1.A pretexto de fiscalizar o exercício da profissão de contabilista (gênero do qual são espécies o técnico em contabilidade e o contador), mister para qual fora criado (Decreto-Lei nº 9.295, de 27 de maio de 1946), o Conselho Federal de Contabilidade – CRF instituiu – através da Resolução nº 853/99 – o denominado Exame de Suficiência.
2.Trata-se de um novo requisito, consistente num processo seletivo de “aferição” da qualificação profissional, sem o qual fica o diplomado impossibilitado de registrar-se junto aos Conselhos regionais competentes e, por conseguinte, de exercer sua prerrogativa de trabalho.
3.Essa nova condição, ao meu ver, constitui atentado contra o princípio constitucional do LIVRE EXERCÍCIO PROFISSIONAL, conforme restará sobejamente demonstrado.
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EXAME DE ORDEM e EXAME DE SUFICIÊNCIA
4.Convém frisar que a presente cizânia não se confunde com a questão vivida pelos advogados concernente ao exame de ordem, posto que este ampara-se no artigo 8º, IV, da Lei nº 8.906 de 4.7.1994 (Estatuto da Advocacia). Já o indigitado exame de suficiência existe apenas por força de uma resolução (ato administrativo), totalmente desprovido de respaldo legal.
5.Em que pese respeitáveis opiniões contrárias, o exame de ordem aplicado pela Ordem dos Advogados do Brasil é perfeitamente admissível, visto que trata-se de requisito imposto por lei ordinária.
6.Acontece que a Lei (sentido restrito) identifica-se com o direito positivo, jus positum, direito positivado pelo Estado, vez que constituída através do devido processo legislativo (artigos 59, III, e 61 da Constituição Federal). E, como se sabe, num Estado onde a forma de governo é a DEMOCRACIA, “lei é a solene manifestação de vontade do povo” (Gaio, I, 3).
7.Por sua vez, o desditoso exame de suficiência, idealizado única e exclusivamente pelo Conselho Federal de Contabilidade, não se submeteu ao processo ordinário próprio das leis. Não se sujeitou, portanto, ao necessário crivo popular.
8.Vale frisar que, para criar o exame de suficiência como requisito para obtenção do registro profissional, o CFC tentou respaldar-se no art. 12 c/c art. 6º, “a” e “b” do Decreto-lei nº 9.295/46. Tais dispositivos, contudo, não se prestam ao fim colimado, uma vez que apenas delegam ao CFC poderes para organizar e fiscalizar seu quadro de inscritos.
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DA INCONSTITUCIONALIDADE
9.Como se sabe, nosso ordenamento jurídico é constituído por um conjunto de normas, hierárquicas e harmônicas entre si, tendo como base a supremacia da Constituição Federal, de tal forma que todo o sistema deve subsunção aos princípios e preceitos nela assentados.
10.No caso vertente, a guerreada resolução excedeu os limites legais e constitucionais aos quais todo ato administrativo está adstrito. Tais limitações são fundamentais para a garantia do princípio da segurança jurídica, sem o que, estabelecer-se-ia o caos com a invasão dos diversos agentes na esfera de competência uns dos outros.
11.Não se pode perder de vista que RESOLUÇÃO é um ato administrativo normativo inferior à lei e, nessa qualidade, não pode inová-la ou contrariá-la, muito menos ir além do que ela permite, mas unicamente completá-la e explicá-la. No que o ato administrativo infringir ou extravasar a lei, nos ensina a doutrina e jurisprudência, é irrito e nulo, por caracterizar situação de ilegalidade.
12.Principalmente maculado, no caso em comento, foram os princípios concernentes ao LIVRE EXERCÍCIO PROFISSIONAL insculpidos no dispositivo da Constituição Federal abaixo transcrito:
Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.
13.Resta indene de dúvidas que o real significado dado pelo Legislador Constituinte à expressão “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” só poderá ser obtido de forma restritiva, como de fato vem fazendo o Supremo Tribunal Federal, na interpretação dos dispositivos constitucionais vigentes.
14.A mencionada frase, consoante a remansosa doutrina e jurisprudência, identifica a existência de pelo menos dois elementos necessários a autorizar alguma restrição ao exercício profissional: o primeiro é que tal restrição seja concernente à capacidade técnico-profissional; e, o segundo, que o regramento seja erigido por lei (no sentido formal e material).
