstâncias de instituição da pena não convertam a sentença em um mero juízo de reprovação moral, em violação ao princípio da legalidade. Daí a importância da ADC 43, que, sem dúvida, vai oportunizar ao STF reconciliar-se com a história da teoria do delito. A maioria dos estudiosos do Direito Penal e do Processo Penal aguarda ansiosamente as pazes entre o Pretório Excelso e a história da teoria do delito.
Autor: João Marcos Braga é bacharel em Direito pela UnB. Pós-Graduando em Direito e Processo Penal pelo IDP e em Direito Penal pelo IBCCRIM-Coimbra. Membro da Comissão de Assuntos Criminais da OAB/DF. Advogado Criminalista em Brasília, associado ao Escritório TTB Advogados Associados.