15.No caso em tela, entretanto, o segundo elemento não foi atendido, posto que o exame de suficiência foi construído por ato infralegal (resolução), sendo notório que semelhante condição só existe legalmente no caso do exame de ordem, este próprio dos inscritos na Ordem dos Advogados como anteriormente asseverado.
16.Destarte, verifica-se que a liberdade profissional, QUANDO MUITO, estaria condicionada às “qualificações profissionais estabelecidas em lei”, jamais em “atos administrativos normativos”.
17. Eis aí o punctum saliens da questão posta em testilha. A lei que regulamenta a profissão do contabilista não faculta a imposição do famigerado “Exame de Suficiência” para a concessão de registro profissional. Destarte, nenhuma validade tem a mencionada resolução que foi tecida além de seus limites.
18.Ademais, inconstitucionalidade no caso também reside face ao preceito contido no art. 1º, incisos III e IV, da Carta Magna, in verbis:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: (…)
III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
19.”Nos dizeres de J. Cretella Jr., in Comentários à Constituição de 1988, encontramos o binômio trabalho-dignidade como algo que jamais poderá ser alijado um do outro, senão vejamos: o ser humano, o homem, seja de qual origem for, sem discriminação de raça, sexo, religião, convicção política ou filosófica, tem direito a ser tratado pelos semelhantes como ‘pessoa humana’, fundando-se o atual Estado de direito, em vários atributos, entre os quais se inclui a ‘dignidade’ do homem, repelido, assim, como aviltante e merecedor de combate qualquer tipo de comportamento que atente contra esse apanágio do homem. Sob dois ângulos, pelo menos, o trabalho pode ser apreciado: pelo individual (‘o trabalho dignifica o homem’) e pelo social, afirmando-se, em ambos os casos, como valor que na escalonação axiológica se situa em lugar privilegiado. Dignificando a pessoa humana, o trabalho tem valor social dos mais relevantes, pelo que a atual Constituição o coloca como um dos pilares da democracia” (Obra citada, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 3a. ed., 1992, p.139/140).
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QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL
20.Como se percebe o CFC, com lastro em mero ato administrativo administrativa (Resolução nº 853/99), está impossibilitando o trabalho de quem está legalmente qualificado para o exercício de sua profissão, engrossando, desta forma, a legião de desempregados existentes em nosso país.
21.Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, qualificação significa habilitação, conjunto de conhecimentos, aptidão, capacidade. A qualificação profissional em comento deriva do próprio DIPLOMA, onde quer que tenha ele sido obtido, desde que regularmente registrado no Ministério da Educação, que é a forma de controle federal.
22. Dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), que compete às universidades capacitar e qualificar seu corpo discente para o exercício de sua atividade laboral (art. 20, do mencionado diploma legal – extraída do art. 205 da CF/88 – e arts.43, II e 53, VI da mesma lei). Em momento algum esta lei atribui tal delegação a qualquer outro órgão, que não as escolas de nível superior, muito menos aos Conselhos.
23.Por força dessa delegação concedida pelo Poder Público às universidades, o diploma atesta que seu titular concluiu o curso de bacharel e o declara apto para inscrever-se ou registrar-se no respectivo Conselho, tornando desnecessário qualquer outro critério de avaliação de conhecimentos técnicos desse profissional.
24.Como orientação teleológica da norma, insta gizar a distinção entre “qualificação profissional” – cabedal de conhecimentos – e “exame de suficiência”, pretenso aferidor de conhecimentos e não qualificador do exercício profissional.
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CONCLUSÃO
25.O Conselho nasce da lei exclusivamente para fiscalizar o exercício de profissão liberal regulamentada, principalmente no que tange à questão da ética, não tendo, desse modo, poderes para estabelecer limitações ao direito constitucional do livre exercício profissional.
26.Padecendo tanto por inconstitucionalidade quanto por ilegalidade, a exigência do guerreado Exame de Suficiência constitui ofensa ao direito líquido e certo que o contabilista diplomado têm de ver-se registrado no Conselho Regional em cuja jurisdição pretende exercer sua profissão, estando, assim, a desafiar o Writ of Mandamus.
Kleber Moreira da Silva
advogado em Goiânia (GO)